CONTOS E MINICONTOS – Conto de uma decadência anunciada por Kryssia Souza

CONTOS E MINICONTOS – Conto de uma decadência anunciada por Kryssia Souza

“Um passarinho me disse que a República está a vir…

…olhem ela, a galope!”

Essa era a assertiva diária do acanhado menino que conversava com a natureza e tinha nela sua mais fiel amizade.

“Bom dia, família! Um passarinho me disse que …”

Desacreditado ele era. Sempre e sempre.

Chacota da vizinhança, das próprias irmãs e das crianças da localidade, tinha em vida dois únicos refúgios:  a bisavó, uma idosa risonha, de olhar longínquo e pele vincada pela idade e sol, que ouvia o neto com uma paz de espírito e bom humor que davam gosto; e a própria natureza, sua melhor companhia, sua luz, seu guia. Ele, o meio ambiente e a bisa formavam uma coisa complexa e unissonante —além de singular—, como se os três tivessem surgido de um mesmo ventre cósmico.

Todos mestiços— do menino para trás, três gerações dessa linhagem de pessoas já não compreendiam ao certo se por baixo das fundas águas atlânticas suas raízes encontrariam Europa ou África. Os pais cresceram em meio ao ouro verde, no planta- colhe sazonal daquela era. O mesmo ocorreu com os avós de ambos os lados. Já a bisa materna, sua amiga e a única viva dentre os bisavós, sabia-se quase nada sobre sua origem. Apenas contam que a mãe escravizada falecera no parto remoendo em dor e febre, e por “benesses do barão” a menina havia crescido em meio às mulheres da cozinha da fazenda, escondida entre os panos baratos das saias puídas e surradas das escravizadas.  Ora vejam, logo ela, com seus olhos cor de mel por vezes verdes ali, dentro da casa grande. O acaso não deixa esse tipo de rastro, não.

O menino, tão afetivo. Cada toco de árvore seco partilhava seus sonhos, seus pesadelos horrendos por conta dos desafetos na escola, a sua gana em ter sua cidade do médio Paraíba transformada em algo verdadeiramente magnífico. “Queria ver São João do Príncipe sendo eleita a capital do reino. Ah, como eu queria!”… Potencial a cidade até tinha, mas já de pequeno ele ouvira das pedras em lamentos desalentados que em questão de uns cem anos nem sequer a imponente Matriz de São João Marcos— em ouro e traços um tanto barrocos, outro tanto maneiristas e circundada por pés-de- moleque— quedaria sobre suas bases.

O pé de mulungu do quintal com opulentas  e macias flores  em vermelho escarlate semeava inveja em qualquer moça jovem que desejasse com pulsão uma pele daquele viço e tom—  como era o caso das irmãs do menino: algo apagadas—  foi sempre o companheiro de vida da bisa do menino, e acompanhou-a de mãos atadas entre sonhos, aflições, insônias… Em sussurros mansinhos tarde afora, ambos trocavam palpites sobre a Fazenda Olaria ser ou não a melhor produtora de café da região, conversavam sobre as possíveis e impossíveis receitas e artesanias a se fazer com os pés de Jussara, o horário da chuva e as águas dos três lagos que um dia viria  a tomar as ruas de pedra de cantaria e seu desfecho seria uma decadente e infeliz represa de quase nenhuma água. “O futuro nos trará ruína, e uma ruína para lá de literal”, lamentavam a bisa e seu pé de mulungu parceiro.

O menino desde que se compreendeu um ser pensante percebeu que da avó herdara a genética de quem veio de planta. Em um dia qualquer, no almoço, apenas soltou em uma frase certeira em tom de voz afoito, grave: “o curió pediu para te contar que ventos da cidade trarão a República. E ela, simpática: “pois o trinca-ferro me disse o mesmo agorinha mesmo pela manhã”. E nesse breve diálogo deu-se a parceria neto- bisa- natureza.

A vida seguia igual entre os meticulosamente plantados ipês amarelos e roxos em 1822, aquele tão afamado ano. Neto e avó disputavam, por uma espécie de lazer, quem era capaz de descobri com precisão em qual dia  específico ocorreria o início da floração dessas árvores. Cada um acertava a data em um ano: era quase um acordo de amor velado revezar as vitórias, já que ambos dispunham do mesmo dom e sentimento de pertença com as coisas da terra. Mas daí naquela primavera aconteceu de nenhum ipê florescer; melhor dizendo, de tudo florescer sem a sua justa cor. O clima da cidade pesou, e enquanto jardinavam juntos no sol brando da manhã de ar movediço, o menino, com suas duas mãos habilidosamente infantis imersas no chão, repuxando uma raiz robusta com cuidado para não rompê-la, sentiu emaranhar cada radícula por entre os braços e a voz que emanava da terra lhe sussurrou: “é chegado o dia: Dom Pedro está lá para cima na Fazenda Santo Antônio levando consigo gente para mudar os rumos da história lá nas bandas da Capital”.

