VOZES DO UMBRAL – Atravessador

VOZES DO UMBRAL – Atravessador

 Se Salomão não tivesse ido ao aniversário de Dora – e a verdade é que ele nem queria ir – jamais teria encontrado Malik. Jamais o teria libertado.

 Salomão se perguntou muitas vezes, nos dias que se seguiram, o que teria acontecido, então. Natural. Humanos, sempre que atravessam encruzilhadas relevantes em suas vidas, são acometidos por essas incômodas – e, via de regra, inúteis – perguntas começadas por “e se”.

 Se não tivesse ido ao aniversário de sua colega de setor, Salomão, muito provavelmente, sairia do trabalho para casa, comeria comida requentada e sentaria diante da TV até apagar no meio de um episódio de alguma série dispensável. No dia seguinte, acordaria já cansado, tomaria um banho e se arrastaria até a estação do metrô mais próxima, onde um trem carregaria a sua e outras tantas almas desbotadas rumo a um dia sufocantemente parecido com o anterior.

 O problema com essa linha de raciocínio era a presunção de que Malik, nesse caso, continuaria exatamente onde estava. E não fazia sentido, fazia? Malik continuar onde estava porque um ninguém como Salomão havia tomado uma decisão trivial em sua vida trivial. Não, Malik tinha que ser libertado. Ele era uma força da natureza. Sua hora chegara como chega a hora da chuva forte, após um dia quente de verão. E a chuva forte não deixa de cair porque uma borboleta escolheu pousar na flor amarela, em vez de na vermelha.

 Por isso, quanto mais pensava no assunto, mais Salomão se convencia de que havia sido apenas uma peça. Um joguete levado ao lugar certo, na hora certa, a serviço sabe-se lá de que. Uma ideia que ficava mais forte à medida que ele observava todos os pequenos “e se” que haviam mudado seu itinerário. Começou, claro, com a decisão de ir ao happy hour comemorativo de Dora, mas não parou por aí.

 Naquela noite, Salomão foi o último a sair do trabalho, justamente porque não tinha intenção de ir. Inventou que estava concluindo algo importante e disse que encontrava os outros lá. Seu plano era esperar todo mundo sair, ir direto para o metrô e aparecer no dia seguinte com alguma desculpa. Tão logo se viu sozinho, ele desligou o computador e as luzes que ainda estavam acesas, passou pela recepção vazia do 26º, trancou a porta de vidro atrás de si e chamou o elevador. Só que, enquanto esperava, no hall às escuras, lembrou de como Dora sempre lhe dava parabéns, em seu aniversário. Às vezes, até lhe comprava uma besteirinha, como um bombom. E como a droga do elevador não chegava, ele teve tempo de pensar, também, sobre como cada vez menos pessoas mandavam-lhe mensagens no seu aniversário, e sobre como iriam estar as coisas em alguns anos, se ele continuasse agindo assim.

 Quando desceu do elevador no térreo, Salomão, atormentado por imagens mentais de um futuro solitário, já tinha se decidido a dar, pelo menos, uma passadinha no evento.

 Começou com essa enganosamente trivial decisão. Ele chegou ao bar, foi super bem recebido, se empolgou e começou a beber, sem lembrar de comer. Ficou bêbado rápido, o que o levou a enviar uma mensagem para Lavínia, uma ficante esporádica com quem não falava há uma semana. Sua intenção, uma mensagem meio engraçada, meio erótica, falhou miseravelmente em ambos os quesitos. Lavínia respondeu com sete palavras, zero acentos e zero sinais de pontuação.

To namorando

Nao manda msg mais

Abs

 Até então, ele só estava no chopp. “Abs”, no entanto, era de um nível de humilhação que requeria destilados.

 — Uma caipvodka – pediu, a um garçom que passava.

 “Abs”, como diz o poeta, é foda.

 Não ficou muito tempo depois disso. Bebeu sua caip, pediu outra, pagou e saiu, sem se despedir de ninguém. Copo descartável na mão, pernas não muito confiáveis, passou direto pela estação do metrô. Sem qualquer motivação lógica, resolveu ir a pé. Não era uma caminhada tão longa – 25 minutos, no máximo – mas ele só a tinha feito duas vezes e nunca à noite.

