Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, nasceu no Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde. É Juíza Desembargadora, poeta e ficcionista. Membro das Academias Caboverdiana de Letras, de Ciências de Lisboa, Gloriense de Letras e dos Municípios Cearenses, ALMECE. Integra a World Poetry Movement, WPM, Unión Hispanomundial de Escritores- UHE, União de Escritores de Língua Portuguesa.
É investigadora correspondente do Centro de Humanidades/CHAM da Universidade Nova de Lisboa e do Institut for African Women in Law.
Foi Ministra de Educação e Ensino Superior, Presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, Conselheira do Presidente da República e Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. Integrou organizações como Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, Comissão Internacional de Juristas, Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Associação Caboverdiana de Mulheres Juristas e Federação Internacional de Mulheres de Carreira Jurídica, entre outros.
Foi condecorada pelo Presidente da República com a Medalha da Ordem do Vulcão no 35º aniversário da Independência (2010); galardoada com a medalha de Mérito Cultural pelo Governo de Cabo Verde no 30º aniversário da Independência (2005); recebeu o prémio Norte-Sul dos Direitos Humanos do Conselho de Europa (1995); prémio Tchicaya U Tam´si de Poésie Africaine, prémio Sonangol de Literatura, prémio FEMINA 2020, para mulheres notáveis, prémio Literário Guerra Junqueiro (2021), Lusofonias, prémio José Aparecido de Oliveira de Honra e Glória ao Mérito, nos 25 anos da CPLP (2021).
Tem dezoito títulos publicados e mais de uma centena de colaboração nacional e internacional em jornais, revistas, antologias e outras obras coletivas.
ENTREVISTA
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Profª. Magna Aspásia Fontenele, entrevista a escritora africana Dra. Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, Ministra da Educação e Conselheira Presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, Conselheira do Presidente da República e Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde-África.
REVISTA THE BARD – Gostaríamos que a senhora compartilhasse um pouco sobre sua trajetória, sua infância, família, formação acadêmica e política de seu país.
VERA VALENTINA – A minha mãe disse-me que fui sempre uma menina algo especial porque nasci com a cabeça dentro do saco amniótico e, por isso, era uma criança buteada. Assim, ou seria uma pessoa especial ou sofreria de atraso mental. Ainda eu bebé, era magrinha e frágil. Um dia escapei dos braços da minha mãe e rolei pela escada de cimento, que tinha uns trinta degraus. Ela ficou paralisada a gritar: A minha filha morreu! Vieram ter dela e encontraram-me no último degrau com um sorriso no rosto. Posteriormente estive para morrer, pois tive uma doença que me tirou toda a vontade de comer.
Pacientemente a minha mãe obrigava-me a comer enquanto eu lhe pedia que parasse, pois só tinha uma boca e precisava dela também para falar e cantar. Quando toda a gente me dava por morta eu sobrevivi e até hoje cá estou neste planeta Terra. Mas foi uma infância feliz, cheia de brincadeiras ao ar livre.
Do lado materno a minha família é de origem judaica, de um certo Isaac Benrós que veio de Marrocos para Cabo Verde, passando por Gibraltar. Do casamento de Isaac Benrós com Gertrudes Felicidade Silva, de origem europeia, veio uma descendência que chegou à minha mãe Eufémia Filipa Benrós de Melo Duarte. Esta ascendência determinou o meu porvir, mas sobretudo marcou a minha infancia. A minha família materna era anticlerical e por isso os meus pais não se casaram pela Igreja Católica, maioritária no Arquipélago, nenhum dos seus filhos foi batizado e não frequentamos a igreja matriz que, por coincidência curiosa, ficava na nossa rua, em cuja Pracinha de Igreja muitas vezes íamos brincar e éramos mimados pelo poeta Jorge Barbosa, que adorava ver-nos a brincar.
O meu pai, Domingos António Duarte, que fora ajudante de sacristão na sua ilha natal de São Nicolau, ao casar-se com a minha mãe, passou a frequentar a Igreja Nazareno e nós, as crianças, íamos à igreja dominical. Ali comecei a experimentar o gosto pela poesia, pois não só aprendi a dizer poemas que declamávamos nas festividades natalícias, como também éramos estimuladas a escrever poemas.
