MÚSICA – A Arte Musical Cigana

MÚSICA – A Arte Musical Cigana

 Saudações caros(as) leitores(as)!

 No artigo desta edição da nossa amada revista, vos trago uma breve história de um povo e sua arte que há séculos exercem tanto fascínio, bem como despertam tanta admiração e curiosidade – não me refiro a um povo específico, mas sim a um conjunto de diferentes etnias comumente denominadas como povos ciganos, e sua riquíssima cultura, música e dança.

 

 Breve conceituação histórica

 A história dos povos ciganos remonta a períodos imemoráveis da civilização humana, e, em razão da ausência de uma história escrita, a origem e a história inicial dos povos roma foram um mistério por muito tempo. Até meados do século XVIII, teorias da origem dos roma se limitavam a especulações. No final do século, antropólogos culturais levantaram a hipótese da origem indiana dos roma, baseada na evidência linguística – o que foi posteriormente confirmado pelos dados genéticos.

 Assim sendo, “ciganos” é um exônimo para romani, ou seja, uma designação para um conjunto de populações que têm em comum a origem indiana e uma língua (o romani) originária do noroeste do subcontinente indiano. Também são conhecidos pelos termos roma, boêmios, gitanos, calons (no Brasil), quicos (em Minas Gerais e São Paulo), calés e calós. Segundo um estudo feito pela revista Current Biology, a diáspora dos ciganos começou há cerca de 1500 anos.

 Na Europa, esses povos são subdivididos em diversos grupos étnicos:

 Roma (em singular: rom, termo que, traduzido para o português, significa “homem”), presentes na Europa centro-oriental e, desde o século XIX, também em outros países europeus e nas Américas;

 Sinti, encontrados na Alemanha, bem como em áreas germanófonas da Itália e da França, onde também são chamados manoush;

 Caló, os ciganos da Península Ibérica, igualmente batizados de “gitanos” embora também presentes em outros países da Europa e na América, incluindo o Brasil.

 Romnichals, principalmente presentes no Reino Unido, inclusive colônias britânicas, nos Estados Unidos e na Austrália.

 Além de migrarem voluntariamente, esses grupos também foram historicamente submetidos a processos de deportação, subdividindo-se em vários clãs, denominados segundo antigas profissões e procedência geográfica, que falam línguas ou dialetos diferentes. Ao longo da história, houve também diversas perseguições e genocídio de muitos grupos ciganos, inclusive durante o regime nazista.

 Com essa quantidade de diferentes clãs, e as migrações e imigrações tão características dos povos ciganos, a cultura cigana não poderia ter qualquer outra característica que não ser riquíssima, tanto quanto universal; a própria bandeira cigana representada por uma roda vermelha de carroça sobre um fundo azul e verde representa muito do estilo de vida cigano – a roda vermelha no centro da bandeira simboliza a vida, representa o caminho a percorrer e o já percorrido. A tradição, como continuísmo eterno, sobrepõe-se ao azul e ao verde, com os seus aros representando a força do fogo, da transformação e do movimento. O azul representa os valores espirituais, a paz, a ligação do consciente com os mundos superiores, significando libertação e liberdade. O verde representa a Mãe Natureza, a terra, o mundo orgânico, a força da luz do crescimento vinculado com as matas, com os caminhos desbravados e abertos pelos ciganos. Representa o sentimento de gratidão e respeito pela terra, de preservação da natureza pelo que ela nos oferece, proporcionando a sobrevivência do homem e a obrigação de ser respeitada pelo homem, que dela retira os seus suprimentos, devendo mantê-la e defendê-la.

 Além do mais famoso lema cigano: “A Terra é meu lar, o céu é meu teto e a liberdade é minha religião.”

 

 Das artes

 De uma maneira geral, nas artes, os contos e narrativas de tradição oral, ritmados por repetições paralelísticas, transmitem a história do grupo ou destinam-se a distrair e divertir. São a memória desse povo sem escrita. Neles está presente a poesia, que também se manifesta no canto.