 Foi pelas ruas desertas, parando nos bares do caminho para pegar uma nova bebida, quando a sua secava. Estava quase em casa quando, passando por um terreno baldio cheio de mato e entulho, resolveu mijar. Escolheu uma pilha de madeira apodrecida e ficou lá, perseguindo baratas com o jato, bambeando sobre as pernas.

 Foi quando ouviu batidas. Abafadas, longe – como se viessem de um porão. Olhou ao redor, tentando localizar o som e, súbito, deu-se conta de sua vulnerabilidade. Bêbado, à noite, mijando num lugar deserto. Justo ele, que não sabia se defender nem sóbrio e com o pau dentro da calça. A mijada não acabava, as batidas não paravam e Salomão foi ficando nervoso. Assim que o fluxo diminuiu, sacudiu o pau apressadamente e guardou-o. Mas esse tipo de ação corporal não encerra por decreto.

 — Puta que o pariu.

 Não eram as tradicionais gotinhas da cueca, ele estava ensopado. E, agora, que havia menos barulho, além das batidas surdas e insistentes, ele achava que estava ouvindo uma voz, também.

 — Ei! Tem alguém aí?

 Usando a lanterna do celular, ele avançou para dentro do terreno, desviando de entulho e de lixo, tomando cuidado para não pisar em algum prego. Havia trechos em que o mato ia acima de seus joelhos. As batidas ficaram mais altas. A voz, também. Embora ainda não desse para entender, agora era impossível não perceber o tom de urgência. Alguém gritando, preso em algum lugar. Salomão engoliu em seco. Sua mente, sempre rápida na confecção de desgraças hipotéticas, produziu a imagem de alguém amarrado por criminosos. Criminosos que, era certo, voltariam enquanto Salomão tentava libertar o infeliz.

 Mesmo apavorado, continuou a procurar. Podia ser muita coisa, mas não era do tipo que ignorava um pedido de socorro e ia tranquilo dormir. Andou até que o facho da lanterna incidiu em uma caixa de madeira.

 — Eeeeiiii!!! Socooorrooo!!!

 Era a voz de um homem, mas não fazia sentido, pois a caixa de onde ela saía tinha, no máximo, meio metro de altura. Salomão se aproximou, pé ante pé, olhos arregalados. Provavelmente, parte da caixa estava enterrada – um metro, no mínimo – ou não caberia um homem ali.

 — Calma! Você tá machucado?

 As batidas ficaram frenéticas.

 — Não! Estou bem! Me tira daqui!

 — Quem te prendeu aí?

 — Mas que pergunta idiota!

 Não vai ser idiota se ele resolver voltar, pensou Salomão, mas não disse nada.

 — Arrume alguma coisa pra tirar a tampa! Algo para fazer uma alavanca! Está pregado, mas não vai ser difícil de tirar!

 A tampa era quadrada, 40 por 40 centímetros, e estava presa no lugar com pregos. As cabeças prateadas, redondas, eram do tamanho de moedas de um centavo.

 — Cara, você não viu o tamanho desses pregos. Vou ter que arrumar alguma ferramenta…

 — Acredita em mim! Você só precisa de uma alavanca e um desejo sincero!

 Puta que o pariu, um coach.

 — Pelo menos, já sei porque te trancaram numa caixa.

 — O que?

 — Deixa. Peraí.

 Salomão correu olhos pela lixarada, procurando algo que pudesse usar. Encontrou uma barra de metal enferrujada – aparentemente, os restos de uma barraca de praia – mas era muito fraca. Conseguiria dobrá-la com a mão, se quisesse.

 — Acredite! – Berrou o influencer encaixotado, como se adivinhasse seus pensamentos. Salomão olhou para a barra com incredulidade e fez que não com a cabeça.

 — Desejo sincero meu ovo.

 Mesmo certo de que a barra dobraria ou quebraria, encostou a ponta enferrujada na beirada da tampa e empurrou. Duas coisas aconteceram, então: primeiro, a barra deslizou para baixo da tampa sem dificuldade, como uma faca penetrando papelão. Segundo, Salomão perdeu o equilíbrio e caiu para a frente, arrancando a tampa. Os pregos eram tão grandes que poderiam ser usados para crucificar pessoas, mas saíram sem dificuldade.

