1. Considerações iniciais
As figuras de linguagem existem para destacar nuances e intenções do autor, dentro de determinado contexto. São, sobretudo, uma preciosa ferramenta para escrito-res e músicos que se utilizam de um texto verbal, em suas canções.
Na linguagem desprovida de poesia as palavras são alinhadas considerando, uni-camente, as expressões DENOTATIVAS e as normas corretas da nossa gramática; já na linguagem poética, o foco fica com as expressões CONOTATIVAS, em que ocorre um encantamento oriundo da combinação de palavras, suscitando outros vieses e imagens, em nossa leitura. A carga lírica assume a liderança do discurso.
Muitas vezes, uma simples inversão, uma pausa, uma mudança de ritmo, uma oportuna repetição enfática é suficiente para remeter o leitor a um novo panorama semântico. Eis o importante papel das figuras de linguagens: promover novas associa-ções e pontes alusivas, evocar visões, sensações e mudanças sonoras relevantes e significativas.
As figuras de linguagem estão distribuídas em três grandes grupos, em que temos: as relacionadas ao som (MELOPEIA); as que se referem às questões estruturais e visuais (FANOPEIA); e as que trazem implicações quanto à semântica textual (LOGOPEIA). (Cf. TAVARES, 1978: 323). Tais ramificações apresentam desdobra-mentos que particularizam as diversas situações em que foram utilizadas.
Importante salientar que essa classificação é apenas um esboço do panorama geral das figuras de linguagem. Muito frequentemente, tais figuras dialogam em suas funções e interagem de tal forma que se tocam, se entrelaçam e se complementam em seus objetivos. Não raramente, uma figura relacionada ao som (também chamada de “Figura de harmonia”) é, ao mesmo tempo, uma figura de repetição, denominada por alguns teóricos de “Figuras de construção” — é o caso das “Assonâncias” e “Alite-rações”, em que ocorre a repetição de determinados sons; em se tratando de vogais, caracteriza-se como “assonância”; em se tratando de consoantes, denominamos de “aliterações”.
2. O abraço entre os gêneros — popular e erudito.
O linguajar popular detém as sementes de onde brotam a linguagem rebuscada e erudita; em várias expressões do cotidiano percebemos figuras de linguagem, ditas com tamanha naturalidade, que é possível passarem desapercebidas, enquanto expressões poéticas, a exemplo de: “Fulana é uma flor” ou “Ele é um cordeiro” — exemplos claros de metáforas (preciosa ferramenta literária). Outra figura recorrente no linguajar coti-diano é a catacrese — transferência de um termo usado por analogia em circunstâncias de similaridade, tais como: “braço da cadeira”, “boca do fogão”, “embarcar no trem”…
No presente artigo, serão apresentadas algumas figuras de linguagem que transi-tam com especial naturalidade no repertório literário e musical, considerando tanto tex-tos poéticos fincados na cultura popular, quanto àqueles banhados de erudição. Tais figuras implicam resultado significativo, enfatizando aspectos primordiais na arquitetura literária e musical, em que são destacados, de modo particular, os ELEMENTOS DE REPETIÇÃO.
3. A anáfora no discurso literário e musical:
Denominamos de ANÁFORA a repetição recorrente de um termo ou expressão, no início de vários versos (ou frases, já que, também, é usada no gênero prosa).
De modo proposital, coletei várias situações de anáforas (considerando poemas e canções), em que o verbo ser, na terceira pessoa, é utilizado, como meio de conceituar ações e sentimentos. A recorrência inicial do “é…” deixa evidente a força da repetição, enquanto elemento poético que destaca o aspecto semântico. Vejamos:
a) A ANÁFORA no soneto “O amor é fogo”, de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor.
“O amor é…” caracteriza-se como anáfora que define o amor para o poeta — eis que nos apresenta um belo repertório de conceituações, tais como: “o amor é fogo / o amor é ferida / o amor é dor…”
A anáfora, em Camões, vem acompanhada de outra figura de linguagem, com o intuito de destacar a aproximação de ideias opostas: a ANTÍTESE. A combinação entre a anáfora e a antítese é perfeita, porque, sendo o amor um sentimento complexo, é opor-tuno e coerente à presença de tais elementos díspares.
Outro aspecto a ser, aqui, considerado é que as afirmações estão baseadas em um raciocínio lógico que se conclui, em seguida. A essas argumentações que resultam em uma conclusão lógica denominamos de SILOGISMO.
