GRANDES AUTORES – Folclore tem cheiro de mato e de bicho

GRANDES AUTORES – Folclore tem cheiro de mato e de bicho

Quando penso em folclore, a primeira sensação que me vem é a de ancestralidade. Logo imagino costumes tradicionais populares e jeito de ser de gente do campo, das matas e dos sertões. Não sei se com vocês acontece o mesmo. Mas eu particularmente sinto cheiro de mato e de bicho que não se vê nos centros urbanos, do alto dos prédios esguios eletricamente iluminados. O folclore é pré-moderno.

Os cenários das cantigas e das lendas são os sítios que à noite metem medo em criancinhas ou adultos medrosos, com suas vegetações fechadas, sua escuridão intensa e seus ruídos assustadores, que agregam sentido a personagens como uma mula-sem-cabeça ou um lobisomem. Os espíritos que povoam as narrativas e a simbologia das danças são intimamente ligados aos quatro elementos físicos essenciais e aos ciclos da natureza, como um saci ou um curupira protetor da floresta ameaçada por caçadores. Banhar-se em rios e lagos, observar o transcorrer da noite enluarada, ouvir o canto dos pássaros, reconhecer animais predadores, sofrer metamorfoses profundas e materializar hábitos interioranos e crendices são algumas das ações tipicamente não urbanas que tecem os enredos folclóricos mais clássicos da nossa cultura, como de uma iara ou boitatá.

É essa a ambientação de origem do folclore, o imaginário fundador – de uns tempos idos em que o convívio entre humanos e outros seres reais ou fantasiosos (presenciados ou não em aparições, porém sempre vívidos, isso é verdade) era prevalescente em nossas jornadas e tomadas de decisão, diferentemente da modernidade ocidental em diante, em que se rompem antigos paradigmas para se buscar inovação, transgressão, mecanização e subjetivação.

Folclore é coletividade, modernidade é aprofundamento de subjetividades mesmo que múltiplas e complexas; folclore é repetição, modernidade é renovação; folclore é encantamento mágico, modernidade é valorização do conhecimento científico; folclore é tradição oral rítmica, modernidade é desmemória escrita; folclore é espiritualidade, modernidade é religião. Corro o risco de seguir uma linha dualista e simplificatória dos termos, sei disso, mas é com a intenção de simplesmente brincarmos um pouco com esses contrastes, e lembrarmos que, se muitas vezes o folclore nos parece ingênuo ou anacrônico, talvez seja porque nós estejamos nos esquecendo de suas raízes míticas.

Nada mais mítico, na minha percepção, do que um grupo de pessoas confraternizando em roda. Aliás, essa imagem me trouxe a recordação de um período da minha infância (como uma garotinha citadina) em que mais estive próxima do folclore na prática: dançava num grupo tradicional numa comunidade suíça em Helvetia, um bairro-satélite da minha cidade natal, com lenço na cabeça, vestido, avental e meiões, ao ritmo de melodias de diferentes cantões e no compasso de muitas rodas e ziguezagues. Posso afirmar hoje com segurança que todos aqueles paramentos e rituais me ajudaram muito a construir quem eu era e também quem eu não era, por identificação e diferenciação. Somos sempre só parte de algo, não é?, e o folclore contribui para nos mostrar e nos esconder espelhos.

Estar de mãos dadas e dançar ao som de instrumentos ancestrais por ocasião de uma farta colheita. Reverenciar conquistas da comunidade saudando espíritos da floresta e agradecendo por tudo estar como está. O folclore de qualquer país é a reunião de inúmeros elementos de significação e de reconhecimento, que marcam processos, escolhas, aprendizagens. Da música ao vestuário, da dança à literatura, da fantasia infantil à celebração grandiosa, da culinária à história contada ao redor da fogueira. São ricos os repertórios a serem estudados pelos folcloristas.

Nesse sentido, gostaria de partilhar com vocês, como sempre faço aqui na The Bard, alguns clássicos do folclore nacional, que incluem sabores da literatura adulta e infanto-juvenil.

