VOZES DO UMBRAL – Atravessador

VOZES DO UMBRAL – Atravessador

 — Pode descer aqui? Tem uma entrega pra você.

 Lana estava debruçada na janela.

 — Lana? Consegue ver quem tá lá embaixo?

 — Na frente da portaria tem um cara. E tem uma van branca parada na frente do prédio.

 — É da parte de Malik – insistiu a voz.

 — Pera que já vou – colocou o interfone na parede e ficou olhando-o. Era a hora do golpe. Mas, porra, que golpe era aquele? O que queriam?

 Sou pobre, caralho! Não perceberam isso?

 Fossem quem fossem, eles estavam na porta de seu prédio. Não tinham como não perceber.

 — Vou lá ver o que é – disse, vestindo uma calça jeans.

 — Eu vou com você. Sou boa de porrada.

 — Não – disse ele, digerindo essa nova informação enquanto procurava uma camisa – Fica aí! Já volto!

 Desceu as escadas correndo. Na portaria, estava um homem pequeno, magrelo, de cabelo desgrenhado e nariz enorme, que se alongava de seu crânio, como um focinho. Com 100% de certeza, seu apelido era “rato”.

 — Salomão?

 — Sim. Você é?

 — Quanto menos você souber, melhor pra todo mundo. Toma.

 Colocou uma chave de carro em sua mão.

 — O que…

 Apontou para a van com o queixo. Era uma Jumper branca, reluzente de nova, sem janelas na traseira.

 — O documento tá no porta-luvas.

 — Cara, que história é essa?

 O Rato revirou os olhos, impaciente.

 — Vem cá.

 Foi com Salomão até a traseira e abriu. Salomão tonteou quando viu os sacos. Sacos e sacos de lona, estufados, empilhados uns sobre os outros. Aqui e ali, alguns maços de notas espalhados.

 — Não vai me dizer que aí tem…

 — Cento e um milhões oitocentos e noventa mil. O preço da van foi abatido.

 — De onde veio esse dinheiro?

 Ele riu um riso amargo.

 — Essa, garoto, é uma informação que você não quer.

 Salomão esticou a chave para Rato, que deu um passo atrás, mãos erguidas na frente do peito.

 — Dá pros pobres, taca fogo, faz o que quiser, amigo, mas é teu. Eu nem toco nessa chave mais.

 — Aquele filho da puta!

 — Eu sei, é foda. Escuta, garoto – Salomão olhou para ele, cabeça a mil. – O carro é quente. O documento é quente. Não tem ninguém procurando por ele. Ainda. Mas as pessoas que eram donas desse dinheiro… elas encontram pessoas e coisas. É uma das coisas que elas fazem melhor. Então, meu conselho é você esperar ficar de dia, pra não arriscar cair numa blitz na madrugada, e arrumar um lugar pra guardar esse dinheiro. Deixa ele esfriar. Depois, arruma um lugar para levar esse carro, marreta tudo o que tiver a numeração do chassi e taca fogo. E espera. Não sai gastando igual a um alucinado. As pessoas sempre se ferram por causa disso.

 — Cara…

 — Eu já falei demais. Nem tô aqui. Tchau.

 Saiu andando. Salomão olhou-o afastar-se até ele virar uma esquina. Nunca mais o viu.

***

 Salomão abriu a porta de casa e Lana pulou nele, pendurando-se em seu pescoço, enchendo-o de beijos. Estava vestida com uma camisa que havia pego no armário.

 — Amor, eu fiquei tão preocupada! Até peguei um vaso de planta pra jogar na cabeça dele, se ele fizesse alguma gracinha! Que cara é essa?

 Ele explicou. Lana deu uma gargalhada.

 — Pra onde a gente vai?

 — Pra onde o que, mulher?

 — A gente tá rico! Pra onde a gente vai? Tailândia! Não, Maldivas!

 — Lana…

 — Maldivas! Por favor! Por favorzinho! Mas se aquela vadia que traz o café da manhã na canoa te der mole, eu juro que afogo ela!

 — Calma, porra! – Ela parou, boca aberta. – A gente não pode sair gastando esse dinheiro que nem doido. A gente não sabe nem de quem era, como sumiu. Precisamos… – ela continuava congelada, os olhos nele, muito abertos. – Por que tá me olhando com essa cara?

 — É que me dá um tesão quando você grita comigo.