No poema em questão, as afirmações que conceituam o amor ocorrem nos dois quartetos e no primeiro terceto, ficando o último terceto destinado à conclusão do silogismo: “Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor”.
b) A ANÁFORA na canção “Águas de março”, de Tom Jobim (Música Popular Brasileira):
“É o pau, é a pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho / É um caco de vidro, é a vida, é o sol / É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol / É peroba no campo, é o nó da madeira…”
“Águas de Março” trata-se de uma metáfora que destaca a vida cotidiana, exal-tando o moto-perpétuo (elaborado com base no intervalo musical de terça) como a ima-gem de ações repetitivas, ao longo da vida. O termo “águas de março” simboliza o final do verão e o início de um novo ciclo, apontando a “água” como esperança de vida, sím-bolo de renovação.
Vê-se, na referida canção, a clara influência de duas fontes: o poema “O caçador de esmeraldas”, do poeta parnasiano Olavo Bilac: “Foi em março, ao findar da chuva, quase à entrada / do outono, quando a terra em sede requeimada / bebera longamente as águas da estação (…)”; e um conhecido ponto de macumba: “É pau, é pedra, é seixo miúdo, roda a baiana por cima de tudo”, gravado por J.B de Carvalho, com relativo sucesso.
O texto verbal da canção é, também, elaborado com base no mesmo verbo ser, na terceira pessoa do singular, passando a terceira pessoa do plural, por ocasião do refrão: “São as águas de março fechando o verão, e a promessa de vida…”
Ocorre, na referida canção, a presença de outras figuras de linguagem, a exemplo de: ANTÍTESE: “vida / morte; sol / noite”; PLEONASMO: “vento ventando”; PARONOMÁSIA: “ponta, ponto / conta, conto”.
A letra da música em questão adota um visível caráter imagético, abrindo mão do fluxo narrativo (mais usual nas canções populares). Aqui, transcorre uma espécie de fluxo do inconsciente — são mencionados, no texto, inúmeros elementos da natureza, jogados como imagens da memória do autor, que expõe o cotidiano rumo à inevitável morte (como as chuvas de fim de março que assinalam o verão).
Sutilezas na orquestração da melodia são dignas de notas, tais como alguns “crescendos e decrescendos” que pontuam e aludem ao movimento das águas…
PS. (Convém ouvir a gravação em que Tom Jobim divide o palco com Elis Regina — um show de talento e criatividade).
c) A ANÁFORA no “Poema da necessidade”, de Drummond:
1ª Estrofe:
“É preciso casar João, / é preciso suportar, Antônio, / é preciso odiar Melquíades / é preciso substituir nós todos. / É preciso salvar o país, / é preciso crer em Deus, / é preciso pagar as dívidas, / é preciso comprar um rádio, / é preciso esquecer fulana. / É preciso estudar volapuque, / é preciso estar sempre bêbado, / é preciso ler Baudelaire, / é preciso colher as flores / de que rezam velhos autores.
2ª Estrofe:
É preciso viver com os homens / é preciso não assassiná-los, / é preciso ter mãos pálidas / e anunciar O FIM DO MUNDO.”
O título, “Poema da Necessidade”, é plenamente justificado, à medida que vem sendo elencado um vasto repertório de providências necessárias, antes de ser anunciado “o fim do mundo”.
O “eu lírico”, de modo especial, nesse poema de Drummond, deixa clara a insatisfação com os ditames da vida; quem sabe, com o anúncio do fim do mundo, a vida toma outro rumo, com novas e animadoras perspectivas…
A terceira pessoa do singular do verbo ser, nesse caso, não tem como objetivo conceituar nenhum sentimento ou fato, mas, desta feita, listar necessidades, tomando como anáfora a expressão: “É preciso…”. Somente no verso final das duas últimas estrofes, a anáfora cede espaço à uma ideia que complementa o verso anterior (em ambas as estrofes mencionadas).
Mais uma vez, a anáfora com base na terceira pessoa do verbo ser, exerce um poder enfático no poema; a repetição cumpre um efeito quase encantatório, reiterando a ideia central do poema, de importância extrema para o aspecto semântico.
4. A epífora ou epístrofe no discurso literário e musical:
A EPÍFORA ou EPÍSTROFE consiste na repetição de uma palavra ou expressão no final de frases ou de versos (estando seguidos ou próximos).
Essa é mais uma figura de repetição que se faz presente com o intuito de destacar intenções, sobretudo, no ponto de vista semântico.
a) A EPÍFORA / EPÍSTROFE, no poema “José”, de Drummond:
1ª Estrofe:
E agora, José?/ A festa acabou / A luz apagou / O povo sumiu / A noite esfriou /
E agora, José? / E agora, você? / Você que é sem nome / Que zomba dos outros
Você que faz versos / Que ama, protesta? / E agora, José?
