VOZES DO UMBRAL – A Bruxa, o Feminismo e o Horror por Mia Sardini

VOZES DO UMBRAL – A Bruxa, o Feminismo e o Horror por Mia Sardini

A Bruxa, o Feminismo e o Horror

 

A conexão entre o arquétipo da bruxa e o horror feminista é íntima e intrínseca. Para compreendê-la, faz-se necessário voltar para os primórdios da história da humanidade, em uma época em que se cultuava o feminino e em que os deuses eram, na verdade, deusas.

 

  1. Sua Majestade, o Falo

 

Há séculos, o falo é símbolo de poder para a humanidade. Monolitos, arranha-céus, carros enormes. A grandeza física é associada ao masculino, à glória e ao poder. Mas nem sempre foi assim.

Quase 200 estatuetas, em sua maioria encontradas na Europa Central, datadas do Período Paleolítico, mostram-nos o inesperado: um culto ao feminino.

Esses objetos não retratam a mulher erotizada, mas sim uma intrigante referência às características exclusivamente femininas. São figuras de grandes proporções, com quadris, nádegas, seios e barriga proeminentes. Seu significado exato é discutível, mas a predominância de imagens femininas às masculinas sugere que a mulher desempenhava um papel preponderante nessas sociedades, e as proporções desses corpos retratados em estatuetas parecem ressaltar justamente as características que diferem os corpos femininos dos masculinos.

Ao que tudo indica, as primeiras formações civilizadas de Homo sapiens cultuavam mulheres, e não homens. E se essas estatuetas forem referências a deidades, eram deusas, e não deuses.

O culto ao falo só vai acontecer muito tempo depois, já no Neolítico, quando, ao que tudo indica, descobriu-se o papel do homem na reprodução. Historiadores e antropólogos sugerem que o culto ao masculino esteja relacionado ao surgimento da propriedade privada e da herança hereditária, e também dessa época data o início da cultura de submissão feminina e fidelidade da mulher a um homem. Ora, se é o homem quem dá a vida — e a mulher passa a ser vista como uma incubadora do filho do homem —, é necessário se garantir que aquela criança seja mesmo descendente daquele pai, para fins de direito à herança. Essa mesma lógica se perpetua por séculos adiante, atravessando a Idade Média e a Idade Moderna, e chegando até as portas do século XX.

Notamos que a submissão feminina e o culto ao masculino não estão atrelados a nenhuma ideologia que não seja o poder. É por assumirem como sendo seu o poder de gerar a vida e de manter propriedades que os homens passam a subjugar as mulheres.

 

  1. Que vençam as bruxas

 

Algumas civilizações europeias mantiveram o culto ao feminino para muito além do Paleolítico. Seria o caso das civilizações celtas, que, mesmo politeístas, nutriam profundo apego à figura de uma Deusa-Mãe.

Quando o cristianismo se expandiu pelo Norte da Europa, lançou-se mão de uma conhecida e eficaz técnica de conquista: a incorporação e subversão dos elementos da cultura local. Como nem sempre é possível destruir elementos muito enraizados em uma sociedade, incorporar esses elementos e dar-lhes novo significado é, muitas vezes, mais eficaz no processo de conquista dos povos. Um exemplo é o símbolo do pentagrama, associado pela Igreja Católica ao Diabo, mesmo que as civilizações celtas sequer conhecessem tal figura.

O mesmo aconteceu com a bruxa. Dentre os povos celtas, era chamado de bruxa ou bruxo aquele que mantivesse um contato íntimo com a espiritualidade, ligada às religiões locais. As bruxas, em especial, eram figuras distintas e respeitadas, vistas como autoridades religiosas e sociais. Durante o processo de colonização do cristianismo no Norte da Europa, a figura da bruxa começou a ser subvertida e remodelada, o que se manteve até os dias de hoje.

Quando se instaurou a Inquisição Católica na Europa, com início na Idade Média e apogeu na Idade Moderna, o arquétipo da bruxa passou a servir de bode expiatório para qualquer problema que se houvesse. Se a plantação se perde, é culpa das bruxas. Se o povo tem fome, é culpa das bruxas. Se o rei fica doente: bruxas! Isso só foi possível graças ao arquétipo disseminado da bruxa e a cultura misógina que se instaurou na Europa, reforçada pelos dogmas pregados pela Igreja Católica.

O arquétipo da bruxa foi de autoridade respeitada a figura exterminável conforme as sociedades europeias se consolidavam como estruturas patriarcais. Depois esse arquétipo se reproduz nos países colonizados por europeus.

É esse caminho feito que chamou a atenção do movimento feminista contemporâneo. Assim como a bruxa, a mulher foi de cultuada a subjugada, de respeitada a execrada, de divina a diabólica.

Essa analogia não é recente. A Caça às Bruxas na Europa, maior episódio de perseguição e extermínio de mulheres da história, faz essa clara analogia. As bruxas são em sua maioria mulheres. Estima-se que mais de 80% dos indivíduos condenados e executados por bruxaria tenham sido mulheres. Na contemporaneidade, o movimento feminista faz um resgate dessa analogia e traz o arquétipo da bruxa de maneira ressignificada: não mais um monstro a ser exterminado, mas um símbolo de resistência feminina a uma sociedade patriarcal que perdura por séculos e ainda regurgita a herança histórica de um genocídio de mulheres.

O horror, esse gênero que nos permite explorar o pior do ser humano, em uma vertente bastante contemporânea apelidada de “horror feminista”, apropria-se dessa ressignificação do arquétipo da bruxa para dar voz ao pior horror da mulher: o ser mulher em um mundo dominado por homens.

 

Por Mia Sardini

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