CONTOS E MINICONTOS – Os colonos por Elizabeth Calderón

CONTOS E MINICONTOS – Os colonos por Elizabeth Calderón

Clemente nasceu na colônia de Blumenau, em Santa Catarina, após a grande enchente e antes que a colônia atingisse a categoria de comarca. Cresceu ouvindo como seu avô transformou um pedaço de floresta em um campo fértil e construiu a casa da família. O avô de Clemente morreu jovem. Dizem que a mata o engoliu. Morreu em uma expedição, quando um domingo depois da igreja um grupo de homens se organizou e entrou na floresta para afugentar botocudos. Vovô não voltou. Clemente perguntou a mãe que era um botocudo “É um índio” respondeu.

O pai de Clemente e os homens da colônia continuam entrando na floresta com a mesma missão. Desde que tem lembrança, Clemente, espera ansioso esse momento.

Vê a si próprio correndo até o limite que não lhe é permitido atravessar. Olha a imensidão da selva sem medo, contando cada dia até que finalmente o deixem penetrá-la. E será hoje. Clemente pergunta a seu pai se irá deixá-lo usar a espingarda e seu pai diz que é claro que não. O menino aceita. O fato de deixar de ser criança é o suficiente por enquanto, mas sente-se inquieto. E se um botocudo o atacar? Está determinado a não revelar seu medo e acha que seria bom carregar uma faca para se defender, pelas dúvidas. Guarda na cintura a faca que a tia usa para troçar galinha. Chega a sentir o frio da lâmina tocando a pele, mas se acostuma.

Um dia perguntou à mãe se índio era homem e a mãe respondeu que não. Ele nunca viu um índio. Ele não sabe quão grande pode ser, ouviu que podem se tornar gigantes e se transformar em uma árvore ou em pantera.

Se junta ao grupo de homens armados, dispostos a mostrar coragem diante do que quer que fosse um botocudo. Clemente já se sente parte do mundo adulto. Chega de ficar em casa, pairando entre mulheres e bebês. Clemente odeia bebês e também odeia garotas de sua idade. Quer ser como o primo Otis, que vai com os adultos a caçar índios.

“Não é caçar” disse-lhe o primo, “Não comemos gente, embora eles sim possam comer você” Clemente prendeu a respiração imaginando uma coisa dessas. O primo diz que a colônia deve ser defendida. “Nossas terras. As terras que o próprio governador nos deu. É um direito nosso. Entendeu Clemente?” “Sim, temos que defender a terra e as mulheres.” Ele ouviu seu pai dizer que obteve a bênção do pastor e a concessão do governo para isso.

 

***

 

O grupo armado com facão, pistolas e espingardas caminham pelo rio até a casa do último colono. Entram na mata que faz silêncio diante do intruso. Clemente segue o ritmo dos adultos, atrás dele o primo Otis, encarregado de cuidar dele. Estão autorizados a acompanhá-los apenas até o primeiro posto de guarda.

A expedição é dividida em vários grupos porque os índios mudam continuamente o curso da viagem para despistar.  Clemente vê a seu pai partindo para o lado norte. Sente vontade de ir atrás dele, não por medo, mas porque quer que o pai o veja agir, caso o botocudo apareça. Não vai. Obedece.  Promete não separar-se do primo e eles entram em uma trilha rio acima. Por ali devem chegar ao primeiro abrigo e esperar os outros voltarem.

O refúgio é uma cabana que já era utilizada pelos próprios índios há algum tempo. Dentro há alguns cestos de cipó, cascas de coco e ossos de Capivara. Clemente fica imediatamente interessado nos ossos da capivara, quando o primo lhe diz para ficar quieto. A mata se mexe e um pequeno clique é ouvido. Fique aqui. Clemente diz que não. O primo dá-lhe um tapinha na cabeça e manda-lhe calar a boca. Fica. Era para ficar juntos, diz meu pai. Eu quero ir, mas ele não vai. Permanece dentro da cabana vendo o primo se perder no mato. Prometeu se distanciar apenas 20 metros. Agora o silêncio da selva começa a sussurrar para ele. Ele e a selva. Salta a cada barulhinho estranho. A mão de Clemente no cabo da faca. A folhagem se mexe e os olhos de Clemente se abrem a ponto de arder, aí ele vê: Um botocudo! E o botocudo a observá-lo.

