NOSSA LITERATURA – Entrevista com Mateus Machado

NOSSA LITERATURA – Entrevista com Mateus Machado

ENTREVISTA

 Mateus Machado, nascido em Jundiai, SP, é Cofundador e Diretor de Cultura da Associação dos Escritores, Poetas e Trovadores de Itatiba (AEPTI). Vencedor de prêmios literários, entre eles Ocho Venado (México), e finalista do Mapa Cultural Paulista (edição 2002), publicou, entre outros, os livros Origami de Metal, A Mulher Vestida de Sol, Pandora, em parceria com Nádia Greco, A Beleza e Todas as Coisas, As Hienas de Rimbaud, 17 de junho de 1904 – O Dia Que Não Nasceu e Nerval. É, também, idealizador do canal literário Biblioteca D Babel, no Youtube.

 

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THE BARD A pergunta que não quer calar: por que antipoeta? É uma questão de ruptura mesmo, e o uso da crítica e irreverência; assim, influência do poeta (antipoeta) Nicanor Parra? E esse despojamento “morar em qualquer lugar” é característico também?

MATEUS MA’CH’ADÖ Trata-se de uma ruptura com o contexto atual, com a atual geração e todo o relativismo literário e, de modo mais abrangente, cultural, que essa geração carrega; que são sintomas da modernidade/pós-modernidade. Não faria o menor sentido usar a expressão Anti-Poeta ou Anti-Poesia na década de 30, 40 ou 60 aqui no Brasil, visto que os termos poeta/poesia não estavam relativizados naquelas épocas, ou seja, foi uma geração de grandes poetas e de poesia de muita qualidade, inclusive haviam críticos literários, artigos e resenhas em jornais e revistas em quantidade e qualidade. Hoje, salvo raríssimas exceções, nem críticos sérios temos.

 Mas a expressão citada não tem nada a ver com o Nicanor Parra. Tem sim, a ver com o poeta pré-islâmico Shanfara, cuja vida tem me inspirado a escrever um livro/manifesto com o título: O Poeta que Matou Cem Homens.

 Os chamados, ou autoproclamados, “poetas” de hoje são, no geral, pessoas que mal sabem o que é o exercício poético, o que é poesia ou o papel do poeta. A própria palavra “artista” se relativizou tanto que hoje ela é usada por todos, em especial por imbecis e falsários. Há um relativismo patológico que nasceu de ideias modernistas como “tudo é arte”, “tudo é poesia” ou “tudo é política”. Nem tudo é arte e, por extensão, nem tudo é poesia. Aliás, hoje temos muitos “poetas” e quase nada de poesia. Por que? Por estamos perdendo as nossas referências míticas e o nosso imaginário está se empobrecendo cada vez mais; o nosso imaginário está sendo formado pelo o que há de pior, em conteúdo, das redes sociais.

 O conceito fundamental da poesia, ao meu ver, está no Genesis 1;3 “Então, D’us disse: Haja luz; e houve luz” – Essa luz é potência criativa que gera ordem. Para criar, D’us ordenou, organizou, separando ordem (luz) de caos (trevas). Cosmo, do grego Kosmos, é ordem. A arte, que nasce da potência criativa, organiza nosso universo interno. Escrever poesia é um memorial da própria criação divina, do ato de separar luz de trevas. E D’us criou tudo o que existe pela Palavra. Esses são os primeiros e mais profundos ensinamentos que D’us deixou ao ser humano, preparando a humanidade para a encarnação do Verbo, que é Jesus Cristo.
Já a expressão “morar em qualquer lugar” expressa a ideia de que a vida aqui, nesse mundo em processo de queda, é transitória.

 

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THE BARD Já foste colunista de uma revista literária Argentina, nos conta um pouco dessa tua experiência, e dê umas dicas para nossa equipe da The Bard, principalmente ao lidar com a vaidade dos escritores. Penso eu, que seja algo difícil do escritor evitar porque ele é muito estimulado nesse sentido, e no Brasil, vejo um peso maior, porque acaba evidenciando um país de pouco habito da leitura, de elitismo intelectual e reforça a baixa autoestima do brasileiro. Qual tua visão desse cenário?