2ª Estrofe:
Está sem mulher / Está sem discurso / Está sem carinho / Já não pode beber / Já não pode fumar / Cuspir já não pode / A noite esfriou / O dia não veio / O bonde não veio / O riso não veio / Não veio a utopia / E tudo acabou / E tudo fugiu / E tudo mofou / E agora, José?
3ª Estrofe:
E agora, José? / Sua doce palavra / Seu instante de febre / Sua gula e jejum / Sua biblioteca / Sua lavra de ouro / Seu terno de vidro / Sua incoerência / Seu ódio, e agora? Com a chave na mão / Quer abrir a porta / Não existe porta / Quer morrer no mar / Mas o mar secou / Quer ir para Minas / Minas não há mais / José, e agora?
4ª Estrofe:
Se você gritasse / Se você gemesse / Se você tocasse / A valsa vienense / Se você dormisse / Se você cansasse / Se você morresse / Mas você não morre / Você é duro, José!
5ª Estrofe:
Sozinho no escuro / Qual bicho-do-mato / Sem teogonia / Sem parede nua / Para se encostar / Sem cavalo preto / Que fuja a galope / Você marcha, José! / José, para onde?
A EPÍFORA — figura aqui destacada — apresenta-se logo na segunda estrofe: “O dia não veio / O bonde não veio / O riso não veio”. No entanto, no famoso poema “José”, de Drummond, temos a presença enfática de vários elementos de repetição responsáveis pela costura de todo o texto.
Drummond estabelece, no poema em questão, um jogo em que a repetição ocorre em forma de refrão: “E agora, José?”; em situação de anáfora — recorrente, diversas vezes, em todo o corpo do poema, a exemplo de: “Está sem mulher / Está sem discurso / Está sem carinho…”, ou, ainda: “Se você gritasse / Se você gemesse / Se você tocasse”; em situação de epífora, tal como vimos em: “O dia não veio / O bonde não veio / O riso não veio”; e, ainda, em situação de polisssíndeto, como é visto em: “E tudo acabou / E tudo Fugiu / E tudo mofou…
O refrão “E agora José?” faz uso de um nome bastante usual, na língua portuguesa, que pode ser entendido como uma espécie de “sujeito coletivo”, provocando uma identificação imediata com o leitor. A recorrência da expressão “E agora, José?” é o motivo gerador de todo o poema — um mote — que ressalta a busca de um sentido para a vida e a necessidade de reagir frente às adversidades.
A ideia de vazio e solidão é exposta através da anáfora: “Está sem mulher / Está sem discurso / Está sem carinho”… A ausência de prazer e de mecanismos para amenizar a dor é reforçada com outra anáfora: “Já não pode beber / Já não pode fumar / cuspir, já não pode”… (nesse último termo, ocorreu a inversão da anáfora).
O descontentamento prossegue com a epífora já citada anteriormente: “O dia não veio / O bonde não veio / O riso não veio”; em seguida, temos a presença enfática do polissíndeto (figura de sintaxe que exalta o uso do conectivo): “E tudo acabou / E tudo fugiu / E tudo mofou”…
O verbo no tempo pretérito imperfeito do subjuntivo vincula-se à anáfora que exalta uma condição, destacando a desventura: Se você gritasse / Se você gemesse / Se você tocasse (…) Se você dormisse / Se você cansasse / Se você morresse”…
O poema é concluído com a retomada de elementos do refrão, que se apresenta modificado com o claro intuito de instigar o leitor, finalizando com sábia e oportuna indagação: “(Sem cavalo preto / Que fuja a galope) / Você marcha, José! / José, para onde?”.
Fica evidente, portanto, que o poema em questão exemplifica, com excepcional engenhosidade, a importância dos elementos de repetição, dentro do texto. O poema “José” condensa e sintetiza, com exímia naturalidade, as figuras anáfora, epífora, polis-síndeto, além, claro, do retorno significativo ao refrão.
b) A EPÍFORA / EPÍSTROFE, na canção “É doce morrer no mar”, de Dorival Caymmi.
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar.
(Refrão)
A letra da canção “É doce morrer no mar” foi composta com base no Romance “Mar Morto”, de Jorge Amado (grande amigo de Caymmi).
“Mar Morto”, escrito em 1936, tem como foco principal a vida de canoeiros, pescadores e “homens do mar” da região baiana. A melodia de Caymmi foi composta em 1941, apresentando, inicialmente, o refrão que aparece alternado por três estrofes.
