CONTOS – O vento sobre as tintas por Júlia Gomes

CONTOS – O vento sobre as tintas por Júlia Gomes

Alguns dizem que o as pessoas nascem com dons artísticos, mas isso não é verdade, as artes não são dons concedidos por deuses que nos escolheram ao acaso para nos alimentar com sua criatividade. Música, pintura, desenho, tecelagem, escrita, culinária, dança e diversos outros são habilidades que desenvolvemos desde pequenos, pequenas ideias que vimos nas nossas caminhadas embalados nos braços de nossas mães quando ainda somos bebês. Estímulos que ficam ali, bem no fundo de nossa mente apenas esperando para se manifestar em alguma hora.

E ainda existe aqueles com os sentidos encobertos, que apreciam o mundo de maneiras diferentes, tornando o mundo que vemos uma das várias possibilidades primitivas das sensações. Fazendo com que os homens sempre tivessem tido os questionamentos de: Como podemos confiar no que sentimos? Isso é real ou não? Como vamos saber se estamos sonhando ou de algum modo sendo frutos da imaginação de alguém?

Não sabemos, e é isso que nos inebria de tentar sentir tudo que o mundo tem a disposição, o inebriante medo. Tudo isso se passava na cabeça de Iris, seus pais haviam acertado em escolher um nome que representava a área circular e colorida do olho que circunda a pupila e controla a quantidade de luz que entra no olho. Ela sabia que não deveria continuar tendo tais pensamentos ou continuar lendo livros de filosofia que pegava escondida da biblioteca da família, escondendo no meio de livros sobre etiqueta feminina e como cuidar bem de seu marido.

Na verdade, diziam que o melhor teria sido ela nem sequer ter aprendido a ler, afinal aqueles que não tem conhecimento e vivem sem perspectiva não se revoltam e são mais domesticáveis, mas isso foi um pequeno acordo que seu pai fez com seu noivo. Ele não sabia ler e não queria aprender, e gastar todos os dias com um profissional que soubesse ler era um custo desnecessário por algumas frases.

Então era mais vantajoso ter uma jovem esposa que sabia ler e seu aprendizado seria todo pago pela própria família. Mas quanto mais a menina lia mais ela queria aprender, mesmo que a biblioteca fosse trancada pela governanta isso não a impedia de buscar conhecimento. Os livros que a eram entregues para aprender falavam apenas sobre obedecer ao marido incondicionalmente, preparar comida, cuidar dos filhos, receber as visitas, se portar a mesa e se embelezar.

Nada disso a interessava ou a deixava entender sobre o mundo a sua volta, tudo parecia limitar-se ao terreno da propriedade de seu marido e as pouco prováveis viagens que ela o acompanharia, isso a fazia se questionar sobre o que os homens liam para aprender sobre o mundo? E pouco a pouco, escondida na lareira suja da biblioteca para que quando a governanta passasse não a percebe-se, afinal quem se esconderia em uma lareira?

Ao devorar os livros sobre política, guerras, economia e o mais marcante, viagens, ela descobriu que o mundo era vasto, através dos livros era como ver por uma fina fresta na janela o mundo. Ela sabia que não teria como conhecer tudo isso sozinha, não sem um homem que provesse tudo, nas histórias de amor que ela lia mostravam rapazes fazendo de tudo para se casar com a mocinha e realizar os desejos dela.

Mas Iris sabia que isso não irá acontecer com ela, seu noivo era velho, tinha apenas um pouco mais de dinheiro que sua família, não tinha estudo, embora isso não significasse que fosse um tolo ou não tivesse conhecimento, mas pelo modo bronco que ele se apresentava era evidente que era rígido e não realizaria seus desejos. Enquanto sua menarca não a ocorresse estaria segura, mas seu corpo já demonstrava sinais de que logo isso ocorreria por isso Iris se afundava em escrever, desenhar, pintar e dançar sua história enquanto ainda podia.

Desejando de todo coração entrar em suas pinturas de campos pacíficos e pessoas dançando e viver ali. Se afundando tanto nas telas que as vezes seus cabelos se emaranhavam na tinta e sua testa em busca do calor e conforto humano recebiam a tinta gelada de cores quentes do sol, grudando-se em seu corpo como um abraço de desespero.