Enquanto criança e adolescente -e estou a falar das décadas de 50 e 60 do século XX- não tinha consciência da situação da colonização. Mas na década de 60 comecei a notar algo que se prendia de alguma forma ao racismo, pois o meu pai, que era um self made man e se tornou num abastado comerciante, após ter sido um ótimo marceneiro, apesar de ser um nativo das ilhas, mestiço escuro, foi admitido como sócio da principal agremiação da ilha, o Grémio Recreativo do Mindelo, onde a maior parte dos sócios eram de pele clara, senão mesmo portugueses vindos da metrópole.
Por aí comecei a tomar a vaga consciência de que havia gente rica e gente pobre, gente branca e gente preta, e nós, apesar de mestiços, por sermos abastados, fazíamos parte da média e alta burguesia da ilha.
Quanto a mim, apesar de ser mulher e mestiça, nunca aceitei nem assumi o lugar de inferioridade que vi as mulheres ocuparem, não só porque os meus pais já tinham uma mente aberta e tratavam todos os filhos, rapazes e meninas, de forma igual, como por minha própria índole libertária. Pesquisando depois, descobri que o facto de a cultura judaica dar um lugar privilegiado às mulheres, de alguma forma, ainda que inconscientemente, terá estimulado a minha postura.
Porque sempre fui boa aluna, aos 14 anos já fazia retiros em grupo na ilha de Santo Antão, e aos 15 anos fui escolhida para fazer um retiro no norte de Portugal, no Minho, com moças de todas as então chamadas províncias ultramarinas. Nessa altura estava a começar a ter não só consciência da situação de colônia como da existência de estratificação social com base no sexo, nas posses, na cor da pele e na formação intelectual. Também nessa altura, em 1968, porque o Liceu Gil Eanes de São Vicente, que eu sempre frequentara, não tinha previsto a alínea e) para o 6.º e o 7.º ano, que dava acesso ao curso de Direito, fiquei logo em Portugal, como interna no Colégio das Doroteias em Lisboa. Desde os 10 anos de idade, que tinha dito que ia ser advogada e, nunca desisti de tal intento.
Em resumo, tive uma infância alegre e bonita, com oito irmãos e inúmeros primos, amigos, companheiros de brincadeiras ao ar livre, e com a presença permanente de uma mãe e um pai amantíssimos e cuidadores. Sem esquecer que da janela da minha casa via o mar e a baía do Mindelo com toda a sua beleza esplendorosa. Não posso deixar de registrar que foi no Liceu Gil Eanes que conheci e passei a admirar grandes nomes da nossa literatura como Baltazar Lopes, António Aurélio Gonçalves, Jorge Barbosa e Manuel Lopes, entre outros, cujas obras lia na estante de livros da casa de meus pais e na biblioteca municipal.
Poderia ainda ressaltar alguns momentos marcantes da minha infância: Aos 7 anos tive a minha primeira participação pública, ao declamar um poema durante a noite de Natal nas comemorações da Igreja Nazareno, em São Vicente. Aos 10 anos fui a única na minha sala de aulas a responder à pergunta da professora sobre o que queríamos ser quando fôssemos grandes, e respondi “advogada”.Aos 14 anos pertenci à primeira classe de ginástica feminina a ter lugar no Liceu Gil Eanes – e talvez em todo o Cabo Verde-, orientada pela professora Norma Miranda, jovem alemã casada com o cabo-verdiano Rui Miranda, que nos transmitiu muitas ideias em prol da emancipação da mulher. Aos 15 anos fui escolhida para fazer a intervenção de encerramento do 2º ciclo -5º ano dos liceus-, que até hoje guardo. Aos 15 anos também fui para Portugal fazer o 6º e o 7º ano dos liceus, para poder ingressar no curso de Direito.
Em outubro de 1970 eu entrava gloriosamente para a Faculdade de Direito de Lisboa, única menina de Cabo Verde no meio de vários rapazes.
E que ano esse!
Vindo na sequência de movimentos extremamente disruptivos como o maio de 68 em França e o maio de 69 em Coimbra, a Faculdade de Direito fervilhava de energia revolucionária. Em setembro de 1970 tinha sido criado o MRPP e a Faculdade de Direito de Lisboa tornou-se praticamente o quartel general desse movimento.