 Já na dança, a história é ainda mais curiosa. Quando os ciganos deixaram o Egito e a Índia, eles passaram pela Pérsia, Turquia, Armênia, chegando até a Grécia, onde permaneceram por vários séculos antes de se espalharem pelo resto da Europa. A influência trazida do oriente é muito forte tanto na dança quanto na música cigana – hindu, húngara, russa, árabe e espanhola. Esta última está refletida no ritmo dos ciganos que habitaram o sul da península Ibérica e criaram um novo estilo – o flamenco, o qual abordarei com mais ênfase ao longo deste artigo.

 Especificamente na música, diversos gêneros musicais foram criados e desenvolvidos pelos povos ciganos. O “dom” nato dos ciganos para a música instrumental, sobretudo no violino e no violão é reconhecido mundialmente. Existe um estilo típico de execução, o molto rubato, bem como escalas que remetem aos povos do oriente médio e da Índia – essas característica de música cigana influenciou grandes nomes da música erudita como Liszt, Brahms, Beethoven e vários outros. É especialmente da Hungria. Romênia e Espanha que são originários os músicos ciganos e os gêneros mais popularmente conhecidos.

 Dentre os estilos musicais criados pelos ciganos estão o ritmo baladi, oriundo do Egito com danças e movimentos que envolvem lenços, facas e até mesmo garrafas de bebidas nas mãos; a zapaderin, dança secreta das ciganas, que invoca o amor do cigano; os estilos manouche, sinti, kauderashs, manele; o “jazz manouche” ou “manouche jazz” mundialmente conhecido como gypsy jazz – em tradução literal, “jazz cigano” – é um dos estilos musicais ciganos mais conhecidos e difundidos, e, frequentemente caracterizado como tendo seu início com o magnífico guitarrista Jean “Django” Reinhardt na década de 1930. Django, músico de origem Rom foi o primeiro jazzman a influenciar músicos norte-americanos, num caminho reverso ao jazz saído de New Orleans; a rumba, ritmo também popularmente conhecido e reconhecido mundialmente como um estilo cigano teve seu apogeu com o grupo de ciganos franceses, filhos de ciganos espanhóis fugidos da Catalunha durante a guerra civil espanhola – o Gipsy Kings; e aqui chegamos ao flamenco, e este merece um capítulo à parte.

 

 Flamenco

 O flamenco é a música, o canto e a dança cujas origens remontam às culturas cigana e mourisca, com influência árabe e judaica. É indiscutivelmente o gênero musical de origem cigana mais popular mundo afora. A cultura do flamenco é associada principalmente à região da Andaluzia, sul da Espanha, assim como a Múrcia e Estremadura, e tornou-se um dos símbolos da cultura cigana. Em 16 de novembro de 2010, o flamenco foi declarado patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

 Originalmente, o flamenco consistia apenas de canto (cante) sem acompanhamento. Depois, começou a ser acompanhado por violão ou guitarra (toque), palmas, sapateado e dança (baile). O toque e o baile podem também aparecer sem o cante, embora o canto permaneça no coração da tradição flamenca. Mais recentemente, outros instrumentos como o cajón (uma caixa de madeira usada como percussão) e as castanholas foram também introduzidos assim como vários outros instrumentos como o violino, o celo e flauta; o que veio a engrandecer as nuances musicais além da tradicional guitarra.

 Muitos dos detalhes do desenvolvimento do flamenco foram perdidos na história e existem várias razões para essa falta de evidências históricas: os tempos turbulentos dos povos envolvidos na cultura do flamenco. Os mouros, os ciganos e os judeus foram perseguidos pela inquisição espanhola em diversos tempos; os ciganos possuíam principalmente uma cultura oral. As suas músicas eram passadas às novas gerações através de festas em comunidade; o flamenco não foi considerado uma forma de arte, sobre a qual valesse a pena escrever durante muito tempo. Durante a sua existência, o flamenco esteve dentro e fora de moda por diversas vezes.

 Foi nesta situação social e economicamente difícil que as culturas musicais de mouros e principalmente ciganos começaram a fundir-se no que se tornaria a forma básica do flamenco: o estilo de cantar dos mouros, que expressava a sua vida difícil na Andaluzia, os diferentes “compás” (estilos rítmicos), palmas ritmadas e movimentos de dança básicos. Muitas das músicas flamencas ainda refletem o espírito desesperado, a luta, a esperança, o orgulho e as festas noturnas durante essa época. Músicas mais recente de outras regiões de Espanha influenciaram e foram influenciadas pelo estilo tradicional do flamenco.

