CONTOS E MINICONTOS – Réveillon por Jeane Tertuliano

CONTOS E MINICONTOS – Réveillon por Jeane Tertuliano

A escrita nunca fluiu facilmente para Susana. Ela tinha metas, ansiava por ser uma grande autora de romances góticos, no entanto, sua criatividade parecia estar estritamente limitada a conceber narrativas breves. Certa vez, uma amiga do ramo havia mencionado a necessidade de viver grandes aventuras para criar histórias assustadoramente convincentes, reais aos olhos do leitor sagaz. Su nunca levou a sério tal afirmação, não até aquele instante… Talvez, e somente talvez, aquela teoria fosse verídica, logo, ela estaria perdendo tempo ao esperar o grande dia no qual a inspiração finalmente viria.

Vasculhando o seu antigo diário, Susana buscava inutilmente por ideias de como vivenciar um acontecimento grandioso, pois quando criança, a sua mente era mais fértil no que diz respeito ao inusitado. Nada encontrou, o que a deixou ainda mais frustrada. Como iria se enveredar por aí sozinha? Sem namorado, tampouco amigos, receava estar impossibilitada de seguir adiante com o suposto cronograma literário. Repentinamente, lembrou que tinha colegas da época universitária, inclusive, estes tendiam a convidá-la para irem acampar na praia, o que ela obviamente respondia em negativa, porque não lhe parecia sensato sair com homens para um lugar desértico.

Dois mil e dezoito estava escorrendo vagarosamente entre os dedos da Susana, aquilo a deprimia a tal ponto que, num rompante, decidiu que não passaria mais um Réveillon sozinha, lamentando a ausência de um amor. Estava farta de esperar o grande momento, sabia que precisava trazer à tona aquele eu desbravador dos tempos de outrora. Sacou o smartphone no bolso esquerdo do seu jeans surrado e efetuou uma chamada para Eduardo, em seguida, também telefonou para Jonathan. Ficou acordado que viajariam à noite para alguma praia de Alagoas, mas ainda não sabiam qual seria.

Su nunca ia à praia, por isso esqueceu de que não havia sequer um biquíni no seu guarda-roupas. Aflita, foi ao comércio às pressas com o intuito de comprar ao menos um maiô. Após diversas tentativas, finalmente encontrou um biquíni preto feito azeviche. Se demorou defronte o espelho, contemplando o corpo curvilíneo que contrastava maravilhosamente bem com o negrume das peças, porque detinha uma alvura primorosa.

Quando chegou em casa, o anoitecer já ameaçava engolfar os últimos raios solares. Por alguma razão, o vislumbre do crepúsculo a deixou reflexiva, como se o dito cujo fosse detentor do mais insondável enigma. Ignorando a sensação estranha, tomou banho e se arrumou depressa, ansiosa pelo que viria no instante seguinte.

Eduardo, o primeiro colega ao qual havia telefonado, tinha carro e era acostumado a fazer viagens noturnas. Jonathan era um pouco recluso, entretanto, a ânsia por experienciar uma proeza era mais forte que a hesitação que palpitava em seu coração. Assim como Su, ele pressentia o mistério pairando no ar.

Às 18h47min, Eduardo chegou à residência de Susana e juntos foram ao encontro de Jonathan. No céu, havia poucas estrelas, mas a lua se fazia presente. A euforia se ramificava no íntimo de Susana e a dominaria por inteiro quando o vinho a tragasse. Su não precisaria exagerar para ficar alta, o álcool sempre a vencia facilmente.

Como não haviam planejado para qual praia iriam, conversaram sobre qual delas seria mais agradável. A Praia da Barra de São Miguel era agradável, mas vários carros estavam se encaminhando para lá e aquilo pareceu desanimador para eles que desejavam acampar num local silencioso. A Praia do Gunga e da Ponta Verde também eram boas opções, porém foi na Praia do Francês que escolheram passar a virada de ano.

Ao som de Highway to Hell, Eduardo buscava uma vaga para estacionar o carro. Achando um espaço aparentemente compatível com o automóvel, ali se firmou, não percebendo que havia bastante areia e o carro poderia ficar atolado. Estando estagnado, nada poderiam fazer senão esperar o sol raiar para solicitarem o auxílio de um guincho.

O local escolhido para passarem a noite era paradisíaco, apenas a melodia do mar podia ser ouvida. Assustada, Susana olhava de um lado para o outro, imaginando que a qualquer momento poderia aparecer um assassino em série e estripar cada um deles. Afastando a paranoia, ajudou os rapazes a armarem as barracas à luz do luar, distraindo-se quase que inteiramente. Comeram e beberam admirando as ondas do mar que estavam com uma animosidade exuberante, aquilo os empolgou a falar sobre os planos para o próximo ano e o que seria deixado na maré.

Na empolgação da conversa, as horas voaram. A chegada de dois mil e dezenove foi anunciada pelos fogos de artifícios que beijaram o céu e o fizeram explodir num estonteante arco-íris. O trio, embasbacado com o espetáculo, parecia feliz. Ninguém poderia imaginar que o mal se fez presente antes mesmo de chegarem à praia, o inominável estava entre eles, sorrateiro tal qual um salteador e disposto a acolhê-los em seu ninho medonho repleto de boas intenções.

