VOZES DO UMBRAL – Sozinho por JP Schimidt

VOZES DO UMBRAL – Sozinho por JP Schimidt

 Com o coração no lugar das amigdalas ele caminhou pela floresta. Os uivos, pios e chiados noturnos daquele vernáculo cacofônico parecia prometer que mastigaria sua carne com calma.

 Suas passadas, com mais pressa que prudência, o fez tropeçar e ferir o tornozelo e assim mesmo continuou, pois no colo em meio ao miolo de tecidos enrolados e sobrepostos havia seu amor, seu filho.

 Evitou olhar para trás e dar mais força ao mais humano e primal dos medos…

 As trevas e o talvez. Um com garras, dentes e fome. Mas não importava. Não com seu filho nos braços.

 Por isso trocou o temor do talvez em seu percalço pelo talvez mais promissor e dentro daquela floresta.

 De súbito, um estrondo. As tempestades da estação traziam um perigo mais real, pois seus escandalosos raios podiam dilacerar grandes árvores. No entanto, o encharcado andarilho desafiava a mira do enxame de raios mesmo que sua busca e objetivo tivessem fedendo a fracasso.

 A chuva chegou sapateando a floresta e logo se avolumou dando chicotadas de vento e chuva para pouco depois desabar sobre tudo num tormento contínuo.

 A visibilidade já debilitada pela falta de lua beirava agora o ridículo embora ainda assim o ponto alaranjado e distante mantivesse firme diferente de suas passadas eram assimétricas devido o inchaço no tornozelo e o cansaço do caminho.

 Ao se aproximar abrandou sua velocidade e ajeitou a troncha de roupas em seu colo.

 Apesar das vozes de tempestade, os cães ou os donos da propriedade não podiam despertar.

 A casa; não tão humilde quanto outras da região; mantinha o calor no ventre graças a uma larga lareira abastecida por largas achas de lenha.

 Aproximou-se. Tentou ter cuidado. Precisava ter. Mesmo que a ansiedade cutucasse seus músculos. Parou entre um passo e o seguinte.

 Voltou, foi adiante.

 Ninguém no estábulo e nem na varanda, só a cadeira de balanço ninando a si, mortificada pelo aguaceiro que não parava de cair.

 De súbito, as tábuas do piso protestaram por serem acordadas tão tarde.

 Parou, esperou.

 Não ouviu um: “Quem está aí?” ou “Vá embora!”.

 Esticou-se como uma lenta e secular tartaruga até conseguir ver o interior pela borda da janela. A direita o cômodo do senhorio, e no maior uma jovem adormecida. Suada e estafada, obviamente pelas obrigações maternas e a seu lado um berço de pinho bem construído.

 A janela pequena sequer fora um obstáculo para entrar na residência, pois a miséria cuidou para que tivesse a fineza certa nos ossos para trespassar o vão.

 Na lareira, um caldeirão dependurado por um aparato de ferro soltando o perfume salgado da sopa de restos. Na mesa curta e de pregos tortos passou a mão no último naco de broa de milho e chuchou no sopão.

 Seu paladar não tinha o conhecimento para identificar todos os itens. Percebeu sua respiração pesar por ter satisfeito parte duma fome que nem desconfiava existir.

 O medo o silenciou, olhou ao redor.

 Ninguém o notou.

 Melhor assim.

 O casal do lar invadido era bem mais jovem e as portas de seu comércio eram beijadas pela fortuna. Eles tinham tudo e ele nada.

  Pelo espaço, achou talheres de um metal que talvez pudesse vender e um cântaro de vinho lacrado com cera. Coisas que não dariam falta tão cedo.

Com cuidado depositou a troncha na mesa curta desembrulhou dos tecidos o filho natimorto e chorou em um silêncio esmagado. Naquele momento vendo o menino pesou seus porquês, sua dor e o pior… o de Adelaide.

 Afinal, o parto quase levou sua amada senhora e anos antes fora o peso da vida que levou suas duas crianças.

 Miguel com seis meses, Rafael com doze anos e agora Gabriel. Todos com nomes de arcanjos. Se sua amada Adelaide parasse de escolher nomes divinos talvez aí Deus parasse de requisitá-los. Se ela souber que mais um se fora a tristeza na certa a leva.

 “Não enterrar mais ninguém”, era seu pensamento e luta mais íntima.

 Colocou os talheres, o vinho e mais alguns itens em cima do tecido tal qual se faz para uma ceia.

 E então, só então… colocou seu mais novo e não enterrado filho com todo o cuidado no berço ao lado do gordo e vivo bebê.

 Sentiu a barba suja e emaranhada coçar expressando opinião. Poderia não funcionar, ela dizia. Poderia…

 Esse outro detinha a dianteira de alguns dias.

 Ficou ali de mãos ao ar. Os olhos embebidos de um prévio remorso e as lágrimas afirmando o quanto já era tarde. Fechou rápido o tecido e com essa trouxa recheada de bagulhos tirou o travessão da porta e a abriu.

 Por um instante, deu as costas a ambos os inocentes. O pai daquele lar; como manda os bons costumes; dormia apartado da mulher e da criança nos primeiros dias. O seu roncar barítono contava que não despertaria tão cedo, no entanto a mãe estava sentada na cama de olhos arregalados. Fixos nele.

 O segredo e o silêncio se perderam.

 Ele correu para o berço e em dois tempos ergueu o rosado e vivo e o levou como seu novo filho. A porta ao acertar o batente fez o travessão descer forte lacrando a passagem num estrondo baixo e seco.

 A mãe daquele lar levantou-se num salto e com passos cambaleantes horrorizados berrava escorada no berço para que devolvesse seu bebê. Contudo, emudeceu ao ver no berço a criança acinzentada e seca.

 O marido levantou-se e correu a ela aos tropeços e quando indagada por seu par, a coitada só conseguia dizer:

 — O velho do saco levou a alma de nosso bebê.

Por JP Schimidt

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