MATEUS MA’CH’ADÖ Fui mais um colaborador itinerante, publicando na revista portenha Beatrizos por breve período. Em 1997 fui co-criador e diretor de cultura da AEPTI (Associação de Escritores, Poetas e Trovadores de Itatiba). Dessas experiências, em especial da AEPTI, aprendi desde cedo que o paternalismo no meio cultural só cria filhos mimados, vaidosos e tolos. Fiquei apenas dois anos na associação justamente porque faltavam critérios; tudo era aceito como poesia, como arte. Então, se publicava qualquer porcaria. Creio que deveríamos ter, antes de tudo, educado aquelas pessoas sobre criação poética, apresentado os grandes poetas da antiguidade e da modernidade; ensinado sobre escolas literárias, enfim, dar ao menos uma base sobre literatura, sua importância e seu papel no mundo. Ou deveríamos então, ter sido mais seletivos, mais criteriosos com o conteúdo de nossas antologias. A arte, de modo geral, pede qualidade e não quantidade. Aquela ideia, muito socialista por sinal, de um mundo em que até o padeiro faz poesia, é ridícula. Quero um padeiro que saiba fazer pão, nada mais.

 Artistas, de modo geral, tendem a ser vaidosos, mas isso é outro reflexo da modernidade, da ideia antropocêntrica. Hoje, além de vaidosos, são melindrosos demais, hipersensíveis e superficiais, mas o pior de tudo é que são politicamente corretos. Sim, somos não apenas estimulados à vaidade, somos programados para isso também; faz parte da ideia antropocêntrica; o ser humano como o centro do universo. Uma desgraça. A obra deve ir à frente do autor, deve ser mais importante que o autor. É a obra que tem que aparecer.

 Como tudo na vida, o hábito de leitura é também uma escolha pessoal, o brasileiro preferiu escolher outras coisas no lugar, hoje escolhem as dancinhas no Tik Tok. Não sei dizer se é apenas falta de estímulo, mas sei que há falta de interesse. Vim de uma família de não leitores, fora alguma enciclopédia culinária para enfeitar a estante da sala e uma bíblia, não haviam livros em casa. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, essa é uma das minhas lembranças mais antigas, estava com o meu pai na sala, assistindo Tv, quando surgiu um anúncio sobre um livro, não me lembro sobre o quê ou de quem se tratava, mas aquilo me intrigou e perguntei ao meu pai se era difícil escrever um livro, ele respondeu que sim, que era preciso muito estudo para escrever um livro. Comecei a comprar meus primeiros livros com 11 ou 12 anos, sozinho. Nunca tive estímulo por parte de familiares, não tive ninguém como exemplo nessa área. E sempre desconfiei do sistema educacional, acadêmico, por isso também não fiz questão de uma formação mais acadêmica. Creio que acabei desenvolvendo o que chamo de instinto literário, minha caminhada como leitor e como escritor sempre foi muito solitária.

 Mas, honestamente, nada tenho que não venha de D’us, o pouco que sei vem dEle, por misericórdia.

 

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THE BARD O belo, a beleza e poesia são o feminino? Me refiro aos teus livros A Mulher Vestida de Sol e A Beleza de Todas as Coisas. Li, em algum lugar, que consideras o segundo título antítese do primeiro, como é isso? Confesso que vejo em ambos linda e pura exaltação do feminino, não especificamente da mulher, mas todo o contorno feminino, não só estética, mas o sensível, a dialética da beleza.

MATEUS MA’CH’ADÖ Beleza (Misericórdia) e Verdade (Justiça) são equivalentes, um não funciona sem o outro. No plano simbólico, ontológico, a natureza que prevalece na mulher é lunar, enquanto no homem prevalece a natureza solar, ativa. Mas é justamente a natureza lunar, passiva/contemplativa que é capaz de refletir D’us e, nesse sentido o homem pode conhecer D’us através da mulher; da natureza da doação, do sacrifício; qualidades que hoje a mulher tem rejeitado, adotando uma postura mais solar, quando não caótica. Para um homem chegar a essa natureza, ele precisa desenvolver o seu lado contemplativo, como os poetas e os santos. O conceito de Musa tem a ver com isso; ser um canal para a divindade. A poesia exige abnegação, sacrifício, e se você busca uma poesia inspirada, deve reprimir o próprio ego, pois a voz que falará não vem do ego, mas de algo muito mais elevado.
Sua percepção está correta, quando escrevo sobre o feminino busco tocar em todos os seus aspectos.

