SONETOS E SONATAS — DUAS VERTENTES DA MESMA ORIGEM…
- Considerações Iniciais
A proximidade sonora dos vocábulos (soneto / sonata) denuncia a fonte comum, entre as duas formas: soneto — estrutura do gênero literário; sonata — estrutura do gênero musical.
O que o ouvido acusa sinaliza a absoluta concordância com a origem dos termos, ambas as formas — soneto e sonata — provém da mesma raiz latina “sonare”, ou seja, aquilo que é composto com a função prioritária de soar (de preferência, claro, de maneira harmoniosa).
Temos, portanto, duas formas consagradas, de modo especial no período Clássico, cuja intenção primeira é agraciar nossos ouvidos com peças primorosas.
Muito embora o soneto, enquanto expressão poética, anteceda o período Clássico, o classicismo estampou a relevância dessa forma lírica, por excelência. Sua origem, geralmente atribuída ao italiano Francesco Petrarca, no século XIV (1304-1374), é contestável, pois temos notícia de idêntica estrutura poética usada um século antes por Giacomo de Lentini, inspirado na poesia popular da Sicília.
Ainda que William Shakespeare (1564-1616) tenha criado uma nova formatação para os quatorze versos, distribuídos entre três quartetos e um dístico (forma conhecida como soneto inglês), foi o formato italiano (dois quartetos e dois tercetos), consagrado por Petrarca, que ganhou a preferência e que permanece especialmente vivo por todos esses séculos…
Vejamos um exemplo do soneto inglês, de William Shakespeare:
SONETO VX
Quando penso que tudo o quanto cresce
Só prende a perfeição por um momento,
Que neste palco é sombra o que aparece
Velado pelo olhar do firmamento;
Que os homens, como as plantas que germinam,
Do céu têm o que os freie e o que os ajude;
Crescem pujantes e, depois, declinam,
Lembrando apenas sua plenitude.
Então a idéia dessa instável sina
Mais rica ainda te faz ao meu olhar;
Vendo o tempo, em debate com a ruína,
Teu jovem dia em noite transmutar.
Por teu amor com o tempo, então, guerreio,
E o que ele toma, a ti eu presenteio.
William Shakespeare.
A seguir, um exemplo do soneto italiano de Francesco Petrarca:
SONETO EM VIDA DE LAURA (dos Poemas de Amor)
Vós que escutais em rimas espalhado
Desde meu peito o suspirado ardor
E que o nutria ao juvenil error
Quando era mui diverso o meu estado;
O incerto estilo por que eu ei variado
Entre à vã esperança e o vão temor,
Se vós houverdes entendido amor
Terá vossa piedade despertado.
Vejo que a todos meu amor assim
Quase sempre foi fábula somente.
E agora eu de mim mesmo me envergonho.
De minha vida vã vergonha é o fim
E o arrepender-se e o ver mui claramente
Que quanto apraz ao mundo é breve sonho.
Francesco Petrarca
Constatamos que a diferente distribuição dos versos traz implicações, no ponto de vista semântico. No soneto inglês, muito claramente, o dístico é responsável pelo “fecho de ouro”, que, nesse caso é exposto nos dois últimos versos. Já no soneto italiano o fecho de ouro envolve toda a ideia do último terceto, explicitada, portanto, nos três últimos versos, muito embora o peso maior do fecho — a chave de ouro do soneto — está geralmente condensada no último verso.
É o formato italiano — dois quartetos e dois tercetos — que de modo particular nos interessa, pois irá contrapor à estrutura básica da sonata, exposta a seguir.
A sonata surgiu com o intuito de oportunizar ao artista uma exibição puramente instrumental, contrapondo-se à cantata que era escrita para ser cantada, ou seja, para exaltar a performance vocal. No campo da música há repertórios criteriosamente criados para favorecer ambos os gêneros: vocal e instrumental, havendo situações oportunas em que se fundem as expressões.
A forma sonata foi amplamente desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, passando por mudanças significativas, entre os referidos séculos. No período Barroco, é notável a contribuição do compositor italiano Domenico Scarlatti, que escreveu mais de 500 sonatas para cravo (o instrumento precursor do piano).
As sonatas de Scarlatti, em sua maioria, possui apenas um movimento, mas já traz, em sua essência, o antagonismo de dois temas contrastantes — uma característica significativa para o artigo em questão.
No entanto, foi com Carl Philipp Emanuel Bach (o segundo filho de Johan Sebastian Bach) que a forma sonata foi levada ao apogeu e reconhecida como a forma por excelência do período clássico. É ela que nos interessa, de modo especial, para o presente estudo.
- O Princípio Binário nas Formas Soneto e Sonata
O movimento binário rege a dinâmica da vida, pode-se dizer que a vida pulsa em binário: o movimento respiratório (inspirar e expirar), o fluxo sanguíneo (pulso cardíaco), o caminhar (que implica movimentos alternados dos pés)… nosso metabolismo funciona no padrão binário, o que justifica a tendência natural para ações de natureza binária ou pendular no nosso cotidiano, bem como a ressonância desse padrão em diversas manifestações artísticas.