Em seus sonhos ela ia para o mar, um mar turbulento e vasto em mil cores de azuis e um seu de raios de milhares de cores brigavam, ela se afogava e lutava contra aquela água acrílica. Tentava voltar para a superfície a todo custo não permitindo que aquilo entrasse em seus pulmões, fechando os olhos com medo da escuridão infinita dos oceanos, tal como o guarda-roupa que as vezes a trancavam para receber seu noivo, suas pernas se debatiam tal como uma dança frenética, um balé rígido que tentava partir o corpo da bailarina. Quanto mais lia, dançava, pintava e escrevia mais pesadelos a envolviam, foi então que um dia ao ver sua cama viu um borrão vermelho nos lençóis brancos.

Pegou o lençol e o escondeu por baixo das anáguas como uma espécie de frauda, indo para o banheiro antes que a governanta a visse, tentando tirar a mancha que já estava ficando marrom. E então escutou uma batida na porta do banheiro e com uma risadinha escutou a mulher parabenizá-la. Ao abrir a porta vermelha de vergonha viu sua governanta segurando o lençol debaixo o qual havia vazado algumas gotinhas mínimas, quase imperceptíveis, mas quando ela viu que Iris esta enrolada no lençol de cima sorriu pois havia acertado na suposição, e Iris havia se condenado pelo descuido, esquecendo por causa da turbulência de sua mente que a governanta sempre a questionava sobre cada gota de sangue nos lençóis, para examinar se seria um joelho ralado ou menarca.

A condenação foi dada e Iris agora que era uma mulher não poderia fazer mais as coisas que a anestesiavam do mundo, mesmo com fortes dores que pareciam rasgá-la por dentro, enjoou que a deixava zonza, queimação no estomago e vontade de ir ao banheiro toda hora, tinha de continuar a mesa e mostrando suas habilidades em comer em público, costurar um pequeno lenço de presente ao marido e ter conversas constrangedoras com sua mãe. Além da despedida que seria ela não poder ver mais seus pais, seu quarto iria para o próximo filho que mãe estava esperando e ela só poderia voltar para casa depois do nascimento do primeiro filho.

Ao chegar de noite e se banhar para poder dormir e se preparar para o dia de experimentar o vestido de casamento, a exaustão tomou seu corpo e Iris dormiu na banheira. Durante mais um pesadelo que se afundava no mar, inicialmente ela lutou mas depois lembrou-se do que viria pela frente em sua vida e deixou-se ser levada para o fundo do mar, quando o ar começou a sair de seus pulmões buscando a liberdade as gaiola que era o corpo de Iris, ela enfim abriu os olhos e viu seres deslumbrantes que nunca achou serem possíveis, o mundo ao seu redor era cercado de escuridão mas também estava cheio de luz de animais que mais pareciam véus de noivas.

Sua cabeça latejava enquanto o ar escapava, mas ela seguia os animais sentindo o corpo pesado, mas ao mesmo tempo livre das limitações do ar, sua dança enquanto acompanhava era cheia de leveza e vendo aquelas bolhas flutuantes coloridas que mais pareciam tintas infinitas que estouravam ao toque, iluminando a água acrílica. Seu pulmão então busca ar de novo ao inspirar, deixando com que entrasse todo aquele mundo no corpo de Iris.

Ao amanhecer a governanta procurou Iris pelo quarto e ao abrir o banheiro se chocou ao ver como se todas as tintas da sala de estudos tivessem sido jogadas na banheira e decido pelo ralo, deixando a banheira em um emaranhado de cores. Ao correr para a sala de estudos pronta para punir Iris por ter agido como uma criança revoltada não viu nada fora do lugar, todos os potes de tinta estavam fechados e o cômodo estava do mesmo jeito que havia deixado quando proibiu Iris de usá-lo. Mas a governanta não reparou que ali, escondido na lareira estavam páginas queimadas de um livro antigo de viagens e uma bela pintura de uma ilha cercada por águas-vivas que protegiam seu entorno de mentes que não estivesse preparadas para a liberdade da arte.

Por JÚLIA GOMES

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