CRÔNICAS TONS DO COTIDIANO – A história de Luiz Caçador Por Erick Bernardes

CRÔNICAS TONS DO COTIDIANO – A história de Luiz Caçador Por Erick Bernardes

 O leitor já viveu uma daquelas situações em que não sabe mais separar ficção de realidade? Pois é, eis o que me aconteceu:

 Estava eu a caminho do centro de São Gonçalo, quando o idoso de cabelos alvoroçados acomodou-se ao meu lado. O ônibus encontrava-se quase vazio, necessidade nenhuma de usar o assento preferencial. Sem contar o fato de tantos outros bancos vagos e assim mesmo ele insistiu em me fazer companhia. Estranho, esquisito, situação estranhíssima. O tal senhor puxou conversa sobre previsão do tempo. Disse que cairia granizo de manhã cedo, verdade, afirmou com segurança. Impossível. Fiquei com vontade de rir com a ideia de chover gelo, ainda mais com o mormaço irritante de fazer pescoço suar. Porém, até que em parte o assunto revelou-se normal. Esses bate-papos de meteorologia funcionam mais como introdução a conversas corriqueiras do que vontade de adivinhar chegada de chuva ou sol.

 “Não, meu senhor. Hoje não chove, mas que tá abafado, tá”, equilibrei a conversa.

 O idoso me perguntou onde moro e falei. No entanto, meia dúzia de frases soltas foi suficiente para dar a entender que o velho antipatizava com meu bairro. “Também não gosto”, segredei, “mas fazer o quê, se é lá que minhas finanças alcançam o aluguel?”. Tentei desconversar, não deu, aquele senhor sombrio não fazia nada senão me causar certo desconforto. Claro, conversa mais sem nexo, eu, hein! Uma enxurrada de questionamentos desnecessários, chegava até parecer entrevista de emprego.

 Foi quando decidi perguntar sobre a vida dele também. Sim, reconheço, usei de impertinência. Dizem os psicólogos que a chatice, quando bem manejada, serve de antídoto ao aborrecimento gratuito.

 — E o senhor, mora onde? Diz pra mim o nome do seu bairro?

 — Nasci em Maricá, meu filho, e me criei em Luiz Caçador.

 Assim me segredou o protótipo de matusalém. Insisti na conversa, agora é a minha vez de aporrinhar, pensei. Afirmei existir certa lenda baseada no nome do bairro de Luiz Caçador cuja origem versava sobre um bruxo de má índole que vivia para as bandas de lá. Não sei se a história bate com a verdade, mas confesso que isso de sobrenatural me dá arrepios ainda hoje — e na hora a lenda nem pareceu muito irritar o tal senhor.

 — Que nada, rapaz, histórias que inventam por aí. O bairro é ótimo, nasci em outro lugar, mas me criei pelos arredores. Eu até vivia bem e tranquilo na simplicidade. Na minha mocidade pouca coisa me bastava pra sobreviver. Armava arapuca, pegava passarinhos e vendia na feira. Nos fins de semana caçava caranguejos e jacarés no lago do mangue e servia com farofa de milho e caruru azedo, virava banquete para toda família. Delícia é o sabor do jacaré, precisava você provar. Alimento saudável. Hoje é proibido montar armadilha na mata, o mangue tá morrendo devido à poluição, cortar lenha nem pensar. Por isso vivo agora de minguada aposentadoria e peço remédio na farmácia popular. Se não fosse meu serviço de ajuda espiritual que montei no terreiro eu até entrava em depressão. Sim, meu jovem, acredite, eu dirijo lá no bairro um espaço de tratamento de almas para pessoas carentes da atenção que ninguém hoje em dia quer dar. Não cobro nada, psicologia popular baseada na generosidade e no amor ao próximo.

 Terminada a narrativa sincera, o velho me pôs a mão na cabeça e levantou para descer. Antes de saltar do coletivo murmurou palavras incompreensíveis, como se não fossem dirigidas a mim. Estranho, seriam sortilégios ou rezas sussurradas? Sensação de obscuridade me fez arrepiar a pele; confesso que fiquei com medo. Agradeci a conversa e ganhei um abraço demorado. Quando as duas pernas do meu novo amigo caçador de jacarés e caranguejos já alcançavam a porta de saída perguntei-lhe o nome:

 — Luiz Pereira às suas ordens, mas pode me chamar só de Luiz.

 Só lembro que o coroa respondeu e sumiu. Sim, despediu-se e evaporou assim do nada quando o céu se tornou nublado. Certamente me distraí com o roncar das trovoadas quando tempo fechou instantaneamente. Que loucura! Desnorteado, desci do ônibus dois pontos depois que o ancião me deu tchau. Já na calçada e ainda com a história do tal passageiro em mente, senti uma pedrinha cair das nuvens. Mais outras bolinhas geladas atingiram-me nas costas, mais outras… e outras, centenas delas espelharam-se pela calçada. Não eram pedras obviamente, era enxurrada gelo, chuva de granizo. Que história! Pois é, Luiz Caçador tinha razão, tive que sair correndo.

Por ERICK BERNARDES

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