A ciência do povo mantém o imaginário da cultura
O folclore brasileiro, para Câmara Cascudo (1898-1986), é a manifestação de mais valor, e viva, do universo das culturas que formam o país. O folclorista potiguar, que também era sociólogo, antropólogo, etnógrafo, poeta, cronista, historiador, musicólogo, professor, advogado e jornalista, costumava dizer que o folclore é uma expressão do mundo. O que chamamos de lobisomem no Brasil tem um similar que o imaginário de outro país construiu, como se a própria realidade estimulasse essas construções.
Cascudo pensava o folclore como uma ciência do povo, que dava as bases para que cada país expressasse o que o diferenciava de outro. O folclore é produto de várias fontes que, ao longo do tempo, se adapta ao meio em que foi criado. No Brasil, nesse conjunto de realizações que fazem parte da cultura popular brasileira, temos uma extensa variedade, a exemplo de festas populares, lendas, literatura, contos, jargões, músicas, ritmos e muito mais.
Compreender os componentes do nosso folclore passa, necessariamente, pela leitura do Dicionário do Folclore Brasileiro, que está entre as 200 publicações e cerca de 8 mil páginas redigidas por Câmara Cascudo. Os seus verbetes saciam a fome de conhecimento sobre animais mitológicos, crenças, objetos, religião e outros.
Importante destacar que no país se comemora em 22 de agosto o Dia do Folclore Brasileiro. Nesta mesma data, em 1946, o escritor inglês William John Thoms escreveu artigo registrando a palavra “Folklore”, como representando o “saber tradicional de um povo”. “Folk” significando povo e “Lore”, conhecimento.
De uma riqueza reconhecida mundialmente, o folclore brasileiro recebeu influência de outras culturas, como a indígena, africana e europeia, resultado da colonização que houve no país. Os estudos sobre como se deu a composição desta ciência do povo no Brasil começaram, ainda que de forma incipiente, no século XIX, por influência do Romantismo, e se aceleraram no início do século passado, quando o Modernismo, por meio de Mário de Andrade, promoveu o diálogo do estudo do folclore com as ciências sociais e humanas.
A recomendação da Unesco (vinculada à ONU), na década de 40, de que o folclore nacional fosse objeto de estudo e preservação acabou incidindo na instalação da Comissão Nacional de Folclore. Na década seguinte, foi a vez do I Congresso Brasileiro de Folclore (Rio de Janeiro-RJ, em 1951), que emitiu a Carta do Folclore Brasileiro, definindo folclore como “as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular”. Os avanços seguintes, no governo Juscelino Kubitschek, foram cerceados durante o golpe militar de 1964. Somente em 1976 os estudos puderam evoluir.
A definição de folclore, feita no I Congresso, foi adaptada tempos depois, no III Congresso Brasileiro de Folclore (Salvador-BA, em 1995): “folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social”. Foi a preservação dessa história que nos permite, hoje, conhecer as ricas manifestações do folclore brasileiro. Elas são variadas e se torna impossível descrever todas, mas vamos delinear as mais conhecidas.
As lendas, por exemplo, representam um tipo de folclore em que se percebe fortemente a influência das culturas indígena, africana e europeia na composição da cultura brasileira. Por meio delas é que personagens se tornaram conhecidos e atravessaram gerações. Entre eles, temos:
Saci-Pererê – Alguns estudos apontam que a origem está nas histórias indígenas da Região das Missões, no sul do Brasil. O Saci é um menino negro, de uma perna só, que usa gorro vermelho, cachimbo, e fica pulando agitado, Sempre aparece com um redemoinho e se diverte fazendo travessuras e escondendo objetos que quase nunca reaparecem.
Curupira – Uma pequena entidade da floresta, de cabelos vermelhos e pés virados para trás, que protege as matas brasileiras, onde vive. O nome vem do tupi-guarani. Para amedrontar e afastar os que ameaçam as florestas, produz assobios e sons.
Mula sem Cabeça – No local onde deveria estar a cabeça, fica saindo fogo. Segundo a lenda, esta foi uma maldição para as mulheres que namoram um padre. Essas mulheres se transformariam toda quinta à noite e sairiam assombrando.
Boitatá – Dependendo da região do país, o boitatá é descrito de um jeito. Uma cobra ardendo em fogo é a representação mais citada. A lenda conta que ela escapou de um dilúvio, comeu olhos dos animais mortos e passou a iluminar a noite com o brilho dos olhos deles.
Boto cor-de-rosa – A lenda amazônica diz que o boto sai do rio, fica em forma humana, atrai mulheres solteiras e as engravida no fundo do rio. Esta sedução aconteceria nas noites de festa junina.
Iara – Também conhecida por Mãe d´água, tem a aparência de uma sereia: a cintura a divide entre mulher e peixe. A sua voz e a beleza, com seus cabelos longos, atraem os homens para os rios, com o objetivo de afogá-los.
Lobisomem – Esta lenda, que mescla homem e lobo, é originária da Europa. Narra que se uma mulher tiver um oitavo filho e este for do sexo masculino, na verdade será homem de dia e lobisomem nas noites de lua cheia. Sua alimentação é o sangue.
O lobisomem é um dos personagens que mais mexem com o imaginário popular.
Além dos personagens e suas lendas fantásticas, o folclore brasileiro é constituído também da riqueza das festas populares e das tradicionais brincadeiras, que precisam ser passadas de geração a geração para que mantenham suas raízes. A maioria dessas festas já entrou para a agenda de eventos do país.