Trazendo a estrutura binária para a perspectiva do Soneto petrarquiano, é notória a construção do poema em dois largos movimentos: o primeiro vai do ponto inicial à culminância do soneto, correspondendo aos DOIS QUARTETOS; o segundo movimen-to vai da culminância ao desfecho do poema, equivalente aos DOIS TERCETOS.
O equilíbrio da forma (dois quartetos / dois tercetos) é uma das características básicas do soneto, e suas implicações semânticas são visíveis, uma vez que o poeta deve construir seu texto, mirando início, meio e fim, a considerar os dois quartetos como a primeira metade e os dois tercetos como a segunda metade.
Vale imaginar o desenho de uma montanha, em que temos uma subida — o aclive textual que vai do início ao meio do poema; e uma descida — o declive textual que vai da parte central do poema ao final dele. Para aclarar melhor a afirmação, segue como exemplo o conhecidíssimo poema de Camões: “Amor é fogo…”.
AMOR É FOGO…
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor
Luís Vaz de Camões (1524-1580) é um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Seu famoso poema “Amor é fogo…” foi publicado por ocasião da segunda edição da obra RIMAS — lançada no ano de 1598.
O soneto acima é construído com base na figura de linguagem denominada de “anáfora”. A anáfora faz parte do grupo de figuras de repetição e caracteriza-se por estabelecer a recorrência de um termo ou expressão, sempre na posição inicial de frases ou versos.
No exemplo citado, a anáfora consiste na expressão “O amor é…”, em que a palavra amor fica subentendida (a partir do segundo verso), cabendo a repetição ao vocábulo “é”, enumerando diversos conceitos sobre o amor: o amor “é fogo”, “é ferida”, “é dor”…
Ao iniciar o soneto, o primeiro verso (Amor é fogo que arde sem se ver) expõe a informação que será desdobrada durante o desenvolvimento do poema — uma espécie de mote que oferece infindáveis derivações.
O marco inicial do primeiro verso será enriquecido pelos vários conceitos do que o amor representa, delineando o ACLIVE TEXTUAL, que vai do primeiro ao segundo quarteto, estendendo-se, enquanto ponto central do poema, até o primeiro terceto, ocasião em que iniciamos o DECLIVE TEXTUAL que será concluído no segundo terceto, encerrando com significativo “fecho de ouro”.
Os dois amplos movimentos de “aclive” e “declive” do texto sugere uma concepção binária, na estrutura apresentada. O padrão binário é reforçado através da antítese que caracteriza o jogo de contraste, enriquecendo de modo especial o poema, a exemplo de (Amor) “é um contentamento descontente”, “é dor que desatina sem doer”, “é um não querer mais que bem querer”…
Esse jogo de opostos em que o poeta aproxima ideias contrárias (contentamento descontente etc) produz o efeito semântico de gangorra, ou seja, estamos lidando com extremos, em situação de constante alternância — o que, mais uma vez, reforça o padrão binário.
Quanto à forma da sonata clássica, ou seja, o modelo criado por Carl Philipp Emanuel Bach, temos uma concepção binária em várias estâncias. A primeira delas seria o que podemos chamar de macroforma, em que temos uma EXPOSIÇÃO, seguida de DESENVOLVIMENTO, com retorno à exposição, por isso mesmo denominada de REEXPOSIÇÃO. A rigor, a forma sonata é elaborada em duas partes (exposição e desenvolvimento), já que a reexposição não passa do retorno à primeira parte.
Se isolarmos a EXPOSIÇÃO, teremos, por sua vez, a recorrência de outro padrão binário, porque a exposição é constituída de dois temas contrastantes, denominados de TEMA A e TEMA B, ligados, quase sempre, por uma pequena ponte modulatória. Já o DESENVOLVIMENTO não passa de um desafio em que o compositor mostra sua capacidade inventiva, brincando com elementos dos temas A e B.
Para conferir essas informações, tomemos como exemplo a Sonata em DÓ maior, de Mozart (n°16, K. 545). Tal sonata consta no catálogo de Mozart como “sonatina”, ou seja, uma pequena sonata escrita para teclado, direcionada a alunos principiantes.
Mesmo sendo uma sonata de fácil execução, é uma obra de rara beleza que traz certa leveza etérea, traduzindo com maestria a alma infantil — a eterna alma de Mozart.
O excepcional pianista Arthur Schnabel dizia que “tocar Mozart é fácil para crianças e difícil para adultos”. A afirmação é pertinente, em se tratando do exemplo escolhido.
TEMA A:
O TEMA A, exposto acima, tem início com melodia simples, doce e envolvente, executada com a mão direita e elaborada com base no acorde de DÓ maior; tal melodia realiza um motivo em movimento ascendente, enquanto a mão esquerda acompanha a referida linha melódica primando pela leveza do acorde desmembrado, no estilo “baixo de Alberti”.