 Ele ainda estava se recuperando da surpresa quando mãos grandes, de dedos finos e longos, saíram da caixa e agarraram a borda. Uma cabeça careca apareceu. O homem de olhar assustado olhou para um lado, para outro e foi se erguendo até os cotovelos saírem. Apoiou as mãos na borda e empurrou, como alguém fazendo paralelas, até seus joelhos passarem da beirada da caixa. Então, colocou uma perna para fora de cada vez e ficou de pé, diante de um boquiaberto Salomão.

 A caixa devia ser ainda maior do que imaginara, pois aquele cara tinha, pelo menos, dois metros e vinte. A pele era cor de azeitona, a careca lustrosa refletindo a luz dos postes. Os olhos negros eram grandes, curiosos, encimados por sobrancelhas grossas feito taturanas. O nariz era como o bico de um abutre. Usava roupas negras, feitas de algo que parecia cetim. Havia algo altivo a respeito dele. Não parecia um homem que saíra de uma caixa, mas alguém que estava chegando, levemente atrasado, a um jantar. Ele tirou a poeira de seus ombros com batidinhas casuais, abriu os lábios generosos em um sorriso de dentes muito brancos e fez uma mesura, olhos nos olhos de Salomão.

 — Malik, seu criado – tantas perguntas tentaram sair pela boca de Salomão ao mesmo tempo que nenhuma conseguiu. Aparentemente habituado com esse tipo de reação, Malik prosseguiu: – E você é?

 — Salomão. Você tá bem?

 — Melhor a cada instante.

 — Quem te prendeu?

 Malik fez um gesto de pouco caso com a mão.

 — Pessoas querendo fugir de suas dívidas. Não se preocupe com isso.

 — Caralho, você é agiota?

 Malik soltou uma gargalhada grandiosa, cheia de prazer.

 — De forma alguma. Apenas faço trocas. Levo coisas de lugares onde elas estão sobrando, para outros lugares, onde elas estão faltando. Mas é um serviço remunerado, como todos. E sempre há aqueles que não querem pagar. É da natureza do homem – encolheu os ombros. — Que terra é essa?

 — Hem?

 — Onde estamos? Que país?

 — Brasil, claro.

 — Sim, claro – concordou Malik, embora, a julgar por sua expressão não fosse, de fato, claro. Será que havia sido preso em outro lugar e largado ali? Mas, como assim, ele não sabia onde estavam, se estava falando português perfeito?

 — E que dia é hoje?

 — 23 de outubro.

 — De?

 — 2022.

 Calma, ninguém fica normal depois de sabe-se lá quanto tempo trancado em uma caixa.

 — Há quanto tempo você…

 — Depois de algum tempo na escuridão, essa pergunta deixa de ter qualquer significado – havia algo estranho no jeito como ele falava, mas Salomão não conseguia dizer o que era. Malik continuou: – Meu bom homem, serei eternamente grato pelo que fez, mas minha presença é requerida em outros lugares. Há compromissos que há muito deixaram de ser atendidos, faturas em aberto que precisam ser saldadas. Por isso, preciso pagar minha dívida com você. Aqui e agora.

 Era só o que faltava, ter um agiota maluco achando que lhe devia algo. Nada disso. Tudo o que ele queria era dar as costas para essa história estranha. O mais rápido possível.

 — Não precisa, tá? Inclusive, eu já tô…

 — Eu lhe concedo três desejos.

 Pela primeira vez, desde que o recebimento da mensagem terminada por “abs”, ele teve vontade de rir. Olhou ao redor, procurando a câmera.

 — É pegadinha, né?

 — Não sei o que é isso, mas se quer dizer algum tipo de brincadeira, não. Não é.

 Malik olhava-o de cima, mais sério que nunca, braços cruzados.

 Salomão foi até a caixa e empurrou-a com o pé, fazendo-a cair de lado. Não havia parte nenhuma enterrada. A caixa tinha meio metro de altura, 40 centímetros de largura, 40 de profundidade. E um homem de dois metros e vinte tinha saído dela. Era um truque, a pegadinha mais elaborada que ele já vira, ou os dois.

