Sou filha de pescadores, cresci às margens do rio Tietê pescando e nadando. Já adulta, afastei-me do rio, mas voltei a pescar motivada pelo meu marido que mesmo não gostando da atividade me incentivou a fazê-lo, pois percebia o quanto isso me fazia falta.
Era sábado e descíamos o rio em um barco, as águas estavam calmas então encontramos facilmente um bom lugar para aportar: embaixo de uma figueira tombada, onde meu pai e eu pescávamos quando eu era pequena. Os galhos beijando o rio remetiam-me a uma infância feliz.
A luz da lua cheia banhava o rio e as estrelas no céu evocavam memórias distantes em volta das fogueiras, onde meus tios contavam histórias de criaturas místicas…
Meu esposo e eu sentamos no galho da figueira. O silêncio da noite era quebrado pelo ruído das ondas batendo no casco do barco. Adentramos a noite e como esperado memórias com meu pai passaram por mim enquanto meu marido se atrapalhava com a linha de pesca: era cômico, por isso comecei a rir enquanto ele fingia indiferença… me percebi vivendo um momento especial, digno de ser lembrado.
Pouco a pouco a noite foi nos envolvendo, cansada permaneci sentada no galho balançando as pernas e agitando a água com os pés.
— Amor, amor! — Meu marido me chamou com um olhar aflito. Olhei sorrindo e perguntei:
— O que foi?
— Já é meia-noite?
— Por quê?
— Neste horário, dizem que não devemos mexer com a água do rio. – Ele me respondeu com timidez.
— Um médico que acredita em superstições! – Exclamei perplexa e soltei uma gargalhada que o deixou constrangido.
Buscava me recompor quando percebi que a atmosfera em torno de nós se tornava opressiva, instintivamente retirei meus pés da água e sugeri que saíssemos dali, mas já era tarde demais.
De repente, as águas se agitaram, como se um peixe grande nadasse próximo à figueira, com pressa me levantei, mas meu marido permaneceu onde estava, parecia petrificado encarando o rio! Desesperadamente comecei a chamá-lo, mas ele me ignorou, estendendo a mão direita para frente em direção ao vazio. A luz da lua brilhava imponente no céu enquanto eu observava assustada a superfície do rio e foi então que testemunhei algo surreal: uma mulher com cauda de peixe emergiu da água, agarrando a mão do meu esposo e puxando-o para baixo.
Fiquei paralisada por um instante, mas os meus instintos me impulsionaram a mergulhar atrás deles. Como boa nadadora que sou consegui alcança-lo e tocar seu calcanhar, o que fez ele se virar apavorado, como se tivesse saído de um transe e me seguir. Nadamos de volta até a figueira e subimos rapidamente para nos afastar do rio. Ofegante perguntei:
— O que aconteceu?
Ele apenas gesticulou indicando que devíamos subir mais alto, e eu em contra partida fez sinal chamando-o a sair do rio.
— Ela está ali, nas raízes da figueira! – Disse ele aflito.
— Ela quem, meu amor?
— A Iara! – Ele retrucou.
— Iara?! O que ela quer? – Questionei sem acreditar no que ouvia e ele então apontou o dedo para si próprio.
— Pois ou leva nós dois, ou não leva ninguém! – Falei furiosa e sem entender a situação totalmente.
— Ela não leva mulheres meu bem… – E com o mesmo tom gentil e doce que me conquistou ele explicou o que havia acontecido:
— Ela é um peixe da cintura para baixo e uma mulher sedutora dali pra cima. De cabelos negros como jabuticabas tão longos que lhe cobrem os seios, pele morena e olhos verdes. Um rosto lindo de uma jovem mulher cujos olhos transmitem dor e solidão. Ela canta como um anjo e brilha como uma estrela! Eu estava tão fascinado que quando ela me tomou pela mão tudo que desejei foi ir embora com ela…desculpa meu amor, mas acho que é um tipo de feitiço, exatamente como os pescadores dizem! Eu estava totalmente hipnotizado, mas quando você tocou meus pés o encanto se quebrou, então, ela desapareceu, e eu te vi.
Raiva e apreensão tomaram conta de mim. Seria possível uma criatura mística no rio? E o que dizer do meu pai e dos outros pescadores desaparecidos ali mesmo? Será que foram vítimas dessa entidade? Questionei-me silenciosamente, então agarrei a mão do meu esposo e subimos até a copa da figueira, o mais longe possível da superfície, foi então que as águas se agitaram novamente e num piscar de olhos, uma correnteza forte se formou embaixo de nós.
O rio rugia e as ondas batiam violentamente contra os galhos, fazendo a árvore chacoalhar, não tive força para me segurar, acabei escorregando e caí. Senti uma dor dilacerante nas costas e nem tive tempo de me recuperar pois uma onda enorme cobriu a figueira, arrastando tudo para dentro do rio inclusive nós dois.
Minha larga experiência diante d’água não foi suficiente! Minhas roupas se enroscaram nos galhos, e fui tragada pelo rio, não via nada! Pensei que meu fim havia chegado, no entanto o improvável aconteceu, duas mãos firmes me puxaram para a superfície.
“Será que meu marido conseguiu escapar?” Pensei enquanto segurava minha respiração.
Fui levada até a margem e me segurando nas raízes remanescentes da figueira consegui me alçar e pôr em terra firme. Com muita dor me virei lentamente procurando por meu marido nas águas escuras do rio e gritando por ele insistentemente quando fui surpreendida pelo som de passos atrás de mim indo em direção ao rio…
Sob a luz da lua cheia as águas do Tietê iam se acalmando e uma mulher nua e esplendidamente bela se materializava na minha frente, não tive dúvidas era Iara. Sem me dizer nada, apenas me olhando, ela assoviou, e o rio respondeu com uma grande onda. Com medo de ser engolida pela água novamente tentei me afastar, mas a centímetros de tocar em mim a água parou, formando uma grande parede na minha frente. Ainda perplexa ouvi outro assovio, e as águas recuaram fazendo a superfície do rio se acalmar me mostrando Iara já transformada em sereia, com uma cauda brilhante no lugar das pernas.
Tudo aconteceu tão rápido, poucos minutos que reescreveram minha história. Num instante, tudo mudou e os sonhos e planos a dois foram destruídos.
Nada mais me resta. Todos os dias ouço os comentários velados das pessoas que dizem que estou usando um mito folclórico para romantizar a perda do meu marido no mesmo rio onde meu pai desapareceu há cinco anos.
Só quem fica sabe, só quem viu acredita! O mito está a uma tragédia de se tornar realidade.
Por PEDRO TRAJANO