 A primeira vez que o flamenco foi mencionado na literatura remonta a 1774 no livro “Cartas marruecas”, de José Cadalso. No entanto, a origem do termo “flamenco” continua a ser assunto bastante debatido. Muitos pensam que se trata de um termo espanhol que originalmente significava flamengo. Contudo, existem outras teorias. Uma das quais sugere que a palavra tem origem árabe, retirada das palavras “felag mengu” (que significa algo como “camponês de passagem” ou “fugitivo camponês”).

 Durante a chamada “época de ouro” do flamenco, entre 1869 e 1910, o estilo desenvolveu-se rapidamente nos chamados “cafés cantantes”. Os dançarinos de flamenco, em sua maioria ciganos, também se tornaram numa das maiores atrações para o público desses cafés. Ao mesmo tempo, os guitarristas que acompanhavam esses dançarinos, foram ganhando reputação e dessa forma, nasceu, como uma arte própria, a guitarra do flamenco. Julián Arcas foi um dos primeiros compositores a escrever música flamenca especialmente para a guitarra.

 A guitarra flamenca e o violão são descendentes do alaúde, como já trouxe para vocês acerca das origens do violão moderno em um artigo anterior aqui da revista. Pensa-se que as primeiras guitarras (como é chamado o violão na Espanha) teriam aparecido em Espanha no século XV. A guitarra de flamenco tradicional é feita de madeira de cipreste e abeto, sendo mais leve e um pouco menor que a guitarra clássica, com o objetivo de produzir um som mais agudo.

 O flamenco é atualmente dividido em três categorias: flamenco jondo: é a forma mais tradicional do flamenco e que significa profundo, denso ou pesado. Está relacionado aos primeiros cantes e que perduram em sua maioria até os dias de hoje; flamenco chico: são todas as formas de espírito festeiro como nas bulerías, rumbas, tangos e alegrías e que não possui a mesma profundidade que no “jondo”; flamenco intermedio: são todas as formas que se encontram entre as duas categorias acima.

 As categorias de flamenco também se subdividem em estruturas rítmicas chamadas “palos”. Por exemplo: soleá, malagueña, bulerías, rumbas, sevillanas, jaberas, tientos, tarantas e tantos outros palos.

 Dentre os músicos flamencos de origem cigana mais destacados em nível mundial estão Paco de Lucía, Camarón de la Isla, Moraíto Chico, Sabicas, Mario Escudeiro, Tomatito, Niña Pastori e Joaquín Rodrigo, este último, compositor clássico e autor do aclamadíssimo “Concierto de Aranjuez” um concerto escrito para violão, sendo a primeira vez na qual o flamenco foi arranjado para orquestra e apresentado em teatros de música erudita.

 Os nomes supracitados, bem como tantos outros que não caberiam aqui elencar, são mais do que dignos de conhecimento. Pesquisem e conheçam essa arte tão bela e tão profunda – é de tirar o fôlego!

 Devemos sempre levar em consideração que, com o passar do tempo, todas as artes tem evoluído e sofrido diversas inserções com outras técnicas provenientes de outros estilos musicais, de canto e de dança, o que ocasionará alguns trabalhos em fusão, mas que não caracterizam um novo estilo ou divisão dentro da arte flamenca como um todo.

 Como apêndice, abaixo vos deixo um vídeo de uma apresentação minha no “Van Huppell’s Kunstenfestival Des Arts” de 2014 em Amsterdam na qual eu toco um improviso sobre uma composição autoral chamada “Yagé”.

 Com muito orgulho de minha ancestralidade cigana, essa composição remonta aos estilos característicos dessa emblemática cultura.

 Espero que gostem!

 A quem possa interessar, há ainda outros vídeos meus no Youtube com temáticas ciganas/flamencas.

 Até uma próxima oportunidade,

 Por RAFAEL PELISSARI

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