 — Tá, então, você é um gênio.

 — Um djinn.

 — Cara, desculpa, mas não acredito. Tem uma coisa que nunca engoli nessa história de gênio, nem em filme. – Malik levantou uma sobrancelha. – Alguém que pudesse conceder qualquer pedido, cara… seria um ser poderosíssimo. Quase um deus. E, não tem como botar um deus numa caixa, tem?

 Malik mirou-o, intrigado.

 — Raciocínio interessante. A maioria não me pergunta nada, estão muito ocupados tentando decidir o que querem. Por isso, vou lhe dar algumas informações que você não tem. Um deus pode ser preso, sim. Pode até ser morto. Mas eu não sou um deus. Não posso conceder qualquer coisa.

 — Hum.

 — Não pode pedir coisas vagas, etéreas. Como felicidade, liberdade…

 — Amor?

 Malik fez que não.

 — O problema é que essas palavras querem dizer uma coisa para cada pessoa e, na maioria das vezes, nem a própria pessoa sabe o que está querendo. Por isso, precisa pedir coisas. Específicas.

 Salomão estava atento e percebeu quando sua voz de Malik parou, mas seus lábios continuaram a mexer. Foi quando entendeu o que estava errado. A voz e o movimento da boca de Malik não estavam sincronizados. Uma vez visto, era impossível desver. Era como assistir um filme mal dublado.

 — Você também não pode pedir que alguém volte dos mortos. Nem pode pedir para viver 300 anos. E, claro, você não pode pedir mais desejos. Volta e meia aparece um engraçadinho pedindo isso.

 — Coisas.

 — E pessoas. Se estiverem vivas.

 — Você não tá falando português, tá? Você tá falando outra coisa e eu tô ouvindo português. Não é isso?

 Dessa vez, o sorriso de Malik foi apenas com um canto da boca e não envolveu seus olhos. Como se não gostasse de ter sido descoberto.

 — Voltemos aos desejos, pois não temos a noite toda. Enfim, você não pode pedir coisas muito grandes, que influenciem muita gente. Não pode pedir paz mundial. Nem que o mundo exploda. Isso é porque nada no universo se cria, nem nada se perde. Tudo o que eu faço é fazer conexões. Levar coisas para lá e para cá.

 — Você é um atravessador – disse Salomão, rindo.

 — Eu adoraria ficar discutindo definições com você, mas há dívidas que precisam ser quitadas e a primeira será a minha. Você já conhece as regras. Faça seus pedidos.

 Salomão passou as mãos pelos cabelos e soltou um suspiro tenso.

 — Ok, vamos lá.

 Claro que algum dos pedidos envolveria dinheiro, então, porque não resolver isso logo? Mas quanto? Dinheiro demais era problema, transformava o sujeito num alvo.

 — Cento e dois milhões de reais.

 — Ninguém pode te acusar de não ser específico.

 Salomão encolheu os ombros.

 — É o prêmio da Mega-Sena acumulada dessa semana. Já fiz as contas, é o suficiente pra eu fazer o que eu quiser até o resto da vida.

 — O suficiente para fazer o que se quer muda muito rápido, você logo descobrirá. Mas, tudo bem – abaixou a cabeça em anuência. – Considere feito.

 Salomão colocou as mãos na cintura, expressão desapontada.

 — O que você queria? Carregar até em casa? Não se preocupe, deixe comigo. Próximo pedido.

 Salomão encolheu os ombros. O que tinha a perder?

 — Eu posso mesmo pedir pessoas?

 — Sim, mas, dependendo de quem seja, talvez eu não possa atender. Vai ter que perguntar para descobrir. Nesse caso, o pedido não contará.

 — Ok – embora não tivesse qualquer nome em mente, tinha uma especificação. Já tinha pensado nela zilhões de vezes, em sonhos que nunca imaginara possíveis. – Quero uma mulher linda… absurdamente linda… tô sendo vago?

 — Não. Embora os gostos variem muito, há pessoas que são objetivamente, bonitas, sim. Gente que até os animais e as plantas acham bonita. Continue.