O menino puxou os braços, quebrou as raízes e as atirou para todo o lado com a força usada para se desvencilhar daquele aperto que a transmissão de mensagem proveniente da natureza exigiu. O contato orgânico o deixou tão eufórico que só comunicou a avó, no ato: “é hoje que acontece!”. Ela balbuciou algo com os olhos ainda voltados para o solo todo revirado, empoeirada pela secura das partículas de terra, e tratou de replantar o que o neto arrebentara.

Cada botão de flor dos ipês agora em marrom pálido, apresentando autêntica melancolia, causou estranheza e reacendeu um bocado de superstições até então dormentes nas inúmeras famílias do local.

“Perdemos o dia da colheita do café, aí deu nisso… Maldição!” Ou ainda: “em dia de chuva não se pode nadar em represa. É tudo culpa daquelas crianças desaforadas da escola secundária que não respeitam nem o Padre, valha-me Deus!” Mas o receio maior da grande maioria das pessoas até parecia ter um fundamento, não fosse a total indiferença do universo para com esse tipo de crendice: na data da última apresentação teatral escalada para ocorrer no Teatro Municipal Tiribiçá —bastante progressista e revolucionária para os ânimos e índole do povoado, por sinal-—, os mais abastados habitantes do vilarejo, a dizer, os barões do café, decidiram organizar um boicote ao espetáculo.

Como a temática da encenação era crítica aos mais abonados daqueles vales e tocaria em assuntos que preferiam deixar em banho- maria, questionando a escravidão de gentes do além-mar e colocando em dúvida a Coroa, os aristocratas  puseram lenha, em algumas situações quase que de forma literal, para que ninguém fosse ao teatro naquele dia, afinal, de uma forma ou outra, “a vida era boa por conta do café, apesar dos pesares”, insistiam os latifundiários.

Realmente o burburinho foi tamanho que a companhia artística desistiu do espetáculo, e nem puseram à prova se seriam ou não capazes de atrair expectadores suficientes para encher as galerias do grandioso teatro. “A gente foi obedecer patrão, São João Marcos ficou triste com o povo e nos tirou a cor das flores… A arte tem vida, e a gente matou ela!”

Mas essa tristeza se alastrou por pouco tempo. Em 15 de agosto de 1822 chega Dom Pedro em carne e roupas pomposas, diretamente dos quadros pintados a óleo exibidos em paredes de sala de certas fazendas, e buscou dois rapazes filhos barões cujas salas tinham as tais paredes que ostentavam a imagem do Príncipe.

Embasbacados, os habitantes trataram de interpretar a inesperada aparição de Dom Pedro por aquelas bandas como uma segunda chance para os marcossenses, após terem sido assolados pelo mal das flores descoradas.

Poucos dias depois a República fora proclamada. Para uns, um feito heroico, de fato digno de orgulho para exibir e replicar às gerações mais novas. Para outros, porém, representava o esfacelamento dos planos daqueles “bem nascidos nos berços da aristocracia”. Mas o que realmente importava em São João Marcos era a pintura  a óleo daquele dia histórico: os parentes dos meninos que haviam ido na caravana de Dom Pedro encomendaram muitos quadros, e estes obviamente deveriam estampar os rostos juvenis e heroicos de seus respectivos heroizinhos. Nas reuniões de família já ensaiavam o discurso que fariam nos teatros, nas igrejas, nos clubes e até no intervalo para merendar das escolas sobre a relevância de seus longos, conceituados sobrenomes e seu sangue para a história do Brasil.

Pois as telas chegaram, em toda sua grandiosidade, trazidas com todo o cuidado que um bem dessa proporção merece receber. E verificados os rostos um a um na imagem, não havia sequer um alguém semelhante a um marcossese. Os ânimos voltaram a empalidecer, bem como acontecera na ocasião dos ipês descorados, e a tormenta das superstições voltou a assolar o imaginário coletivo. Daí pra frente a cidade viveu assim, em estado de desgraça.

O menino sabia que não era culpa de ninguém, nem de nada ocorrido ali. Tratava-se apenas do destino reservado à sua cidade por hora ainda tão viva. Cada ano que entrava era um bocadinho de acontecimento em direção a seu fim do que ainda era um lugar próspero e cercado de cultura e luxo, mas o menino não sucumbia. “ninguém é tão daqui quanto você, menino. E isso é bom. Você é feito de nós. Não sofre, não. Teu lugar na terra está garantido”, dizia tudo o que ele tocava. Tanto que quando a bisa se foi, ele apressadamente foi tomar um banho de rio, mergulhando assim nos braços dela, que apenas mudara de forma.

Já beirando os 70 anos o menino morreu, e daí reina como o mais majestoso pé de Mulungu que ainda vive no Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos, em 2022.

Por KRYSSIA SOUZA

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