CRÔNICAS TONS DO COTIDIANO – Microcrônicas

CRÔNICAS TONS DO COTIDIANO – Microcrônicas

Mais uma edição desta revista e desta vez eu convidei uma amiga querida, a escritora Jussara Helene.

Refletimos sobre o medo, aquele trauma de infância que estará ali, martelando de tempos em tempos e como seguir adiante.

Na edição passada fechamos o diálogo com as gentilezas e dessa vez iremos refletir sobre as banalidades da vida.

 

Autora convidada:

Jussara Helene, Escritora e cirurgiã-dentista. Natural de Barretos reside em Ubatuba, litoral Norte de São Paulo, onde reascende sua paixão pela literatura. Obras Publicadas: Vidas Entrelaçadas, autobiografia. Editora Viseu. Trama, poesia. Editora Minimalismos Ponto Cruz, contos. Editora Penalux. E-books: Limiar, conto Noir, Editora Lume. Bicho-Chama, conto Noir.  Editora Lume.

 

A galinha

 

Vem comigo, imagine a cena. Uma criança de sete anos com medo da galinha solta na casa da vizinha. De maneira “terapêutica” esfregam a galinha no colo da menina. A cena aparentemente inocente esconde dois seres apavorados a criança e a galinha.

A sina da galinha já dá para imaginar, mas isso é outra conversa.

Não, não perdi o medo, pelo contrário ainda hoje meu corpo se contrai de modo involuntário quando vejo uma. O grande estrago foi o medo de demonstrar o medo. Parece algo bobo, mas foi um grande buraco em mim. Menina mole, tem medo de tudo, gargalhadas sem fim. E com isso a menina decidiu ser forte (pelo menos por fora), algumas vezes um grito denunciava meu pavor, e me sentia mal por ser tão “fraca”.

Uma vizinha, uma galinha e um estrago por dentro que só se dissolveu ao longo do tempo.

Hoje sou uma pessoa com poucos medos, não sei se superados ou anestesiados por dentro. E termino essa crônica com uma interrogação.

No decorrer de nossas vidas quantas falas foram revestidas de vizinhas com suas galinhas? Determinando o que se pode sentir ou não?

                                     Jussara Helene       

 

Pássaro cativo

 

Minha vida foi nutrida com muitos medos: voar, viver, ficar só, cuidar de mim. Estive sempre ali, protegida pelos olhos gentis dos meus criadores. É gostoso demais sentir segurança a cada passo inseguro, até que chegue a hora de crescer. Não fui empurrada do ninho, me joguei no precipício da vida por instinto. Mas o medo, andou de mãos dadas comigo o tempo todo, e criei uma corda para um movimento de soltura seguro. A vida não é para aqueles que sentem medo, na lei da evolução, os medrosos morrem primeiro.

Hoje a corda de pouso está se rompendo pelo tempo, e eu sofro com medo da extinção iminente. Pássaro preso em cativeiro, quando devolvido a natureza morre.

Enquanto a ampulheta tece as areias do tempo eu reflito sobre o medo, a liberdade e qual instinto irá ganhar: medo ou sobrevivência?

                                          Danyelle Schetine

 

 

Enquanto pensamos sobre o medo, resolvemos dobrar a aposta e investigar o que está lá embaixo do tapete, aquela imperfeição que a maioria das pessoas preferem ocultar nas redes sociais:

 

 

Overdose

 

Fernando Pessoa no Poema em Linha Reta faz uma crítica ainda atual, somos rodeados por pessoas perfeitas, felizes, virtuosas.

Em tempos de internet a autoimagem idealizada se materializa nas telas. Passamos a crer na “realidade” das redes sociais. Nosso foco é a inatingível idealização do ser. Nos recriamos nas mídias, realização pessoal e profissional. Mas há um buraco no peito.

Fácil enganar os outros, difícil enganar a si mesmo, uma hora a verdade bate à porta.

Flaira Ferro por volta de 2014/2015 chega com flecha certeira. A música, Quero me curar de mim, desnuda nossa hipocrisia. Atravessa a bolha midiática, rompe as barreiras da espiritualidade forjada.  Quem não se lembra ou não conhece vale a pena beber desta composição que nos rasga e escancara sobre nosso maior inimigo, ele habita no próprio umbigo. E isso dói, dói muito.

Não precisamos e não somos heróis. Estes estão morrendo de overdose nas redes sociais.            

Jussara Helene

 

Pílula da alegria

 

Precisei me afastar das redes sociais por um tempo.  Considero um movimento sabático, de tempos em tempos perder seguidores em troca da paz. É que para estar nas redes, há de se tomar a pílula da alegria. Fotos lindas, sorridente, viagens, festas, encontros com muitos amigos e familiares. Ninguém fala do cartão de crédito no Serasa, da geladeira vazia, das brigas em família, do cansaço, da dieta fracassada. Nas redes, tudo é defendido com bandeiras de positividade. Nome sujo vira esperteza, geladeira vazia minimalismo, brigas familiares são traços da grande família, e por aí vai. O que me intriga não é isso, fico pensando nos efeitos colaterais dessa pílula. O número de suicídios só aumenta, e não é mais setembro que é amarelo. Onde fica então a alegria?                      

Danyelle Schetine

 

 

O furto da essência

 

Lá fora um pássaro canta, uma buzina toca, carro acelera, esmerilho grita competindo com o latido do cão. Ao fundo uma música clássica. Barulho de moto. Sirene do resgate.

Quantos detalhes neste pulsar da vida me distraem dos imperceptíveis sinais do essencial?

Faço uma pausa.

Meu coração bate um pouco descompassado. Quer sair de dentro do peito. Conhecer o quintal. Até agora apenas fotografado com os olhos. Passear entre as árvores, sentir o cheiro da terra, voar com os pássaros.

Uma flor de maracujá curiosa do telhado da garagem observa meu coração caminhando. A outra já pálida morre para  o fruto nascer. Um beija flor celebrando.  As cachorras explorando os cheiros. As orquídeas nativas falando de resiliência. Tanta beleza em um simples quintal.

Penso no tema proposto para a crônica da semana: da banalidade da vida ao essencial.

Escrever é isso, transmutar o trivial, o cotidiano, o banal.

Se apropriar da essência que o dia a dia tentou furtar.

                                Jussara Helene

 

 

Gestos de dia

 

Banalidades me encantam. Percebi que a verdadeira alegria está ali. Nos pequenos gestos do dia, que de tão automáticos fixam na memória mas não ganham notoriedade. Banal é tirar o sapato que machuca os pés, sentir o piso gelado. Banal é o café que adoça e aquece minha língua cansada. É seguir meu gato para que ele aponte sua necessidade. Tomar um café com minhas amigas e ouvir a Mell declamando poemas. É ver meus filhos mostrando que estão do meu tamanho, orgulhosos por estarem crescendo. Eu, busco refúgio nas banalidades, onde a alegria é real e onde o amor realmente vibra. Fico pensando no que realmente é banal a cada pessoa que encontro. Uma excelente forma de iniciar uma conversa.

Danyelle Schetine

 

E com muita calma, silêncio reflexivo e muita gratidão neste coração que aprende a ser gentil, me despeço de vocês. Foi um café muito produtivo!!

Por DANYELLE SCHETINE

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