Depois do show reluzente, não demorou muito para que fossem dormir. Àquela altura, chuviscava e o frio se achegou devagar, fazendo com que quisessem se recolher. Su fez de tudo para não sujar demais seus pequenos pés de areia, senão acabaria sentindo dificuldade para dormir com a consciência sussurrando em seus ouvidos o quão imunda ela estava. Deitou-se e por uma fração de segundos, tornou a ser acometida pela sensação de mais cedo, o que a fez estremecer debaixo da coberta.

De supetão, Susana foi despertada por um barulho ensurdecedor. Era o alarme do carro, e ela pensou de imediato que um ladrão haveria tentado abrir o automóvel. Jonathan estava fora da barraca trajando um pijama dos Ursinhos Carinhosos. Seus olhos arregalados fizeram com que Susana ficasse ainda mais aflita, e perceber a ausência de Eduardo deixou a atmosfera ao redor deles ainda mais densa.

— Su, Edu sumiu. Estou com receio de que alguém haja o ferido quando ele foi de súbito ao encontro do carro. Certeza que foi um ladrão tentando levar as nossas coisas da mala.

— Calma, Jonathan. Talvez ele esteja caçando o invasor, não pense o pior agora, não deixe a situação com cara de filme de terror.

— Acho que a situação fez isso por si só, Su — Murmurou Jonathan mecanicamente, encarando a escuridão que parecia encará-lo de volta.

Assim que o rapaz fechou a boca, sentiu uma dor lancinante em seu pescoço, mas não teve tempo de identificar o que havia acontecido, pois a escuridão o tragou. Sangue encharcou a areia próxima de onde o corpo inerte do rapaz desabou. Susana quase engasgou com o grito que irrompeu da sua garganta frente a visão horrenda que se desenrolou diante dos seus olhos. Eduardo tinha uma faca enorme em sua mão direita que, erguida ao céu, foi iluminada pela lua que agora parecia chorar sangue.

Por um instante, Su nada fez, estava em choque. Contudo, como se a triste realidade a houvesse esmurrado com bastante força no estômago, ela grunhiu de dor e correu em direção a barraca. Ela não tinha uma arma para se defender, ainda assim, a barraca parecia um refúgio para ela. Quando criança, o cobertor era sua defesa dos monstros que se escondiam na penumbra do seu quarto, e aquilo era um reflexo do seu eu-menina manifesto por conta do desespero que a dominou.

O lobo em pele de cordeiro não perdeu tempo e rasgou a barraca para fisgar de uma vez por todas a sua segunda vítima. Susana engatinhou apavorada, engolindo areia quando foi empurrada com força contra o chão. Eduardo gargalhava, se divertindo ao ver a aflição da mulher que ele sempre quis possuir, e ela o negava por não considerá-lo viril o bastante, assim ele concluiu. Susana sufocava, porém sabia que aquele não poderia ser o seu fim. Ela nem havia escrito o seu romance gótico, tampouco encontrado o seu companheiro romântico. Se forçando a driblar o algoz, encheu as mãos de areia e jogou para o alto, ela sequer imaginou que Eduardo estava tão próximo, sentindo o seu cheiro e saboreando antecipadamente o que faria com ela antes de estripá-la.

Os olhos do nêmesis foram atingidos em cheio pela areia e ele urrou de ódio e proferiu impropérios à Su, jurando que a esfolaria assim que pusesse as mãos nela. Susana correu, seu coração batia tão forte que parecia estar prestes a bater em retirada através da sua boca escancarada de horror. Olhou para trás e viu que Eduardo corria em sua direção. Imaginar que o objeto cortante logo estaria fecundo em sua pele, a rasgando com ferocidade, tornou seu esforço anterior nulo, e ela se rendeu, caindo ao chão de joelhos.

De cabeça baixa, prestes a ser assassinada, Su avistou a garrafa de vinho que havia sido largada ali, quebrada. Ela não parou para pensar, agarrou a garrafa e, fechando os olhos, ergueu o mais alto que pôde a parte mais afiada. Eduardo pendeu sobre ela, engasgando com o próprio sangue que jorrava da sua garganta. Su ficou estarrecida. Não podia acreditar que ainda estava viva e que o monstro que assassinou Jonathan e faria o mesmo com ela, estava morto. Passados alguns minutos, ela se levantou. Encarou toda a situação e sentiu calafrios ao perceber que estava aliviada por serem eles ali, mortos, e não ela.

Removendo a areia do corpo, arrumou o coque e rumou à estrada. Era perigoso uma mulher caminhar por aí durante a madrugada, mas Su sabia que o pior havia passado, ao menos por ora. Longe da areia, avistou carros indo e vindo de um lado para o outro. Já não podia ouvir o cantarolar do mar, porém era banhada pelo luar que persistia em renegar a chegada do astro-rei. Um riso assombroso se viu, até mesmo a escuridão recuou ante aquela visão. Susana sabia de cor o que precisava naquele momento: caneta, papel e o silêncio sepulcral como trilha sonora para a sua narrativa gótica finalmente.

Por Jeane Tertuliano

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