A Ceia

A Ceia

 A chuva lá fora era fina, mas insistente. Vez ou outra o vento empurrava os galhos mais altos da árvore, no jardim da frente, contra o vidro da janela do andar de cima. O som que os sopros de água fina faziam, em turnos, contra a lateral da casa, lembravam o ciclo de uma máquina de lavar antiga.

 O som dos passos nos degraus de madeira cortou o quase-silêncio do interior da casa. O segundo barulho se projetou da cozinha. O sinal sonoro do forno elétrico alertando que o assado estava pronto.

 Ele olhou as horas no relógio de parede da cozinha enquanto vestia a luva térmica. Oito e quinze da noite. Ao tocar de leve a travessa de metal para tirá-la do forno, percebeu que suas mãos tremiam um pouco. Colocou a travessa sobre a bancada de mármore e retirou as luvas. A mesa de jantar já estava enfeitada para a Ceia. Trouxe uma garrafa de vinho tinto e também a colocou sobre a bancada. Olhou novamente para o relógio. Oito e dezenove. Tirou um saca-rolhas da gaveta e liberou o conteúdo da garrafa em sua taça.

 Enquanto o primeiro gole da bebida dançava no interior de sua boca, espalhando o sabor do vinho, ele fechou os olhos e se entregou às lembranças.

 A primeira vez que a viu havia sido pouco antes do último Natal. Ela caminhava pelo shopping center carregando uma penca de sacolas, desajeitada. Ele havia acabado de sair da relojoaria. Ela parecia estar com dificuldades de manusear todas aquelas alças de sacolas em uma única mão, enquanto a outra buscava o aparelho celular no interior da bolsa. Ele, gentilmente, se ofereceu para ajudá-la. Conversaram um pouco enquanto ele a acompanhava até o seu carro. Trocaram telefones. Na semana, trocaram mensagens. Saíram juntos uma vez. Depois uma segunda vez. E em pouco tempo ela já tomava conta de boa parte dos seus pensamentos.

 Linda. Era sempre a primeira palavra que vinha à sua mente toda vez que pensava nela. Não era a primeira vez que se relacionava, mas era muito diferente das outras. Ela lhe trazia uma sensação única, de ser especial. A sensação de ser digno do prêmio mais cobiçado: a felicidade.

 Tomou mais um gole do vinho e se controlou para não olhar novamente para o relógio. Deu uma olhada na mesa de jantar à procura de alguma falha. As velas! Correu para o outro lado do balcão na cozinha e retirou da gaveta de baixo um belo candelabro de bronze. Passou um pano seco e retirou os vestígios de pó. Colocou-o no centro da mesa e foi buscar as velas.

 Havia mais um motivo especial naquela noite. Há exatos três meses, ele lhe pedia em namoro. E ela havia aceitado. A sensação que ele sentiu ao vê-la responder, mesmo sem palavras, apenas com um sorriso no olhar, foi indescritível. Aqueles olhos de um azul tão intenso quanto sua personalidade, sabiam expressar muito mais do que as palavras. Suas palavras às vezes podiam ser um pouco confusas. Às vezes não expressavam exatamente o que ela queria dizer, ele sabia.

 Lembrou-se de sua pele pálida. Tão suave ao toque, e que se arrepiava cada vez que ele se aproximava. Era um contraste dramático ao negro dos seus cabelos longos.

 Mirou novamente o relógio da parede. Oito e trinta e cinco. Subiu correndo a escada em direção ao seu closet. Terminou de abotoar a camisa e vestiu o paletó. Olhou-se no espelho. Estava impecável. Colocou o seu melhor relógio e perfumou-se.

 Ainda de frente para o espelho, sorriu ao se lembrar da confusão no dia em que conheceu a família dela. Foi uma ocasião bem estranha, porém, engraçada. Ela era muito desatenta. Havia se esquecido que o tinha convidado para jantar com ela na casa dos seus pais naquela noite. Era aniversário do pai dela. Ele chegou meio sem jeito. Levara uma garrafa de vinho. Por um instante ela pareceu sinceramente surpresa. Talvez tenha sido um pouco estranho no início, mas foi uma noite agradável. Ele se sentiu parte daquela família, como não se sentia há muito tempo em nenhum lugar.

 O cheiro do assado lhe trouxe de volta ao presente. Desceu correndo as escadas. Foi até a janela da frente na sala de estar. A chuva fina ainda caía. Caminhou até o outro lado da sala e aproximou-se da tela do aparelho de som. Conectou-se à sua playlist. Eram as músicas que embalavam os seus encontros.

