NOSSA LITERATURA – Entrevista com João Batista Fernandes Filho

NOSSA LITERATURA – Entrevista com João Batista Fernandes Filho

ENTREVISTA

 

 João Batista Fernandes Filho nasceu em 1975, em Bom Jesus da Lapa/BA é escritor e poeta, graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Literatura e Cultura pela UFBA. Doutorando em Literatura Portuguesa na Universidade São Paulo (USP). Participou de algumas antologias de contos, dentre elas: Terriblemente felices. Nueva narrativa brasilenã, Emecé Editores, 2007, Argentina; 90 – 00: cuentos brasileños contemporâneos, Ediciones Copé, 2009, Peru; Geração Zero Zero, fricções em rede, Língua Geral, 2011, Brasil; Popcorn unterm Zuckerhut, Verlag Klaus Wagenbach, 2013, Alemanha. Publicou Encarniçado, contos, pela Editora Baleia, em 2004, livro traduzido para o espanhol, editado no México, em 2015. Ao longo da linha amarela, em 2009. Dicionário amoroso de Salvador, crônicas, editado pela Casarão do Verbo em 2014. As Três Sibilas, poesia, edição de Dulcineia Catadora em 2009; A Dimensão Necessária, poesia, pela Editora Mondrongo, 2014; o qual ganhou o Prêmio Alphonsus de Guimaraens de 2015, pela Biblioteca Nacional; Auto da Romaria, poesia, Mondrongo, 2017. Auto do São Francisco, teatro, Kelps, 2017. Um Sol de Bolso, poesia, Mondrongo, 2020.

 “…Eis aí alguém que não descansa no cânon dos pares sem passar pelo calor do povo…” Adriano Ferreira.

 “…João Filho é poeta que deve marcar seu nome na história da poesia brasileira do século XXI.” Adalberto de Queiroz

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REVISTA THE BARD Acredito que a aluna e fã com certeza irá se sobrepor a entrevistadora, sendo assim, as perguntas e respostas me fazem também público leitor nessa entrevista. Portanto, professor, fico muito à vontade em te perguntar para aprender. Essas características da tua escrita que retoma a tradição, a técnica, que até pouco tempo era o que de fato se reconhecia um texto poético, tem por tua parte um compromisso de resgate para futuras gerações de poetas?

 

JOÃO FILHO Eu que agradeço suas palavras generosas e o convite para a entrevista. Toda escrita está ligada, grosso modo, a algum tipo de tradição. Não importa o gênero literário, ele terá um lastro histórico. Em arte não existe começar do zero. Tal ideia é uma tradição moderna. Desse modo, me alinho, ou parte do que escrevo se alinha a linhagem da poesia discursiva. O que procuro fazer é manter um diálogo com essa linhagem. Desse modo, não há resgate, mas uma tentativa de continuidade.

Para o leitor que deseja conhecer um pouco mais da poesia discursiva mais próxima de nós, indico duas antologias: Sincretismo – poesia da geração 60, organizada por Pedro Lyra, e Poesia brasileira em contracorrente – o retorno estético do século XXI, organização e tradução de Wladimir Saldanha.

 

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REVISTA THE BARD Li um texto do Adalberto de Queiroz, jornalista e poeta, no jornal opção, onde ele comenta o livro Auto da Romaria e destaca tua coragem, talento e transcendência do mundo. Nesse mesmo texto vi o termo “poeta Católico”. Então, João filho é um poeta católico, da poesia tradicional, de herança literária portuguesa… e do pós-modernismo? Me parece que esse pós-modernismo não está encaixando, é isso mesmo?

 

JOÃO FILHO O grande poeta português Fernando Echevarría costuma responder o seguinte quando perguntam se ele é um poeta católico: “Não sou um poeta católico, sou um católico que é poeta. Grande poeta católico é São João da Cruz. Eu não sou São João da Cruz.” com o imenso poeta e místico espanhol eu só tenho de semelhante o nome. Todo poeta que escreve em português DEVE à tradição da poesia em Língua Portuguesa. Seja a tradição vanguardista, discursiva, alternativa, experimental etc. Quem diz que não, e continua escrevendo no idioma de Fernando Pessoa, está mentido. Pós-modernismo não encaixa porque é termo mal empregado. Temos realmente certeza de que já ultrapassamos o modernismo? Os teóricos que li não me convenceram, pois vivem atolados num cronocentrismo absoluto, numa ânsia de novidade a cada semana. No meu caso, poeta vivendo e publicando no século XXI, o que parece não se enquadrar é a perspectiva metafísica assumida. No entanto, é uma linhagem poética que nunca deixou de dar seus frutos.

 

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REVISTA THE BARD “…uma curiosidade interessante. Ao ler esse texto de João Filho, tive de perguntar ao autor o significado de tais palavras. Depois, fiquei impressionado com a proximidade de “naifa” com a palavra inglesa knife — faca, canivete. Não é só proximidade: naifa vem de knife. Mas como isso foi parar no sertão? Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra entrou para o português durante o período das guerras napoleônicas, no início do século XIX, quando as tropas inglesas estiveram em Portugal.” Comentário de Carlos Machado no site algumapoesia.com.br sobre o poema:

VIVÊNCIA DA VENDA

Da Venda —
(arames, peixeiras, lambedeiras, vianas, naifas, pregos, anzóis, quinas, estreitezas, aniagens, variantes etc.)

