Acordei, não sei a que horas do relógio, só sei que era a hora dos engarrafamentos. Um moço boa pinta, de camisa branca e gravata, me chamou para conversar. Isso não é costumeiro, mas, vez ou outra, aparece alguém querendo algo da gente. Por mais miserável que a vida na rua seja, ainda existe algo em nós que querem nos tirar; o moço que não lembro mais o nome queria minha imagem e minha palavra, para que ele usaria minhas preciosidades? Não posso dizer, minha desgraça pode servir para muitas coisas. 

 Sentei com o moço no banco da praça, ele perguntou meu nome, respondi “Benedito”, quis saber a idade, mas isso já era demais, não faço contas há tempos. 

 Ele disse que deveria ser 70 anos e deu um sorriso de caçoada, pegou seu apetrecho que era coisa da modernidade e diferente dos outros que já estiveram aqui, ele não anotou nada. 

 Pediu que eu contasse a minha história, o que eu pensava de viver na rua e o que eu queria para a minha vida. Pensei um pouco, não tinha muito para contar, mas tinham umas coisas que eu queria falar, então falei sem que ele interrompesse, eram poucas palavras, mas era tudo que eu tinha para desabafar. 

 Moço, outro dia eu ouvi falar de um gigante de três metros de altura, homem forte, esperto e bondoso, dizem que se chama Deus. Ele costuma dar muitas alegrias para o povo que mora atrás dos grandes muros e também para os que trabalham nos prédios espelhados, iguais a esses que a gente vê por toda parte. Deus visita todos que tem casa boa, comida farta, roupas limpas e vinho para alegrar as festas.  

 Fiquei pensando sobre não ter um Deus aqui, debaixo desse viaduto, meu lar, onde paredes não há, onde o sol arde e a chuva faz molhar o vazio que me pertence, onde o frio da madrugada é tão gelado que vez ou outra um “chegado” não acorda dos pesadelos costumeiros. Aqui, neste lugar, o bom homem não passou e nunca nos visitou.  

 Mas, por aqui também temos um notável visitante, a gente chama de Bicho. Assim como o tal Deus, o Bicho também passeia entre os moradores, só que nesse lugar de muita miséria, sua estadia é um pouco diferente.  

 O Bicho não tem forma humana, é apenas uma sombra densa que não ocupa espaço e que vez ou outra, entra nas nossas cabeças deixando a gente sem juízo. O Bicho é sorrateiro, um ser cruel que chega de mansinho, faz as mães trocarem seus filhos por pedrinhas fedorentas, faz os homens espancarem suas esposas, tudo por causa das pedrinhas. Na verdade, não sei se é a falta da pedrinha ou se é a fumaça do cachimbo que deixa aquelas pessoas insanas.  

 O Bicho, manipulador, sussurra nos ouvidos dos fardados, fazendo os homens que deveriam proteger os mais fracos, tirarem a vida, já sem valor, daqueles mais indefesos, apenas por diversão.  

 O Bicho faz gente boa, dessas que um dia já teve trabalho honesto, não dar conta de dizer uma palavra bem falada, a mente não consegue pensar e o corpo não controla o andar, essas pessoas se arrastam pelo chão parecendo mortos-vivos. Eu vi isso acontecer muitas vezes. 

 Enquanto convivemos com o Bicho, penso nos abençoados que moram com Deus e busco reposta para minha falta de compreensão. O que será que temos de tão diferente? 

 Uma vez, não faz muito tempo, uma moça bem vestida, assim como o senhor, veio falar com a gente. Ela trouxe mantas, comida e também um desassossego para minha cabeça. Ela disse que eu vivia aqui por minha própria decisão, que se eu quisesse poderia ter uma vida decente, casa de tijolos, trabalho e família. Acho que ela quis dizer que eu também poderia morar com Deus. 

 Isso me tirou o constante sono que sinto, insônia é algo que não costumo ter, talvez por conta da fraqueza. Tentei recordar dessa determinação de viver no desalento, se estar aqui é coisa de escolha, por que será que não me lembro desse dia decisivo. É que não tenho memórias sobre o passado e menos ainda boa cabeça para o futuro, então, se fiz tal escolha, não sei mais se foi certo ou não, e nem porquê teria eu preferido essa vida. Sinceramente, naquela noite não era morar aqui que me desassossegava, mas saber o que aconteceu comigo de tão ruim que me levou a acreditar que a rua era o melhor caminho. 

 Sem poder dormir eu chamei pelo tal Deus, queria conhecer aquele ser generoso que vive do outro lado, mas ele não apareceu. Queria que ouvisse meu clamor e que viesse logo me ajudar. Só que eu não queria pedir por uma casa para morar, o que eu queria mesmo, é que numa dessas noites escuras como breu, com toda sua benevolência, colocasse fim na minha existência, porque vida mesmo, aqui há muito tempo não existe. 

 Moço, isso é tudo que posso te dar, minha angústia e desespero, minha falta de esperança, minha fome e o meu amargo esperar.

Por MIA KODA

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