AS CORES DA SOCIEDADE – Vozes Pretas Mulheres

AS CORES DA SOCIEDADE – Vozes Pretas Mulheres

 A literatura brasileira há muito propõe diálogos marcantes com a sociedade de sua época, fazendo críticas contundentes às desigualdades, às intolerâncias e aos mais diversos preconceitos. Ainda assim, tais narrativas, quase sempre eram na percepção do homem branco e, embora tenhamos grandes escritores negros de destaque como Lima Barreto e Machado de Assis, onde ficaram escondidas as narrativas da mulher preta em nossa literatura?

 Todo discurso é carregado de intenções e, é claro, que não é preciso desqualificar nenhum discurso que se propõe, dentro ou fora da literatura, interpretar a realidade, mas é urgente promover a validação de outros para quem foram negados toda voz e representatividade. Sou formado em Letras e, embora tenha tido a oportunidade de conviver com professores muito competentes em minha formação acadêmica ou mesmo antes, em minha formação escolar, sempre senti falta, nas ementas dos cursos, da figura da mulher preta. Em quais prateleiras escondiam Carolinas, Evaristos, Suelis, Gonçalves? Por que não discutimos raça e sociedade na percepção dessas mulheres? Por que não nos ensinaram a ler e validar discursos tão importantes? Ancestralidade, “escrevivência” e muita bagagem, é disso que está carregada a literatura dessas e de tantas outras mulheres pretas em nossa tão diversa literatura.

 Carolina Maria de Jesus, por exemplo, em seu impactante “Quarto de despejo” dá voz a si mesma numa autobiografia em forma de diário, e nos ensina, em pouco mais de 200 páginas, sobre política e sociedade, sobre violências e suas legitimações estatais, sobre luta e os obstáculos que se fazem invisíveis para boa parte da sociedade enquanto limita e condiciona outra parcela. Voraz e contundente, Carolina, com pouca escolaridade, nos entrega uma literatura cheia de criticidade e reflexões que nos choca ao mesmo tempo que nos faz repensar a configuração da sociedade e como são injustas as divisões e oportunidades.

Foto de Carolina Maria de Jesus

 Carolina fala da fome, e mais do que isso, personifica a fome ao defini-la “amarela” numa sinestesia – desculpe o trocadilho – difícil de engolir. Sua literatura parece entalar em nossa garganta, criar desconfortos e, mesmo àqueles mais distraídos, traz a sensação de que esta conta social não fecha. Quando falamos de Carolina Maria de Jesus e da obra supracitada, estamos nos reportando a meados do século passado e, ainda hoje, 70 anos depois é preciso falar da mesma fome sobre a qual a autora dissertou. Afinal, o Brasil amarga mais de 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, este número é 14 milhões a mais que a estimativa da mesma pesquisa em 2020. Tudo isso nos faz perceber que Carolina passou despercebida quando gritou em “Quarto de Despejo”, para uma sociedade surda, as mazelas que ainda amargamos hoje.

 A literatura é quase sempre o DNA de seu povo. A arte, quando não é usada para denunciar, para apontar problemas, para fazer refletir o mundo a nossa volta, para quê há de servir? Em “Vidas Secas”, Graciliano falou da seca, da pobreza, e também da fome. Em “Capitães de Areia”, Jorge Amado falou da desigualdade e de seus reflexos sociais: a miséria, a criminalidade, os preconceitos. Lima Barreto criticou as burocracias do Estado ao mesmo tempo em que denunciou um Brasil de verdade, cheios de problemas e feridas, em “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Todas essas narrativas são importantes e, mais ainda, as reflexões que promovem. No entanto, não podemos esquecer de Conceição Evaristo e sua “escrevivência” de mulher preta, que para além dos discursos, experimentou quase tão profundamente o universo de suas personagens, que seus leitores as confundem: “Ponciá Evaristo”, “Conceição Vicêncio”, num jogo que revela como a história das mulheres pretas parece se repetir no cenário de um país que ainda não conseguiu se encontrar em meio a tantas pautas importantes e urgentes.

 Ainda temos, Sueli Carneiro, cuja obra tem efusiva relevância no contexto social e cultural do Brasil, trazendo reflexões importantíssimas, sobretudo jurídicas, em uma militância consistente e embasada que preenche o debate público e contribui nas mais diversas esferas, mas que precisa e merece estar nos livros didáticos, nas salas de aula, nos espaços públicos. E isso não significa “dar” voz a alguém, sua voz já ecoa há muitos anos, isso é legitimar seu discurso, ouvir e entender suas percepções de mulher preta numa sociedade de estrutura racista. Isso é garantir a diversidade das narrativas e suas importantes contribuições, valorizando a pluralidade desse país e percebendo que é preciso preencher as lacunas deixadas por esta narrativa única que por muitos anos nos foi vendida como verdade absoluta.

 Um bom exemplo de tudo isso é o impressionante “um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, que nos mostra quão importante é revisitar a história do país na percepção de quem experimentou suas mazelas e não apenas as presenciou. Nossa história, quase sempre, contada numa percepção etnocêntrica branca e rica, ali se apresenta na visão de uma menina preta, sequestrada em seu país e escravizada no Brasil, e todas as consequências e perversidades que acontecem a partir disso. E assim nossa história vai se revelando de uma forma mais honesta e, consequentemente, mais aguda.

 O Brasil é um país que precisa se descolonizar. Para entender a narrativa que nos constrói enquanto povo, é preciso ler a nossa história a partir de nossa gente. Mulheres pretas precisam ser lidas nas escolas, analisada nos bancos de faculdades, discutidas em grupos de conversa nas esquinas. Suas obras, cobradas em vestibulares, adotada em universidades, premiadas em concursos, reverenciada em seminários. Só assim, abrir-se-ão a cortina onde se revelará nossa verdadeira e enriquecedora história.

Por XÚNIOR MATRAGA

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