Ah, os quadrinhos… Nunca saem de moda, não é?
São como aquelas peças de roupa clássicas, camisa branca, jaqueta jeans, tubinho preto, que recebem novos cortes, talvez um tingimento ousado, uma alteração radical no comprimento para a próxima estação, sob a regência de novos conceitos do estilismo e da indústria, mais inclusivos e sustentáveis, porém… permanecem clássicas.
Com os quadrinhos, já centenários, é o mesmo movimento. Os traços gráficos são modernizados à medida que chegam os novos públicos. Por isso estão sempre no gosto dos leitores, dos pequeticos aos veteranos. Também os tipos de personagens e os enredos se diversificam. Nem todas as famílias são mononucleares, os negros e outras “minorias” encontram maior representatividade, os perfis cognitivos e sexuais se ampliam. Afinal, os quadradinhos no papel têm de espelhar com mais fidelidade a realidade plural. Já era hora! E isso é ótimo.
Agora, se tiver de escolher estilos preferidos, queridos leitores da The Bard, já logo confesso que para o meu paladar não são os de heróis os mais apetitosos. É claro que li muitas histórias assim na infância, como vocês também, e cá estou anos depois rodeada de encadernações de onde saltam fantasias bicolores, máscaras misteriosas e capas mágicas. Certamente são fortes atrativos para meu filho de oito, e eu embarco com ele na aventura, ganhando a oportunidade, depois de adulta, de finalmente entender (ou não) que um grande lagarto verde é antagonista tanto do Homem-Morcego quanto do Homem-Aranha e o que seria um tal simbionte…
Mas os quadrinhos que mais me pegam são aqueles com personagens bem comuns, realistas, imperfeitos, divertidos em sua simplicidade, e, por sua natureza, verdadeiramente extraordinários, certo? Digamos: gente como a gente. Sem DNA de outra espécie. Sem mutações alienígenas. Sem destrezas sobre-humanas. Sem superpoderes. É justamente o humano mais genuíno que me encanta. A criança ciumenta, a mãe estressada, o colega de classe nota 10 em tudo, o professor carismático, o vendedor de sorvete sorridente, o pai sovina, a vizinha solteirona. Os tipos, sim, porque muitos quadrinhos trabalham com tipos humanos, os estereótipos, as caricaturas, já que se prestam bem a construir esquemas da vida, pequenos sketches de três páginas, versões resumidas de nós mesmos. Aliás, são uma excelente fonte de inspiração para os autores de comédia em geral.
Uma segunda preferência minha são os quadrinhos nacionais. O número de gibis da Turma da Mônica que tive quando menina superava anos-luz aqueles da Disney, por exemplo. Muito menos Pato Donald e muito mais Franjinha e Bidu. Algumas edições mais luxuosas, em capa dura, apesar de carregadas de rabiscos e o cheiro do tempo, ainda estão guardadas em família, na casa dos meus pais. Herança antecipada ou não, também meu filho, desde que se interessou pela leitura, tem preferido as histórias do Mauricio de Sousa, que invadiram livremente sua imaginação. Um de seus hábitos matinais é devorar alguns gibis enquanto também devora suas bolachas no café da manhã.
Acho a Mauricio de Sousa Produções um empreendimento de muito sucesso, um dos maiores e mais longevos na área de quadrinhos e seus subprodutos no Brasil. Seu idealizador e atual presidente é considerado nacional e internacionalmente um dos mais importantes cartunistas brasileiros, com seus mais de cinquenta anos de estrada na carreira. Em meio século, imagino que foram muitas as ocasiões em que ele e sua equipe tiveram de se reinventar, porque o país e seus leitores mudaram profundamente, bem como os próprios suportes de leitura. Eles viram os principais pontos de venda de gibis, as bancas de jornal e as livrarias (verdadeiros pontos de encontro e de fofoca), minguarem ao longo dos últimos anos, junto dos textos, livros e documentos impressos. Investiram, portanto, no desenho animado, no cinema, nas parcerias com as grandes marcas dos quadrinhos lá fora, como a D.C., nos gibis digitais e no universo dos games, com a proposta não só de jogos em si, mas de versões pixeladas dos desenhos da turminha (em Mônica Toy e outros).
Hoje tenho uma percepção das histórias em quadrinhos muito mais ampla e interessada. Explico: busco avaliá-las do ponto de vista do imaginário que modelam e do público que pressupõem, de seus valores sociais e dos retratos de mundo que apresentam, que na infância me passavam obviamente despercebidos (não sem deixar marcas na minha vivência de leitora).