É o refrão que, de modo especial, nos interessa, por fazer uso da figura de línguagem epífora, destacando a palavra “mar”, no final de cada verso.
A palavra “mar”, não somente evidencia o final dos versos (a epífora ou epístro-fe) como, também, é significativa por delinear um contorno melódico, em que a melodia esboça o desenho das ondas do mar — as notas são dispostas formando verdadeiras ondulações sonoras. (vale conferir, na partitura).
c) A EPÍFORA / EPÍSTROFE, na cantiga de roda “Dominé”.
A canção “Dominé” exemplifica, com clareza, a presença de elementos repeti-tivos que dialogam com elementos variáveis opositores, dinamizando e proporcionando equilíbrio à peça. Os elementos de repetição, uma vez dispostos no final de cada verso, caracterizam-se como exemplo genuíno de epífora.
A cantiga de roda em questão destaca, logo no título (Dominé), o motivo que permeia toda a canção e que ganha destaque através da figura rítmica pontuada — responsável por ressaltar a epífora que costura o texto inteiro.
A comunhão entre texto verbal (letra da canção) e texto melodico (a melodia) é absoluta-mente harmoniosa e apresenta uma excepcional simetria, ao evidenciar o motivo rítmico (Dominé), que pontua o final dos versos e corresponde ao término de cada semifrase musical, em diálo-go com o caráter linear que caracteriza o início de todos os versos. O motivo, destacado através da força rítmica da figura pontuada, contrasta com a linearidade utilizada para o primeiro segmento de todas as semifrases musicais.
Outro aspecto expressivo é que o vocábulo “Dominé” traz implícito um voca-tivo, alusivo ao papel da interjeição. Na poesia primitiva, era comum o uso de refrões interjecionais, por vezes, ininteligíveis, de caráter puramente mágico e ritualístico. Tal herança sobrevive, sobretudo, no cancioneiro tradicional e continua a ter um forte apelo emocional.
5. A epizeuxe no discurso literário e musical:
A figura de linguagem epizeuxe caracteriza-se pela repetição de um mesmo vo-cábulo, sem que haja outro de permeio, dentro da oração. É usada para enfatizar deter-minada ideia ou ressaltar palavras-chaves, dentro do verso. Seu valor semântico é notó-rio.
a) O uso de EPIZEUXE, em “Poema de sete faces”, de Drummond.
O “Poema de Sete Faces” é dos mais populares poemas de Carlos Drummond de Andrade. Está incluso na obra “Alguma Poesia”, de 1930, e versa sobre os sentimentos de solidão aliada à inadequação dos ditames mundanos. O tom intimista e o olhar sensível do poeta geram uma identificação imediata com o leitor, porque o eu-lírico trata de sutilezas do espírito que todos nós, de algum modo, já experimentamos.
Mundo, mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.
O poema é escrito em sete estrofes (alusão às sete faces?), trazendo, de início, um número místico, cabalístico e citado na Bíblia 323 vezes (lembrando que o “Pai Nosso” — oração que Cristo nos ensinou — é constituído de sete petições).
As estrofes explanam as facetas do sentimento de inadequação à sociedade, que permeia todo o poema. Ao nosso brevíssimo estudo, interessa, sobretudo, a sexta estrofe (penúltima do poema), uma vez que contamos com a presença da figura EPIZEUXE, seguida de outra figura de repetição: a DIÁCOPE.
O primeiro verso da sexta estrofe tem início com a figura epizeuxe, ao mencio-nar “Mundo, mundo”, ou seja, ocorrendo a repetição consecutiva do mesmo vocábulo; em seguida, temos o adjetivo “vasto” intercalando o mesmo substantivo “mundo”, o que caracteriza a figura de repetição denominada de diácope (quando ocorre uma palavra intercalando a repetição): “… mundo vasto mundo”.
Convém ressaltar a relevância dessa figura, no contexto do poema. A escolha da palavra “mundo” (que caracteriza ambas as figuras: epizeuxe e diácope) encerra a noção de grandeza, amplitude e, consequentemente, a insignificância do sujeito frente à imensidão do mundo. Ao intercalar o vocábulo “vasto”, posicionado entre mais uma repetição de “mundo” (e que configura a diácope), a ideia de grandeza é reforçada e, naturalmente, o contraste entre pequenez humana e magnitude do mundo.
b) O uso de EPIZEUXE, na canção “Pegando fogo”, de José Maria de Abreu e Francisco Mattoso.
Meu coração amanheceu
pegando fogo, fogo, fogo…
Foi uma morena que passou
perto de mim
e que me deixou assim.
