CONTOS E MINICONTOS – Dia por Gabriel Alencar

CONTOS E MINICONTOS – Dia por Gabriel Alencar

Dia 1

Vai dar tudo certo, tudo tranquilo. Na TV acabaram de dizer que coisa de três meses tudo acaba. Vou até aproveitar, vai ser um momento de relaxar, buscar novos projetos, vou me renovar. No fundo, acho até que vai ser bom.

Dia 15

Olha, as coisas não estão andando do jeito que eu imaginava. Acho que só estou cansado, sabe? Talvez o segredo seja deixar os dias passarem e ver o que acontece. Hoje lembrei que faz duas semanas que não rego as plantas. Esqueci que a quarentena não proíbe ir ao quintal. Nem lembro qual foi a última vez que peguei sol. A TV continua falando.

Dia 30

Bom, pelo menos agora serão apenas mais dois meses… Eita… mais dois meses disso? Pelo menos trabalhar online está sendo bom. Não tem que enfrentar trânsito, não tem colega de trabalho enchendo a paciência. Se bem que essas reuniões online são intermináveis! Ainda tem a dona Carminda que toda santa vez esquece de ligar a câmera, aí quando é pra ligar ela desliga. Um caos, um caos.

Dia 42

Fiz umas compras online só pra ver o carteiro me entregar a encomenda. Ele acabou de ir embora. Tentei papear mas ele nem me olhou direito. Na próxima vou montar uma mesinha lá fora com um café e convidar ele pra sentar. Ele lá na rua e eu na calçada, claro.

Dia 66

É… então… resolvi desligar a TV um pouco. Todo dia a mesma coisa. Se bobear já sei de cor todos os números da pandemia e acho até que consigo adivinhar os do dia seguinte. Se pelo menos eu tivesse essa habilidade pra prever os números da Sena… Nossa! A lotérica! Nem lembrava mais que isso existe. Eita saudade daquela muvuca, as velhas mal-humoradas, os motoboy fedorento… hum… 

Dia 90

Eu achava que a essa altura estaria livre. Mas não. Continua a mesma coisa. Comprei na internet um bicho de pelúcia pra me fazer companhia. Falo com ele todo dia, mas ele não me responde, o safado. Já cansei do trabalho online, especialmente quando tem prazo pra cumprir e não tem internet pra fazer nada. Hoje sentei no quintal, debaixo da árvore, e fiquei esperando a internet voltar. Um passarinho cagou em mim.

Dia 142

Hoje o urso de pelúcia falou comigo de novo, queria o relatório atualizado dos números da pandemia. Eu disse de cabeça e ele disse que estava errado, que era pra eu ligar a TV e conferir. Mas ele não manda em mim. Quem manda em mim é o passarinho, dou meu café da manhã todo dia pra ele, com medo de ele não pousar mais na árvore. Meu chefe disse que vamos ter outra reunião hoje a tarde. Meu Deus, a dona Carminda!

Dia 156

Hoje eu saí na rua. Fui até a padaria. A moça perguntou se eu queria pão, mas só consegui grunhir de volta. Ela me deu um sorriso sem jeito e uma sacola. No caixa, o homem só fez um sinal para eu ir embora. Quando cheguei em casa me olhei no espelho e percebi que fazia meses que não cortava o cabelo nem fazia a barba. Até o mendigo da rua me olhou com desprezo. O carteiro não entrega mais pra mim, deixa na calçada e nem pede mais café.

Dia 180

Agora que lembrei que tinha planos de estudar, voltar a treinar o violão, fazer exercício em casa. Pelo menos a pança não cresceu tanto, já que o urso insiste em reclamar da minha comida e o passarinho ainda come todo meu café da manhã. Hoje pela tarde teve reunião e o chefe dividiu a equipe em duplas, vocês não vão acreditar quem ficou comigo.

Dia 193

O passarinho matou o urso. Chamei a polícia. Não sei o que vai acontecer.

Dia 266

Quando a casa saiu voando, eu pensei… meu Deus, como essa folha é verde. Tem um jarro de metal. Não é um jarro. A chave do armário eu guardei no… vish… a gasolina de novo? Espera um pouco aí, por que é que eu estou-

Dia 458

Desculpem, fiquei muito tempo sem escrever. Estava me reencontrando. Me livrei do urso de vez e o passarinho fez um ninho na árvore. Agora é mamãe e não quer mais saber de mim, mas tudo bem. Eu tomei a vacina ontem. Fui visitar minha família. Falei com eles pelas frestas do portão. Eles sorriram pra mim e eu chorei.

Quando tudo começou eu não tinha ideia de como ia ser, mas também não imaginava que fosse ser tão complicado. Hoje o chefe anunciou que vamos voltar ao trabalho presencial parcialmente. Chega de reuniões online, graças a Deus.

Dona Carminda disse um dia que estava preocupada comigo e veio me visitar. No começo fiquei alerta, mas depois vi que a velha até que é gente boa. Pena que ela teve um caso com o carteiro e eles fugiram juntos, agora quem entrega minhas encomendas é uma moça numa kombi.

Opa, foi só falar! Ela acabou de chegar. Vou pegar a garrafa de café.

Por Gabriel Alencar

 

 

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