 A Mulher Vestida de Sol foi uma busca pelo feminino e seus desdobramentos, era uma busca e uma entrega. No livro A Beleza de Todas as Coisas também há uma busca, mas não necessariamente uma entrega, creio que o ego acaba prevalecendo. Seja como for, os meus três primeiros livros representam a minha imaturidade como homem e poeta, é a fase do poeta jovem, buscando a sua própria identidade, sua voz. São os meus livros de rascunho, de treino e aprendizado. Os três livros representam o que fui, minhas experiências passadas, não representam o que sou hoje.

 

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THE BARD …E aí embrenhas pelos caminhos do romance e cria a personagem Florbela que a crítica diz ser tão fascinante que amamos ou odiamos ou amamos e odiamos. Como foi essa aventura? Falta esse na minha coleção.

MATEUS MA’CH’ADÖ Escrevi As Hienas de Rimbaud entre 2004/05. Mas só o publiquei em 2018, por uma editora independente chamada Desconcertos, em SP, 100 exemplares; hoje somente encontrado na editora. Foi um livro, em certa medida, experimental. Em resumo, trata-se da deterioração dos relacionamentos; do casamento, das amizades. É uma história em trânsito; personagens buscando um lugar ao sol, às vezes fugindo. É, em certa medida um romance alegórico sobre o religare. É um romance imaturo e, muitas vezes, quase o destruí. Só não o fiz porque na última página, alguns versos acabam dando um sentido mais profundo; o personagem passa a ter consciência da sua fuga e que, cedo ou tarde, será encontrado.
Hoje descobri que há muito de Joyce, em um sentido biográfico, nas Hienas; as crises humanas, o conflito com o seu papel no mundo, a crise espiritual.

 Escrever esse livro foi emocionalmente desgastante, mas Rimbaud, Borges, Coltrane, Kerouac e Jim Morrison estavam lá, estendendo suas mãos para me guiar entre os círculos infernais. “Um abismo chama outro abismo”. Mas há também um ensinamento alquímico que diz: para alcançar os céus, primeiro deve se tocar nos infernos.
Queres ver anjos? Então prepare-se para se encontrar com demônios.

 

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THE BARD Foste à Irlanda joyceando silêncio, exilio e sutileza nos pubs (era sério mesmo), te encontraste, retornaste e escreveste o livro 17 de junho de 1904 – O Dia Que Não Amanheceu, uma homenagem à James Joyce, inclusive com pegada didática, pontuando sua obra, servindo como um roteiro. Mas, também, tu fazes um gancho com o final do romance Ulisses para apresentar a tua interpretação da última obra de Joyce, Finnegans Wake. E finaliza fazendo um paralelo entre Finnegans Wake e o conto Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges, e um paralelo inusitado com a música Construção de Chico Buarque. Mais polêmico impossível! Por favor, explica?

MATEUS MA’CH’ADÖ Sim, foi tudo muito sério, joyceano, em um sentido biográfico. Eu tive que me bancar em tudo. Os poemas que nasceram dessa experiência estão no livro Nerval. Tive um contato mais espiritual com aquela terra, aquele povo.
A ideia de escrever um livro de ensaios sobre a obra de James Joyce, em especial sobre seu último livro, Finnegans Wake, foi se formando aos poucos. Meus primeiros textos, que são os últimos do meu livro, são de 2016/17. Todo o resto veio a partir de textos que usei como roteiro para os vídeos do meu canal Biblioteca D Babel. A feitura dos últimos textos até a edição foi feito às pressas, ficaram coisas pelo caminho. Mas sou muito agradecido a editora Caravanas e ao meu editor Leonardo Costa Neto, pela boa vontade e pela oportunidade de publicar esse livro.

 Então, o livro 17 de junho de 1904 – O dia que não amanheceu, foi a minha primeira tentativa, consciente de que seria uma série de estudos sobre Finnegans Wake. Por isso, como primeiro livro, precisei falar um pouco de cada obra de Joyce, preparando uma base para estudos mais profundos e livros futuros.