Essa alegre marchinha carnavalesca traz uma peculiaridade, em seu engenhoso refrão: explora, de maneira oportuna e significativa, a figura de linguagem epizeuxe em perfeita sincronia com a construção da respectiva linha melódica. É notória a elaboração meticulosa com o intuito de destacar o texto verbal na condução da melodia.
Conforme o gráfico, disponibilizado acima, podemos constatar que a melodia segue uma linha ascendente, em sua construção, ou seja, tem início em um plano mais grave crescendo em direção ao agudo e deixando clara a culminância da frase musical, por ocasião da última repetição da palavra “fogo”, que caracteriza, aqui, a figura epizeuxe.
A repetição da palavra “fogo” tem ênfase, não somente no ponto de vista vocabular, mas constitui o apogeu da frase musical, evidenciando a força que consiste o fogo do amor… (conferir partitura do trecho em questão).
c) O uso de EPIZEUXE, na cantiga de roda “A linda rosa juvenil”.
Considerando o repertório de cantigas de roda, a epizeuxe raramente aparece em um único verso; costuma ser recorrente, pontuando vários versos ou assinalando sime-tricamente cada estrofe, como meio de proporcionar equilíbrio e unidade à estrutura do texto verbal, tendo o brilho reforçado pelo acréscimo da melodia.
A epizeuxe — usada para enfatizar determinada ideia ou ressaltar palavras-cha-ve, dentro do verso — nas canções recolhidas do cancioneiro folclórico, traz o destaque especial da arquitetura melódica. Ocorre um visível crescendo, dando ênfase ao vocá-bulo destacado, visto que, ao repetir a palavra, repete-se, comumente, o mesmo motivo musical, resultando numa sequência coesa e significativa.
A comunhão entre estrutura verbal e estrutura melódica traz um colorido espe-cial à epizeuxe — funciona como um reforço semântico, em que dizemos a mesma coi-sa através de duas linguagens: a musical e a literária.
A origem do próprio refrão — forma emblemática da repetição lítero-musical — parece ter suas raízes na figura da epizeuxe, em que determinados trechos da obra moti-vavam a plateia a reagir repetindo as palavras-chaves, conforme afirma Spina, em mais um trecho de sua magnífica obra “Na madrugada das formas poéticas” (Cf. SPINA, 1982:35).
A repetição da palavra de alto valor semântico parece aclarar a informação, bem como dinamizar a estrutura da obra — uma conduta que concede graça e beleza ao discurso, desde os primórdios. Um exemplo típico desse procedimento é a canção “A linda rosa Juvenil” — modelo perfeito dessa conjugação de linguagens, dando destaque à figura epizeuxe. Segue o registro da referida canção:
A linda rosa juvenil, juvenil, juvenil
A linda rosa juvenil, juvenil…
Vivia alegre a cantar, a cantar, a cantar,
Vivia alegre a cantar, a cantar.
P.S: todas as estrofes seguem a mesma estrutura,
quanto ao texto verbal e melódico.
Vale destacar que a canção “A linda rosa juvenil” consiste na versão cantada do conto “A bela adormecida” — uma pintura sonora dessa bela narrativa, que aponta o amor como a força capaz de vencer todas as barreiras e os mais sombrios obstáculos. É o amor que desperta… que faz acordar para a beleza de uma vida plena e harmoniosa.
6. Considerações finais
Fica patente que as figuras de linguagem, em especial aquelas que exploram a repetição, ocupam espaço relevante na produção literária e musical. As repetições sa-lientam aspectos semânticos prioritários em uma obra de arte, são faróis que iluminam trechos significativos.
Através de elementos repetitivos, as intenções do escritor são aclaradas. Além de valorizar a obra de arte no ponto de vista estético, as repetições norteiam o leitor / ouvinte, possibilitando o rastreio de sutilezas e nuances expressivas, em cada contexto. As repetições sinalizam, de modo espontâneo, os indícios necessários para a percepção do todo significativo.
Esta breve análise apresenta apenas uma parcela ínfima do que pode ser consta-tado e ampliado, abraçando um repertório volumoso em ambas as áreas — literária e musical.
7. Referência bibliográfica
1. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a Música Brasileira. São Paulo: Liv. Martins, 1962.
2. DRUMMOND, Elvira. Em alto e bom som — relações estruturais. Fortaleza: LMiranda editora, 2016.
3. SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ática, 1982.
4. TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978.
5. WORMS, Luciana Salles. Brasil Século XX — ao pé da letra da canção popular. Curitiba: Positivo, 2005.
Por ELVIRA DRUMMOND