Ontem ao final de uma tarde fria e chuvosa, passei por uma avenida movimentada da minha cidade. O caminhar frenético das pessoas, àquela hora, muitas das quais se dirigiam para seus lares, contrastava com o olhar perdido de um mendigo sentado ao relento. Os pingos d’água penetravam em seu cabelo grosso e sujo, escorriam pelas marcas do tempo talhadas no rosto, que em forma de cascatas, desciam pela sua barba, encharcavam seus sujos trajes, machucavam sua alma e ele parecia não se importar com o mundo à sua volta. Sua invisibilidade só era quebrada pelo seu forte odor impregnado no ar. O ranço da fuligem, do banco da praça, das frias calçadas, das noites vazias, misturava-se ao seu suor com tempos de desesperanças. Aquele olhar triste, a indiferença, a solidão me fizeram pensar se o verdadeiro mau cheiro não exalava dele, mas sim de mim, de nós…
Qual a história por trás daquele homem, sem teto, sem esperança, jogado no mundo como se fosse lixo, ou a de milhões de mendigos que vivem abaixo da linha de pobreza por esse mundo afora?
Talvez ele tivesse um emprego e havia sido despedido. Com isso, não conseguiu pagar mais o aluguel e hoje vive nas ruas. Quem sabe fosse um desses imigrantes que fugiu da miséria de seus país em busca de uma vida melhor e acabou jogado, sem perspectivas, nas calçadas de uma cidade. Poderia ser também, um homem que, em um momento frágil, entrou no mundo das drogas e não conseguiu largar mais. Às vezes, a falta de uma qualificação profissional impossibilita as pessoas de serem inseridas no mercado de trabalho.
O fato é que, toda vez que vejo pessoas nessa situação, meu coração sangra, minha consciência estremece. Cada olhar sem perspectivas de um horizonte à sua frente, cada grito sem eco, cada mendigo sentado na fria calçada, cada lágrima contida, tudo isso me faz crer que aquele ranço no ar não é mais fétido que a nossa indiferença, a nossa omissão.
Enquanto nossos passos andam rápidos, frenéticos e nos levam para algum destino, outros, simplesmente não saem do lugar, a vida segue outro compasso, quase parado. Afinal, pressa para quê? Quando se olha para frente, as portas estão fechadas, os caminhos levam a lugar nenhum, a fome bate o ponto, e o sono só é quebrado pelo tremer dos ossos na solidão das gélidas madrugadas.
É muito fácil andar a passos largos quando se tem uma família que te protege, te dá amor, respeito, dignidade. À oportunidade de estudar em uma escola de qualidade, a tendência é que as portas se abram para um belo futuro.
Como é bom chegar em casa e ter alimentos à mesa para saciar a fome. Ter o saudável acesso a consultórios médicos e hospitais quando for necessário. É confortante, ao final da tarde, depois de um dia intenso de trabalho, saber que temos um endereço fixo, um teto para morar. É necessário e justo ter uma cama aconchegante, um cobertor quente, uma casa que dê conforto e dignidade para todos, sem exceção.
Enquanto a realidade de um mundo humano não for inclusivo a todos nós, continuaremos a conviver com a nossa própria indiferença e com a omissão dessas fragilidades. Se de um lado estarão os afortunados, os agraciados pelos benefícios de uma vida confortável, do outro lado, terão que conviver com fétido odor dos mendigos, dos excluídos espalhados pelas frias calçadas ou em um canto qualquer.
Enquanto houver esse ranço insuportável no ar, ele sempre nos fará lembrar que o mau cheiro não vem de fora, mas, sim, de dentro de nós.
Por LUIZ NERI CAPPELLARI