Eu já vinha de Cabo Verde com ideias ditas “revolucionárias”, pois circulava no meu sangue as leituras mais subversivas e era, convictamente de esquerda. Por isso integrei naturalmente o grupo de alunos da Faculdade de Direito que estava próximo ao MRPP e passei a participar em tudo quanto foi ação e subversão levado à cabo por esse movimento como pichagem de paredes, comícios, manifestações, boicotes, ocupações.
Estava alinhada com a malta de esquerda e os meus amigos portugueses ou vindos de África eram todos da mesma linha. Não havia assim entre nós racismo ou quaisquer outros sentimentos discriminatórios, que se constatavam em outros grupos.
E como nunca confundi o povo português com o regime colonial fascista de Portugal, estávamos todos do mesmo lado das barricadas. Entretanto já vivia com intensidade a luta clandestina do PAIGC e com outros colegas de Cabo Verde, fazia regularmente a rota da CUF, Lisnave e da JPimenta para a alfabetização dos operários cabo-verdianos em Lisboa e participava nos encontros da Casa de Estudantes das Colónias, CEC.
Estava no 4º ano de Direito, tinha uma vida intelectual intensa, e participava em todos os movimentos contestatários.
Lia imenso tudo o que me ajudava a abrir os olhos e o coração para uma vida mais digna e empoderada. Cultivava todos os “ismos” a que tinha direito e devorei poesia magistral, surrealista, encantatória, com momentos de absoluta transcendência;
O assassinato de Amílcar Cabral, a declaração da independência da Guiné Bissau, a existência de zonas libertadas, o decorrer da guerra colonial e o estertor do regime colonial fascista me motivavam.
Entretanto aconteceu o 25 de Abril de 1974 e a sua revolução dos cravos. Imediatamente interrompi o curso e regressei a Cabo Verde para vir trabalhar na Reconstrução Nacional. Embora no primeiro ano tivesse sido professora das disciplinas de Política e Português, no Liceu Ludgero Lima, já no ano seguinte, em 1975, fui convidada para trabalhar no Gabinete de Estudos de Legislação e Documentação do Ministério da Justiça na cidade da Praia.
A 5 de julho de 1975 a Assembleia Nacional proclamou solenemente Cabo Verde como Estado Independente e Soberano e dotou-o de uma lei de organização política do Estado LOPE, que em apenas 23 artigos lançou as bases para a nova República.
Eu nasci na época colonial, mas tive o privilégio de participar ativamente na luta contra o colonialismo e o fascismo e de viver intensamente o 25 de abril, a independência e a reconstrução nacional. Acredito que foi um processo que me enriqueceu como ser humano e do qual procurei sempre partilhar com os outros, na busca de algo melhor para todos. um mundo cada vez mais distópico, era importante manter a fé no futuro.
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REVISTA THE BARD – Como Ministra de Educação e Ensino Superior, qual é a sua opinião sobre a reforma ortográfica?
VERA VALENTINA – Entendo que a reforma ortográfica de 1990 vem permitir uma maior aproximação na escrita do português entre os 9 países que o tem como língua oficial. Assim pese embora alguns aspetos sem dúvida mais polémicos, concordei com a reforma, e foi enquanto Ministra da Educação e Ensino Superior que o concelho de ministros aprovou a reforma e decretou a sua entrada em vigor aqui em Cabo Verde.
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REVISTA THE BARD – De que maneira a literatura entrou na sua vida? Qual foi seu trabalho que marcou o inicio de sua trajetória como escritoras e quantas obras a senhora escreveu?
VERA VALENTINA – Desde a casa dos meus avós à casa dos meus pais sempre fui incentivada a leitura e sempre gostei de ler, apesar de ser míope desde criança nada me demoveu da leitura.
Desde os livros de quadradinhos aos caprichos, desde os contos infantis e juvenis dos irmãos Grimm, aos romances para adolescentes de Júlio Dinis, desde os romances proibidos de Eça de Queirós a todos os grandes escritores consagrados quer em prosa, quer em verso.
A escola dominical da Igreja do Nazareno, as estórias contadas ao entardecer na parte de trás da casa dos meus pais pelas cozinheiras, os filmes que a saudosa Teresinha sem saber ler nem escrever nos contava tim tim por tim tim, a enorme estante de livro que que habitava soberana o pátio da nossa casa na rua da Luz em Mindelo, o convívio com os professores, Nho Baltas, Nho Roque e os amigos de meus pais Jorge Barbosa e Manuel Lopes, tudo me motivava.