 É um “tantinho” inconcebível escrever sobre Joyce sem ser polêmico. Os paralelos que fiz, foi apenas um aperitivo para mostrar o quanto Finnegans Wake é uma obra abrangente, universal, oracular.

 O meu livro é uma obra que tem potencial para desagradar os joyceanos mais acadêmicos.

 

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THE BARD Teu atual lançamento é o livro Nerval, como é esse retorno do poeta? Ele confirma o poeta que eras e assim continuas ou a bagagem já pesa e traz um velho novo poeta Mateus Machado? Deixa aqui um poema do Nerval para nossos leitores, por favor, obrigada.

MATEUS MA’CH’ADÖ Nerval é uma afirmação do Anti-Poeta. Esse livro era para ter sido publicado em 2018, bem mais completo, por uma editora independente de São Paulo, chamada Algaroba. Inclusive, a arte de capa já estava pronta e o dia e local de lançamento já estavam sendo definidos. Porém, o ambiente político do ano escancarou algumas verdades. Depois de me posicionar publicamente, através de uma postagem no Facebook, fui cancelado pelo editor que, dias depois da postagem, declarou para seus contatos no face, que não publicaria nenhum poeta fascista; porém, sem me dar nenhuma satisfação. Aprendi a lição: jamais se associe aos ratos.

 Com a Editora Caravanas, por sugestão do meu editor, decidimos dividir o livro original, publicando apenas a parte que cabia ao Nerval. Mas aí mudei algumas coisas, acrescentei novos pequenos poemas e reescrevi muitos outros. A minha primeira fase como Anti-Poeta se encerrou com os três primeiros livros. Nerval é um livro de transição; há muito da primeira fase, resquícios, porém, há uma semente daquilo que virá. Recentemente, em entrevista no Dialocos Podcast, comentei sobre essa nova fase, partindo daquilo que o poeta Murilo Mendes chamou de “restauração da poesia em Cristo”. Decidi abranger e aprofundar essa ideia, decodificando uma possível cultura artística cristo cêntrica, em oposição a atual cultura antropocêntrica e luciferiana.

 É preciso estar no centro da vontade de D’us. Em uma era de cultura luciferiana, só uma poesia cristo cêntrica poderá nos dar a oportunidade de se praticar a cura pela linguagem.

 

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THE BARD Sempre peço aos nossos entrevistados que deixe uma mensagem de incentivo a nós equipe The Bard e aos nossos leitores que estão ou querem enveredar pelo caminho da escrita, então, por favor, deixa tua mensagem.
Querido amigo escritor Mateus Machado, gratidão e amor carimbado!

MATEUS MA’CH’ADÖ Agradeço a você, minha amiga Cleópatra, pela amizade e carinho, agradeço a todos da The Bard. A mensagem de incentivo que deixo para a equipe The Bard e aos seus leitores é a mesma do poeta argentino Macedônio Fernandez: “Escrever é não ler, e ao mesmo tempo é vingar-se por ter lido tanto”.
Meu prazer está na leitura, não na escrita.
Sejam vocês os seus primeiros críticos. A literatura, a arte como um todo, exige amor e trabalho, muito trabalho.
Alguém disse uma vez, já não me lembro quem: Um poeta satisfeito, não satisfaz.
Sobre um poema do Nerval…

As negras de Maputo

as Negras de Maputo
fazem preces às Deusas ancestrais no útero da Terra
as Negras de Maputo
tem olhos de ônix e dentes de marfim
as Negras de Maputo
tem tremores sísmicos nos bicos dos seios 7.1 na escala Richter
as Negras de Maputo
chicoteiam Zebus e os fazem chorar em teus braços
as Negras de Maputo
rasgam os próprios ventres com os chifres da Lua Minguante
as Negras de Maputo
comem Escorpiões e abortam Babuínos & Baobás ensolarados
as Negras de Maputo
tem algo revelador que o mundo ainda desconhece
as Negras de Maputo
tem a Beleza estampada em todos os seus meridianos
e nas noites de núpcias
as Negras de Maputo
invocam os teus Homens na aldeia de teus corpos.

Poema do Livro Nerval de Mateus Machado

Por CLEÓPATRA MELO

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