Hoje carrego experiências de ter conhecido mais de perto, presencial ou virtualmente, quadrinistas brasileiros atuantes no mercado editorial, entrevistados por mim na Casa na Arte (meu canal no Youtube), como o Irapuan Luiz, ou cumprimentados em feiras e eventos literários e de cultura geek, como o Jefferson Costa e o Ede Galileu, que estão por aí, reinventando clássicos dos quadrinhos ou criando seus próprios personagens e heróis.
Hoje, por fim, também saboreio os projetos gráfico-narrativos contemporâneos, impensáveis há trinta anos, que recolocam questões importantes como identidade, superação, a nossa história e o pertencimento. Escolho um em especial para dividir aqui com vocês. O Graphic MSP, que apresenta histórias dos personagens mais conhecidos do Mauricio de Sousa em edição de colecionador, publicada pela Panini Brasil há alguns anos.
Um mesmo personagem ganha, às vezes, mais de uma história e, caindo cada uma nas mãos de um quadrinista diferente, é revisto de modo muito criativo e diferenciado. Encontramos, por exemplo, Pitecos bem distintos em cada impressão dessas histórias, porque redesenhados por profissionais à sua maneira, com o seu traçado e a sua interpretação, tomando por base o original.
As encadernações absorvem elementos culturais muito próprios das cidades e regiões de origem dos cartunistas e desenhistas, das suas memórias de infância, das suas percepções da sociedade atual, sendo apropriações individuais da criação originária, que recebem, na diagramação, capas especiais, uma apresentação de primeira página sempre assinada pelo Mauricio, e materiais complementares ao final da história, riquíssimos, reveladores dos esboços, dos rascunhos desprezados, das versões de capa não aprovadas, do estudo das cores testadas, enfim, um prato cheio para quem curte bastidores, processos criativos e making of.
O propósito geral, pelas pistas sugeridas nas próprias publicações, é ser um conjunto de produtos da marca Mauricio de Sousa Produções destinado a um público com mais idade ou mais maturidade, que queira ver seus personagens prediletos em narrativas longas permeadas de debates mais profundos do que aqueles possíveis no bom e velho gibi. Nessas revistas maiores, com qualidade de papel e impressão bem superior ao papel jornal, podemos, eu acho, envelhecer junto de nossos personagens e consequentemente vê-los enfrentando dilemas típicos da vida jovem e adulta, sem que, no entanto, eles apareçam mais velhos como no projeto Turma da Mônica Jovem. As crianças continuam com sete anos (como sempre!), o Anjinho continua um pequeno anjo, mas a densidade de seus sentimentos é muito maior, mais encorpada, porque ajudada justamente pelos desenhos que extravasam com vigor os contrastes básicos entre cores sólidas chapadas e a arquitetura engessada e sem texturas das revistinhas de pequeno formato.
Saímos de um curta cômico para o longa-metragem dramático. E essa inovação, pela minha sensação como leitora, deu muito certo. Mas deu muito certo para mim, mulher adulta. Porque nem todas as histórias da Graphic MSP capturaram meu filho, que em certas ocasiões lamentou a falta de ação, de aventura. E com razão. Cascão: Temporal, de Camilo Solano, e Denise: Arraso, de Cora Ottoni, têm enredo, sucessão de fatos e transformações na vida dos personagens bem evidentes. Penadinho: Lar também – e nesse ponto quem ainda não conhecia esse projeto já deve ter reparado no padrão dos títulos, formados repetidamente pelo nome do personagem e por um substantivo tema da história.
Já Anjinho: Além não avança por meio de tramas, mas de inquietações bem marcantes do protagonista em relação à própria veracidade da existência de Deus e seu senso de justiça, numa perspectiva muito introspectiva para crianças pequenas.
Por outro lado, e ainda em razão desse caráter, vejo como leituras que podem ajudar bastante a introduzir para os pequenos discussões mais delicadas, como a da perda de um familiar. É o caso de uma das minhas revistas prediletas da coleção, a Chico Bento: Arvorada, roteirizada e desenhada por Orlandeli (experiente e premiado cartunista, ilustrador e chargista), que narra o falecimento da avó do nosso querido caipira de um jeito poético, aludindo ao florescer exuberante, porém fugaz de uma árvore centenária, o ipê amarelo. Também o título multiplica sentidos, referindo o ciclo da árvore em questão e o modo gramaticalmente incorreto de Chico pronunciar “alvorada”.
Fica aqui minha dica, meus caros, para que com esses e outros livros em quadrinhos haja a mediação da leitura por parte de um adulto, para que a criança entre aos poucos nesses universos tão cheios de significados ainda inéditos e necessários. Assim elas não se sentem frustradas ou incapazes e começam a esboçar seu mundinho interno. Que tal?
Fica também aqui a dica para que agora curtam os outros textos desta edição da The Bard, a primeira de 2023, para que possam admirar uma bela alvorada de conhecimento!
Até a próxima!
Por VANINA SIGRIST