 — Uma mulher linda, divertida, e que seja doida por mim.

 Salomão não estava tão preocupado em acertar. Se os cento e dois milhões rolassem mesmo, haveria mulheres lindas e divertidas saindo no tapa em frente à sua casa. Se não desse certo com aquela, que viesse a próxima.

 Malik cruzou os braços, fechou os olhos, abaixou levemente o queixo. Parecia muito concentrado. Após alguns segundos, abriu os olhos e disse:

 — Feito.

 — Sabe, isso é meio decepcionante.

 — A sua falta de fé também é. Último pedido.

 — Eu não posso pedir pra viver 300 anos. Quanto eu posso pedir?

 — Há coisas que estão escritas, que não podem ser mudadas. A hora da morte de um homem é uma delas. Não pode ser atrasada por um minuto sequer. Ela pode até ser adiantada, mas as consequências são terríveis. Por isso, assassinato e suicídio são pecados tão sérios.

 — Eu posso pedir para ter saúde?

 — Não só pode como é um dos pedidos mais sábios que alguém pode fazer.

 — É o que quero. Saúde perfeita, até o último dia da minha vida.

 Malik sorriu.

 — Assim seja. Nenhuma doença, nenhum espirro, nenhuma diarreia, nenhuma inflamação. De agora até o momento de seu último suspiro.

 — Acabou?

 — Você não acredita, ainda, mas acreditará. Antes da noite terminar.

 Salomão olhou para a rua de onde viera.

 — Então, eu vou…

 Voltou-se, mas não havia ninguém lá.

***

 Os dez minutos até sua casa foram estranhos. A todo momento, ele olhava para trás, esperando para ver se estava sendo seguido, se a equipe de produção da pegadinha finalmente iria aparecer. Ou pior. Algum tipo de golpe. Mas se fosse um golpe, qual o próximo movimento? Alguém ligaria para dizer que o dinheiro estava disponível, mas que ele precisava fazer um depósito? Mas e aquela caixa, como o cara saíra de lá? Cabeça a mil, ele virou a esquina de sua rua, chave da portaria já na mão. Ao olhar para seu prédio, parou.

 Morava em um prédio antigo, de quatro andares, cuja fachada começara a precisar de reforma uns dez anos atrás. Em tempos idos, era bege; hoje estava desbotada, estufada e riscada por faixas pretas de limo que iam do topo ao chão. As janelas dos apartamentos eram retangulares, emolduradas por esquadrias de alumínio. A portaria era simples: duas portas de vidro, com um lance de degraus de mármore que ia até a calçada.

 Havia alguém sentado nos degraus e, mesmo a trinta metros de distância, dava para ver que era uma mulher. E que ela estava olhando fixamente para ele.

 Salomão se aproximou, andar hesitante, respiração travada. Quando chegou ao pé da escada, ela se levantou e o cabelo castanho escuro, de aspecto selvagem, caiu de seus ombros. Salomão escaneou-a de cima para baixo – os peitos pequenos em forma de peras, os bicos marcando o tecido da camiseta branca; o furo do umbigo na barriga nua, os quadris delineando a calça jeans. Subiu de volta para o rosto, como se tivesse sido pego fazendo algo errado, e encontrou grandes olhos azuis, que não haviam saído dele por um instante sequer.

 — Oi – disse ele, como quem se afoga.

 — Salomão?

 Ele fez que sim e ela estendeu a mão.

 — Lana.

 Quando Salomão pegou a mão, com um sorriso idiota que dizia “goste de mim”, Lana segurou firme e puxou-o para si. Os lábios deles se tocaram e ela soltou uma risada gostosa. Seu cheiro era um feitiço.

 — Eu não ligo pra beleza, sabe? Mas você é mais bonito do que eu esperava.

 Salomão ficou lá, parado, sem saber o que fazer com essa informação.

 — Melhor a gente entrar – disse ela, resolvendo o impasse.

 Subiram pelas escadas escuras, os degraus rangendo, Salomão na frente. A falta de elevador era um dos motivos para o aluguel barato. O fato de não haver porteiro, apenas um faxineiro que vinha três vezes por semana, era outro. Também havia constantes problemas de hidráulica como descargas entupidas e água com ferrugem saindo das torneiras. A elétrica prestes a incendiar completava o pacote.