O primeiro é “Dicionário do Folclore Brasileiro”, de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), historiador e etnógrafo potiguar que dedicou muitos anos de sua vida ao laborioso percurso de recolher e analisar lendas e tradições da nossa história. A obra, estruturada em ordem alfabética, reúne muitas informações resultantes de pesquisas de campo e de fontes bibliográficas sobre cantigas, mitos e histórias populares do Brasil, sendo uma referência nesse campo de estudos. O saudoso Drummond graciosamente chamava o tal dicionário de Cascudo. Outra curiosidade é que a filha, Anna Maria Cascudo Barreto (1936-2015), seguiu alguns dos passos do pai, também formando-se historiadora e se destacando por seu pioneirismo no Rio Grande do Norte, tendo sido a primeira mulher a atuar em um júri no Estado, uma das fundadoras da Academia Feminina de Letras e ocupante de cadeira na Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

 

O segundo é a peça teatral “O Auto da Compadecida”, do dramaturgo, artista e poeta paraibano Ariano Suassuna (1927-2014). Apesar de retratar personagens populares típicos do Nordeste brasileiro, reafirmando o caráter regional das obras folclóricas, evidenciadoras de suas raízes mais genuínas, as muitas situações satíricas e as críticas e reflexões sociais, costuradas pela sabedoria própria de Ariano, fazem do “Auto” uma obra emblemática, eu diria até universal naquele sentido de livro contundente, que desvela condições humanas profundas. Esse mérito é mais que suficiente para que esteja aqui na nossa lista.

 

 

O terceiro e último é “O Sítio do Picapau Amarelo”, do escritor, editor e tradutor paulista Monteiro Lobato (1882-1948). Escolhi essa obra para a nossa conversa porque mescla personagens do folclore brasileiro, como Saci, Cuca e Lobisomem, com personagens modernas realistas, como as crianças Pedrinho e Narizinho, e fabulistas, como a boneca falante Emília, o que muito provavelmente tenha proporcionado, desde a época de seu lançamento em 1920, ao público de leitores infantis um primeiríssimo contato com o folclore e seu característico jeito de ser. Além disso, o Visconde de Sabugosa é um personagem da obra de Lobato que me tocou de modo especial mais recentemente (cá estou com outra bela recordação), porque meu filho foi convidado por sua professora do ano passado a ser o próprio Visconde na Feira do Conhecimento, que homenageava alguns personagens importantes da nossa literatura. Imaginem meu orgulho ao vê-lo de chapeuzão verde e franjas falsas de sabugo, todo feliz, explicando aos pais visitantes quem era ele.    

 

 

Nossa incursão ao folclore poderia se estender, chegando a outros nomes relevantes no cenário, inclusive de autoras que acabei deixando sem o merecido destaque, como a querida jornalista e escritora carioca Cecília Meireles (1901-1964), que, paralelamente às atividades de poeta e pedagoga, atuou como folclorista, criando, por exemplo, entre 1926 e 1933 uma série de desenhos para estudar gestos e ritmos da cultura negra no Rio de Janeiro, e integrando a Comissão Nacional do Folclore. Mas certamente surgirão outras oportunidades de lhes dar espaço aqui na The Bard. Afinal, esse já é o nosso folclore.

Também não tratei das adaptações ultra contemporâneas das lendas tradicionais no universo do audiovisual. Filmes e séries de TV e streaming têm trabalhado personagens e enredos do nosso e de outros folclores, como “A Cidade Invisível”, com 2 temporadas, lançada em 2021, de criação de Carlos Saldanha e produção da Netflix. Muitos dos seres folclóricos velhos conhecidos nossos aparecem nessa releitura investigativa dramática. Mas foi o que eu disse. Para mim isso já não é bem folclore. Me deixa ainda mais distante lá daquela floresta, nada familiar, onde me sentiria assustadoramente perdida, sem saber se confiar ou não na travessura de um saci.

Até a próxima!

 

 

Por VANINA SIGRIST

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