O tema caminha ao encontro de uma ponte modulatória que expõe uma alegre brincadeira com escalas, conduzindo a peça ao tema B, cuja tonalidade é SOL maior.
PONTE MODULATÓRIA:
A ponte é concluída com acordes vibrantes que reafirmam a nova tonalidade (SOL maior), dando início ao tema B.
TEMA B:
O TEMA B, em contraste com o TEMA A, é elaborado com base em um motivo descendente, que segue até a altura do DESENVOLVIMENTO — trecho mais extenso que brinca com elementos dos dois temas iniciais.
Pode-se dizer que é o contraste entre os temas A e B que motiva e concede brilho à peça. Desses dois temas depende a arquitetura do desenvolvimento.
INÍCIO DO DESENVOLVIMENTO:
- Exuberância no Arremate — fecho de ouro x coda
Tanto o soneto como a sonata primam quanto ao trecho conclusivo. No soneto esse trecho é chamado de “fecho de ouro” ou “chave de ouro” — um arremate com intenção impactante, cujo intuito é emocionar o leitor / ouvinte, porque o soneto, sendo expressão poética plena de lirismo, tem como meta emocionar, surpreender, relendo o mundo com a lupa própria dos poetas…
No soneto escolhido para exemplificar a estrutura binária “Amor é fogo…” temos um surpreendente arremate, uma vez que Camões usa de argumentos lógicos para expressar a grandeza do sentimento humano da mais infinita complexidade que é o amor. A costura textual que fornece inúmeras explanações lógicas, através de conceitos em busca de uma conclusão final, é denominada de silogismo.
O “fecho de ouro” do soneto em questão trata-se, portanto, de um surpreendente SILOGISMO que envolve todo o segundo terceto, ou seja, Camões expõe suas conclusões, com base no leque de argumentos lógicos apresentados, considerando, claro, o jogo de dualidades e ambiguidades próprios do sentimento humano:
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor.
Na sonata, o final costuma ser arrematado com uma coda.
O termo CODA é de origem italiana, significa “cauda”. Embora traga, em si, a ideia de apêndice, na forma sonata delineia mais que isso, é parte estrutural significativa, uma vez que o compositor traz para a coda elementos que recapitulam toda a obra — uma síntese engenhosa que dá brilho especial à peça. (C.f. ZAHAR; 1985: 82).
No exemplo tomado como referência (sonata em DÓ maior, de Mozart, n°16, K 545), por se tratar de uma sonatina (sonata pequena) temos, mais precisamente, uma “codeta”, ou seja, “pequena coda”. Mesmo considerando o espaço diminuto destinado à codeta (cinco compassos finais, incluindo um compasso de soldadura) é possível reconhecer a caráter de síntese, em que elementos do corpo da obra são lembrados.
CODA
(…)
- Considerações Finais
O entrelace de formas afins, embora abraçando linguagens distintas, tais como a música e a literatura, nos possibilita enxergar múltiplos aspectos de similaridades, deixando claro que as origens nos remete sempre aos mesmos atributos. As diferentes linguagens encarregam-se de escolher as vestes e adornos apropriados para exaltar as características que carecem ser destacadas.
O rigor estrutural do soneto e da sonata exige do artista indiscutível conhecimento técnico. Sem conhecer as regras do jogo não se inicia nenhuma brincadeira… é, portanto, condição sine qua non ter domínio do metiê característico para operar devidamente com ambas as formas: SONETO e SONATA.
Vale lembrar que a técnica é tão somente uma ferramenta, um meio para o artista expressar o que lhe visita a alma. A emoção sempre será o principal canal de comunicação entre quem produz e quem usufrui da obra de arte.
- Referência Bibliográfica
- BAS, Júlio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1947.
- BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1986.
- …………………… Forma e Estrutura na Música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
- …………………… Elementos Básicos da Música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990.
- BORBA, Tomás; GRAÇA, Fernando. Dicionário de Música. Lisboa: Cosmos, 1962.
- CAMPOS, Geir. Pequeno Dicionário de arte poética. São Paulo: Cultrix, 1978.
- GROVE, Dicionário de Música. (Ed. Concisa). Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
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- …………………………. A Criação Literária — Poesia e Prosa. São Paulo: Cultrix, 2012.
- MOZART, Amadeus. Sonata em DÓ maior; K 545. Londres: G. Schirmer, 2008.
- SENA, Jorge de. Estudos de Literatura Portuguesa – II. Lisboa-PT: Edições 70, 1988.
- ………………………. Dialéticas Aplicadas da Literatura. Lisboa-PT: Edições 70, 1978.
- TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978.
- WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Biblioteca Universitária. Portugal: Publicações Europa-América, (N/C).
- ZAHAR, Editores (edição autorizada no Brasil). Dicionário de Música. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Por ELVIRA DRUMMOND