Da lata aberta por faca e martelo na pancada
sobra beiço pendurado
que esfiapa
                              Da lata aberta
a língua-alumínio logrando
o que der retalho

[…]

Da Venda o variabilíssimo —
facas de uso onde ferrugem é inoxidável
Enganchadas em arame na prateleira — as facas
num escape
se enfincam
no que dá furo

As facas (enferrujadas ou não)
são firulências

Peixeiras, vianas, cruvianas, serengas, lambedeiras e naifas (famintas de estripas)
penduradas no arame

[…]

Pregos pequenos — os que mais perigam
imprevistos na picada
Na ferrugem
tétanos tinem…

 Achei pertinente esse comentário justamente porque na mentoria Vida, Prosa e Poesia tem um exercício sobre as palavras insubstituíveis. E pensando sobre as minhas palavras insubstituíveis senti afogar-me na memória afetiva, é uma espécie de apaziguamento íntimo. Essa sensação, pra quem gosta de escrever, é uma fonte inesgotável, nos faz ver uma beleza que liga sofrimento e alegria, e essa beleza se chama vida, é quando a gratidão nos invade. Nos teus poemas, que li, vi muito desses diálogos. O poeta João Filho é fruto desse processo?

 

JOÃO FILHO Também. As palavras insubstituíveis (ou expressões) são aquelas que compõem nosso dicionário particular, e estão repletas de substância existencial. Cada palavra ou expressão desencadeia um processo mnemônico riquíssimo, e nos ajuda narrar a nossa própria história. O livro em que mais usei esse recurso foi o Auto da Romaria. Minhas palavras insubstituíveis estão ligadas a roça do meu avô materno, ou a venda do meu pai.

 

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REVISTA THE BARD Li algumas vezes no livro Um sol de bolso não sei quantas vezes o poema “Rês quebrada” ou a última estrofe de “A família lírica II” ou “O poema perdeu todas as causas” … Enfim; o que sei, é que estou tendo acesso a um poeta protagonista, que traz a musicalidade, o ritmo, o rigor técnico e formal, o respeito a arte da linguagem e seu aspecto estético e metafisico. A verdadeira poesia é exigente em técnica, dedicação, emoção, desapego… Não é fácil ir contra a maré. Então, por que ser poeta?

 

JOÃO FILHO Nascemos com tendência para alguma coisa. Tendência que poderá vir a ser uma vocação. A pessoa pode escolher ou não seguir esse pendor. Na adolescência eu intuí três caminhos – música, desenho e literatura. Escolhi a última. Desde o início eu sabia que teria que estudar muito, aprender e aprender e aprender técnicas, modos, formas etc., etc. Testar e testar todo o instrumental adquirido. Fiz e faço todo esse caminho por amor. E, dentro de minhas limitações, sem que eu merecesse, sou lido e até já escreveram sobre o que publiquei. Ou seja, recebo o que não mereço. Não estou sendo modesto, não sou modesto. Apenas realista. Ninguém é obrigado a ler, comprar ou elogiar o que escrevo. Na sua pergunta você diz: “A verdadeira poesia é exigente em técnica, dedicação, emoção, desapego… Não é fácil ir contra a maré”, ou seja, essa maré que vai contra a verdadeira poesia é estúpida, efêmera e vazia. Com isso afirmo que eu faço a verdadeira poesia, a que vai permanecer? Não sei. É bem provável que não. Sei que dialogo com gigantes, e não estou à altura deles, mas só em ter o privilégio do diálogo é uma dádiva.

 

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REVISTA THE BARD Agora, professor João, conta um pouco do teu início como escritor e do Prêmio Alphonsus de Guimarães que ganhaste da Biblioteca Nacional pelo livro A Dimensão necessária, e, por favor, deixa uma mensagem de incentivo para nós da The Bard e nossos leitores, que somos aspirantes a escritores?

PÓS-FÁBULA

No seu delírio de durar,

buscou a forma permanente,

que atravessasse os mares findos

e desse em praias do presente.

Não bronze ou aço, algo mais dúctil,

que suportasse as elegias

que as estações ditam ao tempo

na sua má caligrafia.

Envelheceu em tal propósito,

a elaborar um falso eterno:

em cada ruga um desespero,

em cada perda um novo inferno.

E não buscava só memória,

nome num muro ou numa mente,

mas extrair o cerne vivo

do que ontem fora e é presente.

Antes do fim logrou, ó suma!

a sua bilha de aporia,

que lá chegou, nas praias findas —

bela, intocável e vazia.

João Filho – poema do livro “A Dimensão Necessária”

 

JOÃO FILHO Comecei os primeiros rabiscos entre os onze/doze anos. Costumo citar um verso de Paulo Mendes Campos: “Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.” É o meu caso. De lá para cá me dediquei a ler, estudar, conhecer algumas áreas, como literatura, artes plásticas, cinema, história, filosofia, política etc. Publiquei alguns livros de contos, de poesia, um de crônica, uma peça teatral, tenho inúmeras parcerias com amigos músicos, sou letrista, escrevi uma dissertação, e estou preparando uma tese, esses dois trabalhos em Literatura Portuguesa. Ganhar o prêmio da Biblioteca Nacional, em 2015, foi uma grande alegria. Quando saiu o resultado, havia me esquecido que Gustavo Felicíssimo, o editor da Mondrongo, e eu colocáramos o livro para concorrer. Estávamos em Buenos Aires, minha esposa e eu, e um amigo, manhãzinha no hotel, felicitou-me via e-mail, mas não disse o que era. Achei que ele se enganara. Só depois me dei conta que havia sido pelo primeiro lugar de A dimensão necessária. Dei um berro que acordou todo mundo no hotel! (risos)

 A mensagem de incentivo é a seguinte: se vocês tiverem verdadeira tendência para a escrita vão suportar tudo para continuarem a escrever. Eu fui balconista, vendedor, secretário, radialista, jornalista freelancer, dono de sebo, estive desempregado, enfim, o que não mudou foi minha vontade de estudar, conhecer e continuar a escrever.

Por CLEÓPATRA MELO

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