PROSA POÉTICA – Impiedosa Realidade

PROSA POÉTICA – Impiedosa Realidade

 Em meu peito, por vezes, brotam gritos chorosos. As enxurradas de cobranças exteriores tornaram-me deveras exigente comigo mesma e isso transformou o âmago anteriormente florido num vão absurdamente oprimido. Encaro a janela entreaberta e vislumbro os tímidos raios solares adentrarem vagarosamente o recinto e, ébrios de uma repentina ousadia, beijam os meus pés, roubando a lividez costumeira ao deixá-los ruborizados. Eu enxergo a poesia das eras naquilo e deixo-me ser envolvida pela calidez que embebe o meu ser em sapiência.

 Abruptamente, eu sou acometida por náuseas que me conduzem ao banheiro numa rapidez inumana. Sentindo minhas vísceras se contorcerem, ancoro-me na pia gélida e fito o reflexo no espelho que me encara de volta, afrontoso. Eu preciso desviar o olhar daqueles olhos, mas não, há uma força superior que me mantém imóvel, segurando-me com mãos invisíveis. Os lábios fartos riem para mim, sussurrando: “aproxime-se, por favor, não tema a verdade”. No instante seguinte, sinto-me liberta do aperto voraz e, assombrada, achego-me hesitante, trêmula e, ao mesmo tempo, extasiada.

 — Há tantas de nós enfrentando uma peleja diária que sequer posso contabilizar a quantidade exata — a mulher de olhos tristonhos contorna o meu rosto com seu dedo indicador pálido.

 — Eu apenas… — tento verbalizar o que me vem à mente e acabo estagnando por receio de falar tolices.

 — É um grande erro privar-se de cometer erros, sabia? Desde os primórdios da existência, a nossa classe tem sido inferiorizada por temer o poder que detemos em nossa singularidade. Nossos nêmesis feriram-nos física e emocionalmente durante tanto tempo que a dor andarilhou os séculos e reverbera em nossos corações até hoje. Se relaxarmos e nos pusermos tão somente a observar o fascismo e a sofrida ignorância trabalharem, não demorará muito para que voltemos a ser lançadas à fogueira.

 Agredida pela impiedosa realidade, fecho os olhos e estremeço de satisfação. A força está comigo novamente.

Por JEANE TERTULIANO

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