AS CORES DA SOCIEDADE – Você tem fome de quê?

AS CORES DA SOCIEDADE – Você tem fome de quê?

Foto divulgação Banda de Rock Titãs

 No final dos anos 80, uma das bandas mais icônicas do rock nacional brasileiro, Os Titãs, cantava de forma entusiasta os versos “a gente não quer só comida / a gente quer comida, diversão e arte”, e ainda queremos, afinal não tem que ser uma coisa ou outra, a arte faz parte – ou deveria fazer – da formação humana, ferramenta importante para expor o que pensamos ou sentimos de maneira crítica e reflexiva. Seja produzindo ou consumindo, a arte nos ajuda a compreender o mundo a nossa volta, e ela está em tudo: no museu, nas igrejas, na favela, nas esquinas, no asfalto. Infelizmente, porém, embora ocupe todos esses espaços, e haja todo tipo de arte sendo disseminada por aí, ela ainda não é acessível a todos e o que é pior, as artes de rua, preta e periférica sofrem preconceitos de toda sorte e são quase sempre marginalizadas e diminuídas.

Foto divulgação Rapper Emicida

 Naturalmente, o Brasil é um país de grandes artistas, na música, na dança, no teatro, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. Apesar disso, sabemos que os espaços de arte estão em grandes centros urbanos, muitas vezes longe das periferias, e pouco acessível às pequenas cidades. Promover uma descentralização desses espaços é de máxima urgência para a construção de um país mais coerente e mais justo. A exemplo do rapper Emicida, em seu projeto “AmarElo” de 2019, que virou um documentário da Netflix, em que o artista promove uma ocupação do Teatro Municipal. Ali acontece um show épico, histórico e muito simbólico, onde a pauta é a valorização da cultura preta periférica e personalidades negras importantes recebem holofotes, como a antropóloga Lélia Gonzalez e a atriz Ruth de Souza. A plateia, quase hegemonicamente ocupada pelas periferias – muitos inclusive nunca haviam pisado ali – nos ajuda a entender o que o documentário quer escancarar. Nas palavras do próprio Emicida, escolheu-se o Municipal “porque não tem uma viga, não tem uma ponte, não tem uma rua, que não tenha tido uma mão negra trabalhando”, Emicida leva a periferia para um dos berços da arte burguesa, no centro de São Paulo, como se dissesse: “Isso aqui também é de vocês.” E ali, eles produzem arte da melhor qualidade.

Foto divulgação Lélia Gonzalez

 É importante pontuar também que o Teatro Municipal foi palco de grandes acontecimentos históricos. A Semana da Arte Moderna de 1922, por exemplo, foi um movimento importante que promoveu uma revolução no entendimento do que é arte e, por valorizar aspectos nacionais, abriu as portas para o samba, que à época era marginalizado. Os reflexos dessa semana repercutiram em tudo o que foi feito a partir dali e até hoje os mais diversos artistas bebem das fontes modernistas. Além disso, foi nas escadarias desse mesmo teatro, em 1978, que inúmeros manifestantes negros fizeram um protesto contra a violência racial, dentre eles, Lélia Gonzalez, citada anteriormente. Ali surgiu o Movimento Negro Unificado (MNU), em plena ditadura militar. Posto isso, não é difícil perceber que, apesar de ser um lugar onde se cultua uma arte elitista, o Teatro Municipal, não raro, é cenário para diversos movimentos revolucionários na história.

Teatro Municipal de São Paulo em 1922. Foto: Arteref/ Reprodução

 No país onde a classe artística é atacada e centros históricos sucateados, é urgente pensar políticas públicas que possibilitem maior acesso ao cinema, ao teatro, aos museus, e que garantam o direito à cidade, além de valorizar a arte de rua, das favelas e dos guetos. Mais do que promover a descentralização dos espaços de arte, como dito anteriormente, é preciso reconhecer a arte periférica e trazer para o debate público a potência das favelas, repletas de cultura, movimentos importantes e projetos transformadores. A jornalista Gabrielle Araújo, repórter do site www.observatoriodefavelas.org.br, em texto de sua autoria pontua o seguinte

 Apresentar novas formas de representação, investir no fortalecimento do território, promover diálogo e protagonismo de moradores etc. Engana-se quem pensa que a produção cultural em favelas e periferias é marcada apenas por diferentes conceitos subjetivos. A realidade mostra que, quando postos esses elementos em prática, a relevância de diversos movimentos sociais a partir da arte não nascem apenas como ferramenta de transformação, mas sim como símbolos de resistência e afirmação de narrativas.

 (Araújo, Arte, favela e resistência, 2022)

 A arte e a favela resistem e enfrentam de maneira corajosa todo esse sistema burguês que tenta encaixotar a arte e invisibilizar a favela. Não passarão, porque o povo ainda tem fome de cultura, tem sede de arte e clama por um país verdadeiramente democrático, que valoriza seus artistas e haja espaço para ser o que se é e construir sua arte da forma que melhor lhe convier. Nós seguiremos lutando famintos.

Foto divulgação Banda Titãs

E você? Tem fome de quê?

Por XÚNIOR MATRAGA

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