Festa junina – Acontece no mês de junho em todas as regiões, sendo mais forte no Nordeste. Foi trazida no século XVI pelos portugueses e, à época, tinha caráter religioso, reverenciando São João e Santo Antônio, entre outros. Na sua origem, segundo historiadores, eram festividades pagãs que aconteciam na Europa durante a colheita, para evitar pragas e maus espíritos. No Brasil, a festa foi se ampliando e sendo associada a hábitos da zona rural, tanto na alimentação, à base de milho, como nas roupas, caricaturando o caipira. A dança típica é a quadrilha, mas as festas juninas atualmente estão mais associadas ao forró. A maior festa junina do país é em Campina Grande, na Paraíba.
As festas juninas movimentam todo o Brasil, principalmente o Nordeste do país.
Carnaval – Os portugueses trouxeram o carnaval para o Brasil, entre os séculos XVI e XVII e uma de suas primeiras manifestações foi uma brincadeira popular conhecida como entrudo. No país, de maioria católica, é conhecida por se realizar 40 dias antes do Domingo de Ramos, na Páscoa. As danças e ritmos africanos, a partir dos escravos, foram influenciando o carnaval, sendo considerada a maior comemoração popular do país. Enquanto no Sudeste o carnaval se tornou conhecido pelas escolas de samba e blocos de rua, no Nordeste, tem caráter popular, nas ruas de Recife e Olinda, inclusive com Maracatu; e Salvador, com blocos e trios elétricos.
Folia de Reis – Desde a colonização portuguesa, a celebração do Dia de Reis faz parte da cultura brasileira. A data, inscrita no calendário da Igreja Católica, é celebrada dia 6 de janeiro, sendo mais frequente em estados como Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. A festa é composta de cortejos nas ruas, com instrumentos musicais. Os participantes usam roupas coloridas e dançam, parando em casas de pessoas da comunidade, simbolizando a visita dos reis magos ao menino Jesus. O Dia de Reis é comemorado 12 dias após o nascimento de Jesus Cristo, que acontece no Natal.
Bumba meu boi – A celebração acontece nos meses de junho e julho e, desde o século XVIII é uma das mais importantes do Maranhão. Tem um dia nacional, em 30 de junho, e é fundamentada em um conto popular de uma escrava grávida que desejava comer a língua do boi mais bonito. Para atender à vontade dela, o marido mata o animal. O proprietário quer se vingar do casal, mas eles ressuscitam o animal. Este é o mote da festa. Um conto parecido inspira a festa do Boi-bumbá, em Parintins, no Amazonas, onde os bois Caprichoso e Garantido disputam a melhor apresentação, todos os anos.
Tradicional festa do boi bumba e seus ritmos, imagem de Yuri Graneiro.
Entre os ritmos e danças que fazem parte do folclore brasileiro, e que representam a cultura de cada região do Brasil, com trajes e ambientações, se destacam, o Carimbó, na região amazônica, composto por influência dos africanos, indígenas e portugueses. Os dançarinos usam estampas florais e simbolizam um cortejo. Já o Frevo é um ritmo do carnaval pernambucano, de coreografia composta de movimentos rápidos, uso de sobrinha e roupas coloridas.
O país tem ainda o Samba de roda, que usa o cavaquinho, pandeiro, chocalho e cuíca entre os instrumentos de percussão. É herança do período da escravidão, que começou na Bahia e se popularizou no Rio de Janeiro. Outro destaque é a Ciranda, de Pernambuco. Teve início com as mulheres de pescadores, que dançavam à espera dos maridos retornarem do trabalho. Na ciranda, os participantes fazem uma roda ampla e dançam devagar, pisando o chão fortemente.
Outra festa marcante é a do Maracatu, resultado da influência africana, com destaque para o estado de Pernambuco. É conhecido por ser, ao mesmo tempo, dança, ritual e ritmo. No Ceará, o Maracatu também é destaque na cultura popular. Entre os ritmos musicais, o baião é bastante popular no Nordeste e Norte do país, tendo ficado conhecido a partir de 1940, com os músicos Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Entre os instrumentos que utiliza estão sanfona, triângulo e acordeom. As letras das músicas tratam do cotidiano do Nordeste.
Encontro de maracatus de baque solto, em Pernambuco.
Impossível falar de manifestações da cultura popular sem citar a literatura de cordel, que são poemas criados com linguagem usada pelo povo, com rimas e métricas para contar histórias em seus versos, apresentados como folhetos, com capas em xilogravura. É preponderante no Nordeste, sendo inicialmente vendidos pendurados como roupa em varal, nas feiras. Escritores como Ariano Suassuna, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto foram influenciados pelo cordel, que está no país desde o século XVIII, trazido pelos portugueses.
As brincadeiras populares estão também entre as principais manifestações do folclore. Entre elas podemos citar o pião, pular corda, jogar com bolas de gude, cantar cantigas de roda, passar anel, amarelinha, rolar pneu de bicicleta com um pedaço de madeira, soltar pipa (também conhecido como papagaio e arraia), queimada, pega-pega.
Em um país de dimensões continentais e com tantas influências na sua formação cultural, o Brasil tem, na sua cultura popular, as raízes e a essência de multiplicidades na ciência que o povo criou e mantém.
Por ANA MÁRCIA DIÓGENES