 A primeira vez que a havia tirado para dançar também fora numa ocasião inusitada. Ele a surpreendeu na Festa de Fim de Ano da agência de publicidade onde ela trabalhava. O restaurante onde eles organizaram o encontro possuía uma pista de dança e uma cabine de DJ. Após o jantar, os convidados iam se divertir e dançar um pouco ao som dos hits do momento. Quando ele chegou, trazendo o buquê de rosas, a expressão de espanto no rosto dela só não foi maior que a surpresa dos seus colegas. Ela tinha muita dificuldade em demonstrar o que sentia por ele na frente dos outros. Ele percebeu isso desde o início. Na verdade, mesmo quando estavam só os dois, ela parecia meio travada nesse sentido. Mas ele não se importava com isso. Ele sabia demonstrar o sentimento pelos dois.

 Esse era o jeito dela. E ele estava bem com isso. Não se importava. Na verdade, até achava charmoso o jeito inocente e delicado com o qual ela deixava transparecer a sua timidez. “Não sei se isso seria uma boa ideia…” e “Não acha que estamos indo um pouco depressa demais? ” eram frases que ele já havia se acostumado a ouvir. Mas no fundo ele sabia que ela estava apenas insegura pelo medo de se entregar por completo. E ele sabia que podia ajuda-la com aquilo.

 O som de Sweet Dreams ecoou pelos alto-falantes do sistema surround da casa. “Sweet dreams are made of this, who am I to disagree…”

 Olhou novamente para o relógio. Oito e cinquenta. Subitamente um gosto amargo subiu-lhe à boca. A última conversa que tiveram não foi da maneira que esperava. Ela estava diferente, distante. Ele notou. Talvez fosse só impressão. Talvez não. Talvez ele estivesse passando por aquela “confusão” que a psiquiatra lhe alertou que pudesse acontecer se suspendesse de vez a medicação. Mas no fundo ele nunca havia acreditado no efeito daqueles remédios. Placebo. Puro placebo. Mas ela sim, estava diferente. Ela nunca o havia tratado daquela forma. Nunca com aquela agressividade. Algo estava acontecendo, mas ele não sabia dizer o que era.

 Naquela noite, ele a encontrou no estacionamento da empresa. Ela havia trabalhado até mais tarde. Para ele, não foi um problema esperar todo aquele tempo próximo ao seu carro. Quando ela chegou e o viu, mais uma vez o recebeu com aquele olhar de espanto. Dessa vez ele não se sentiu confortável com aquilo. Na verdade, sentiu uma irritação que não costumava sentir na presença dela. Aquela não foi uma noite agradável. Não era uma das que ele gostaria de se lembrar. Tanto que, na realidade, não se lembrava exatamente como as coisas seguiram dali em diante. Tudo ficou meio confuso em sua mente.

 Voltou novamente para a cozinha. Levou consigo um prato. A travessa com o assado ainda estava sobre o balcão. Cortou delicadamente um pedaço generoso da carne. A faca que tinha nas mãos era muito afiada, por isso quase não teve trabalho.

 Apesar dos últimos acontecimentos imprevistos, aquela era uma noite de celebração. Uma noite onde estariam juntos novamente. Ele mal conseguia conter sua excitação. Experimentava um misto de euforia reprimida e ansiedade.

 Sentou-se à mesa. Usou um isqueiro para acender as velas no candelabro. Algumas imagens do seu último encontro com ela vieram à sua mente. Tudo estava embaralhado. Não entendia o porquê. Eram apenas flashes. Pensou ter ouvido um grito. Por que ela havia gritado? Lhe veio a imagem do pingente de unicórnio que ela usava. Lembrou-se de tê-la em seus braços. As longas unhas vermelhas deixaram uma marca. Puxou a manga do paletó e conferiu. A marca estava realmente lá. Preferiu não revirar mais aquelas memórias.

 Trouxe sua atenção para o prato à sua frente. A carne dourada e suculenta o aguardava. Espetou o garfo e, com a faca afiada, realizou o corte sem esforço. Trouxe o pedaço à boca. O prazer que sentiu era único. Como não sentia há muito tempo. Apreciou aquele instante como um devoto em comunhão. E era assim mesmo que se sentiu. Em comunhão.

 Quando a faca afiada deslizou seu segundo golpe sobre a carne, sentiu algo estranho no caminho. Seria um pedaço de osso? Não era. Era metal. Uma pequena peça enegrecida pelo calor do forno, mas que ele reconheceu. A imagem veio nítida em sua mente. O pingente de unicórnio!

 Com o garfo ele separou a pequena peça de metal para o canto do prato. Aquilo não deveria estar ali. Afinal, ele havia retirado os seus brincos e os anéis antes de…

 De qualquer forma aquele pequeno pingente havia ficado ali. Ele não se lembrava de muita coisa. De como tudo havia acontecido. Mas estava tranquilo. Agora estavam ali. Os dois juntos. Para sempre. Em comunhão.

 Por diversas vezes ela havia recusado o seu convite, e se esquivado de suas investidas. Mas dessa vez não haveria mais recusa, e não haveria mais rejeição. Estavam ali, só os dois. Cada um à sua maneira. Para a sua primeira e última Ceia.

Por ANDRÉ ALVES

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