 — Jesus…

 — Cara, você pediu o prêmio da Mega-Sena! Que genial!

 — Não, eu sou um idiota. Genial seria se eu pedisse para ganhar na Mega-Sena. E aí, o dinheiro viria limpinho, na minha conta. Agora tenho um dinheiro que não tenho ideia de onde veio, mas que sei que vão procurar até o fim do mundo. Temos que pensar muito bem no que vamos fazer.

 Ela riu.

 — O Malik é um filho da puta mesmo.

 — Me diz uma coisa, como você o conheceu? E como veio parar aqui? Não vai me dizer que abriu uma caixa, também.

 — Não! Nada a ver. Eu não sei muito sobre ele, mas pelo pouco que sei, não é ele que tem dívida com as pessoas. São elas que tem dívida com ele. Eu precisava de ajuda. E uma amiga me ensinou a entrar em contato com ele.

 — Como assim, entrar em contato?

 — Como chamar ele. E vou te falar? É difícil pra cacete. Tem que ser noite de lua nova. E não qualquer lua nova. E você tem que se preparar vários dias antes. Meditação, jejum. O ritual cansa demais, pede muita concentração. Então, você não pode tar bêbado, nem drogado. E onde eu tava me davam muito remédio. Tive que fingir que tomava. O que é difícil, também.
Salomão estava com um bolo na garganta.

 — Onde você tava?

 — Num hospital. Daqueles que você entra e não sai.

 — E o que você fez pra parar lá?

 — Matei meu ex.

 — Puta que o pariu.

 — Olha, eu sei o que parece! Eu ia te contar! Juro que ia te contar, quando a gente tivesse mais intimidade. Mas eu era outra pessoa. E o relacionamento, também, totalmente diferente, nada a ver com o que a gente tem. Ele era um galinha. Me chifrava a torto e a direito. Um dia, achei a foto duma mulher na carteira dele. Cara… quem tem foto em carteira hoje em dia? Pelo amor de Deus!
Ela riu. Salomão não.

 — Eu ia perguntar pra ele quem era, mas eu sabia que ele ia me enrolar, porque ele sempre me enrolava. E eu sempre engolia. E eu já sabia a verdade, e sabia o que eu tinha que fazer, não precisava perguntar. Coloquei remédio pra dormir no suco dele, esperei fazer efeito, coloquei ele na cama. E taquei fogo nele. Não me olha assim. Eu sei que foi errado. Hoje, eu sei resolver meus problemas de outro jeito. Jamais faria uma coisa dessas outra vez.

 Salomão passou algum tempo com o rosto afundado nas mãos.

 — O que mais você sabe de Malik?

 — Pouco. Que ele faz trocas. Ele conecta alguém que quer alguma coisa com alguém que tem aquela coisa.

 — Um filho da puta dum atravessador, é o que ele é. Mas o que ele leva? – Todo atravessador ganha algo. O que ele ganha?

 Ela encolheu os ombros.

 — Não faço ideia. Só sei que meus pedidos não vieram de cara, igual os teus. Estou esperando faz anos. Acho que ele te pagou hoje porque era ele que te devia. Pra chamar ele, tentei sete vezes, até conseguir. Quando ele veio, conversamos. E ele me fez um monte de perguntas, até que disse que eu era uma pessoa de palavra. E disse que, quando houvesse alguém pra encaixar com meus desejos, ele viria me chamar.

 — O que você pediu?

 — Para sair daquele lugar, claro. E nunca mais ser presa outra vez. Pedi um homem bom, também. Pelo qual eu fosse totalmente apaixonada.

 — E o terceiro?

 — Pedi para ser capaz de ler os pensamentos das pessoas.

 Salomão congelou, os olhos enormes. Lana riu alto, linda e louca.

 — Tinha que ver tua cara! É brincadeira, bobão! – Riu mais. –Será? Será que é brincadeira? – Gargalhou.

 — Ainda bem que alguém tá se divertindo.

 — Amor, você é muito engraçado!

 Salomão foi à geladeira, pegou uma lata de cerveja, voltou à sala. Viu o maço de Marlboro largado no chão, no meio das roupas dela. Pegou um e acendeu. Deixou o corpo cair no sofá. Deu um gole na cerveja, uma tragada no cigarro e soltou um longo peido.

 Lana riu, encantada.

 Pelo menos, ele tinha saúde.

Por JORGE ALEXANDRE

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