 — Não repara o prédio. Nem minha casa.

 — Não vou reparar – veio a voz atrás dele.

 Ele parou diante da porta do 302, girou a chave na fechadura e empurrou. Esticou a mão para o lado, para alcançar o interruptor, mas antes disso, foi empurrado para dentro.

 Ele não sabia como ela tinha feito isso enquanto subia as escadas, mas Lana estava nua.

***

 Deitado, nu, no chão gelado da cozinha, Salomão olhava as manchas escuras de infiltração no teto sem vê-las. Ao seu lado, Lana. Também nua, deitada de costas e, aparentemente, tão cega para o teto quanto ele. Fumava um cigarro.

 O tour da casa não havia começado pela cozinha, mas era lá que havia terminado. E que tour. Lana se atracou com ele com uma fome, com uma sofreguidão, que não podiam ser fingidos. O desejo dela, que mais parecia uma necessidade de água, de ar, provocaram um tesão em Salomão como ele não tinha memória. Foderam e foderam e foderam, suando em bicas, ela estrebuchando em cima ou embaixo dele, enquanto gozava uma vez atrás da outra. Salomão gozou três vezes, ela se encarregando de deixa-lo duro de novo tão logo ele terminava. Não havia uma gota de porra à vista porque ela lambera tudo, inclusive o que caíra no chão.

 Olhando-a soprar fumaça para o alto, Salomão, pela primeira vez em quase três anos, quis um cigarro. Após uns instantes de consideração, pegou o Marlboro de filtro amarelo dos dedos dela e tragou. O gosto foi horrível, mas ele puxou de novo.

 — Não sabia que você fumava.

 — Eu tinha parado.

 — Minha mãe sempre disse que eu era má influência – riu.

 — Não esquenta – disse ele, pensando no terceiro pedido e, ao mesmo tempo, se perguntando se seria mesmo verdade.

 Cara, se uma mulher dessas, deitada no chão imundo da tua cozinha, depois de ter lambido até a porra que caiu no meio dos dedos dos teus pés, não for prova suficiente, não sei o que será.

 — Como conheceu ele? – Lana perguntou.

 — Malik?

 Ela fez que sim e virou-se de barriga para baixo, cabeça apoiada no peito dele, o rosto a centímetros do seu. Os olhos azuis queriam engoli-lo.

 — Foi a coisa mais louca. Ele tava preso numa caixa. Ajudei ele a sair.

 Ela riu.

  — Ele deve ter irritado alguém. Ele tem isso, de irritar as pessoas. E aí? Ele te concedeu pedidos? – Sorriu. – Você pediu por mim?

 Salomão ficou sem graça de dizer o que pedira. Mas não era um dos itens do contrato que ela fosse perdidamente louca por ele? Por que não dizer a verdade?

 — Eu não podia pedir você, porque não te conhecia. Mas pedi uma garota linda, apaixonada por mim.

 — Você me acha linda? – Perguntou ela, radiante, como se fosse algo que nunca tivesse escutado. Como se nunca, em toda a vida, tivesse passado por um espelho. Debruçou-se sobre ele, enfiando a língua em sua boca. Então, foi descendo pelo tórax, mordendo e lambendo o que encontrava pelo caminho. Salomão desconfiava qual era seu destino e, a julgar pelos sinais que já sentia, a viagem não seria perdida.

 — O que mais você pediu? – Veio a voz dela, lá de baixo, sibilando entre dentes.

 — Eu…

 O interfone tocou.

 Salomão sentou no chão da cozinha, atônito. Lana olhou para o interfone, que continuava a tocar, e de volta para Salomão.

 — Você tem namorada?

 — Eu… não!

 — Vou dar com os dentes dessa piranha no meio-fio!

 Ela se pôs de pé com um pulo e, pelada, partiu para a janela. Salomão abriu a boca para protestar, mas, em vez disso, foi até o interfone. Arrancou-o do gancho, interrompendo a campainha.

 — Alô!

 — Salomão?

 — Quem é?

 

 Continua…

Por JORGE ALEXANDRE MOREIRA

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