A belíssima e aconchegante biblioteca municipal que ficava atrás da Câmara e perto da minha casa, foram fatores fundamentais na criação do meu gosto pela leitura, sem esquecer as seletas literárias que foram os verdadeiros ex-libris pois me abriram as portas a todos os autores.
A minha primeira obra escrita e publicada em 1993 é o livro de poemas Amanhã Amadrugada que marcou indelevelmente a minha trajetória como escritora.
Tenho 18 livros publicados e participação em mais de uma centena de obras
coletivas.
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REVISTA THE BARD – O que te inspira a escrever?
VERA VALENTINA – O que me leva a escrever são as emoções que determinados factos ou acontecimentos em mim provocam. Podem ser factos importantes ou trivialidades. Podem ser fenómenos naturais, tragédias ou alegrias. O que interessa é que desencadeiam em mim a vontade imperiosa de cumplicizar na folha de papel as reflexões e emoções que me inspiram.
A escrita permite-me fazer a catarse das frustrações, expandir alegrias, manifestar posições e sentimentos, avançando no processo do autoconhecimento e autoestima e no conhecimento do mundo e das formas de o transformar a favor da mulher.Tenho hoje plena certeza de que foi fundamentalmente através da palavra escrita que a mulher cabo-verdiana, à semelhança de outras mulheres das mais diversas latitudes, conseguiu superar a sua posição tradicional de “ser inferior” que a história sempre lhe reservou. Embora a batalha pela emancipação da mulher tenha tido e continue tendo várias frentes, a frente da escrita parece-me ser uma das mais fundamentais.
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REVISTA THE BARD – Tem sonhos literários? Quais?
VERA VALENTINA – Tenho sonho de inscrever a escrita de mulheres cada vez com mais fulgor no universo literário cabo-verdiano e não só.
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REVISTA THE BARD – No Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humano, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Como a senhora vê essas questões nos dias atuais?
VERA VALENTINA – Em Cabo Verde, país que ascendeu à independência em 1975, portanto no início da Década das Nações Unidas para a igualdade da mulher, devo dizer que todo o ordenamento jurídico nacional, vem sendo criado sob a ótica da igualdade e equidade de género, sendo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, vem informando não só a constituição da República como as demais leis ordinárias.
Por isso, podemos asseverar que em termos legais o ordenamento jurídico cabo-verdiano acolho todos os princípios que dizem respeito a igualdade e equidade de género.
O que é mais claudicante é a materialização de todas as injunções legais na prática quotidiana, mas mesmo aí passos seguros vêm sendo dados.
De assinalar que Cabo Verde teve o primeiro governo paritário de Africa, em que eu tive a honra de participar como ministra da educação e ensino superior e que a violência contra as mulheres já está tipificada, no código penal vigente como crime público. Também a interrupção voluntária de gravidez é legalmente permitida até as 12 semanas e foi eliminada a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos conforme nascidos ou não na constância de casamento entre os progenitores.
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REVISTA THE BARD – A reforma da Constituição de um país perpassa pela ideia de aumentar a confiança dos seus cidadãos nas instituições políticas representativas da sociedade que o representam. A reforma da Constituição de Cabo Verde a qual a senhora participou, de que maneira os direitos da mulher estão segurados?
VERA VALENTINA – Antes de mais, é a própria constituição da República de Cabo Verde que reconhece no seu artigo primeiro a igualdade de género no nosso país ao decretar no número 1 que garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos Direitos Humanos.
No número 2 estipula claramente que a República de Cabo Verde reconhece a igualdade de todos os cidadãos perante a lei sem distinção de sexo, e assegura o pleno exercício por todos os cidadãos das liberdades fundamentais.
Por outro lado, a nossa lei magna consagra no art. 12º o direito internacional como fazendo parte da ordem jurídica interna após sua publicação oficial.
Ora todos os tratados que dizem respeito a igualdade e equidade de género têm sido ratificados por Cabo Verde e estão em vigor na ordem jurídica interna, máxime a importante convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres.
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REVISTA THE BARD – Deixe uma mensagem para os leitores da Revista The Bard.
VERA VALENTINA – Leiam! Leiam poesia, ficção, mas sobretudo leiam a escrita de mulheres.
Muito obrigada, pela sua disponibilidade em participar dessa entrevista.
LIVROS
Por MAGNA ASPÁSIA