 

***

 

Clemente não consegue reagir, os joelhos cedem e se não fossem as ideias chegando à cabeça, desmaiaria. Segura a faca confuso porque a figura à sua frente não parece uma pantera, parece um homem pintado, sem roupa. Igual a homem. Igual.

O botocudo parado na frente de Clemente vê algo na expressão do menino que o diverte. Ele quer a faca porque sua tribo tem observado o homem branco e sabe que o ferro é bom para fazer as pontas da flecha. Eles aprenderam isso com o branco e o nativo queria a faca de Clemente. Aproxima-se. Clemente fica paralisado vendo o botocudo alcançá-lo. O botocudo estende a mão e Clemente pode observar de perto o lábio perfurado pelo pedaço de madeira. E entrega-lhe a faca. Não sabe o que está fazendo. Não está pensando. Não distingue se quer correr. Apenas obedece a um pedido silencioso e lhe entrega a faca. A Pintura nos olhos deixa o olhar mais deslumbrante. O indígena começa a se afastar e Clemente tem perguntas que quer tirar da cabeça, gritando então vê o primo. Otis chega arrastando na ponta da espingarda outro nativo pouco maior do que Clemente.

O tiro atravessa a carne do índio, o sangue escorre por entre os dedos que tentam conter a ferida. A selva grita. O primo pega o menino indígena pelos cabelos e o arrasta.  Clemente abre a boca e uma porção do abismo entra nele. O abismo da selva que grita e todas as criaturas da selva gritam também quando Otis enterra o facão na carne do índio que parece tenra como a bananeira. O pequeno botocudo esperneia apavorado diante das entranhas do parente boiando na poça de sangue. Uma náusea sacode Clemente que vomita e outra náusea o faz cair de quatro. Aparecem o pai e o grupo de adultos. Clemente luta para ficar em pé pensando em correr junto a ele; mas eles se aproximam do primo e lhe dão tapinhas nas costas, cercam o indígena e o amarram.

Clemente consegue gritar e o abismo consegue sair de sua boca, mas os adultos apenas riem. Seu pai o pega e o carrega debaixo do braço enquanto o grupo arrasta o outro menino rio abaixo. A cabeça de Clemente bate contra o corpo do pai e os pés do indígena batem nas pedras do chão e sangram.

Seu pai o joga na grama desmaiado, Clemente sem reação consegue entreabrir os olhos. Eles colocam o menino em um poste e começam a cortá-lo com a faca. Clemente se levanta e dá alguns passos trêmulos, mas cai. Pai. Ele é um de nós, quer dizer, mas eles são como uma manada de cães. Clemente já esteve diante de cães enraivecidos, já viu baba escorrer pelos cantos da boca de um cão selvagem.

Clemente se levanta e dá alguns passos e consegue dizer o nome do primo, mas a náusea volta. No poste, o menino não luta mais para manter a vida no corpo. Eles o empurram e no momento em que os joelhos de Clemente se esticam e consegue ficar de pé, quebra-se o pescoço do menino indígena. Clemente sente um líquido quente escorrer pelas pernas. Eles olham para ele e ele não os conhece. Ele não conhece mais seus rostos.

 Clemente tira os sapatos e a roupa porque fez xixi. Sente o cheiro de xixi. Sente o cheiro da grama. Ele não os conhece.

Clemente permanece de pé por um minuto. Branco e nu contempla-os. Como se fossem uma aparição. Olha para eles uma última vez antes de se virar e correr para a floresta de onde nunca mais voltou.

Por ELIZABETH CALDERÓN

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