CRÔNICAS – Alma de boteco por Roberto Minadeo

CRÔNICAS – Alma de boteco por Roberto Minadeo

Raimundo estava no seu bar de sempre. Bebia pouco e comemorava discretamente os resultados de seu time. As grandes alegrias eram reservadas aos jogos da Seleção Brasileira. Quando os jogos eram de outros times, reservava-se o direito da mais absoluta indiferença – mediante a aplicação de sua maior virtude: representar de maneira brilhante um jeito de bobo, o que o aproximava de todos.

Era o coração e a alma do boteco. Se é raro um dono de algum estabelecimento do ramo vir a se assentar em alguma mesa e socializar com algum cliente, isso apenas ocorria com o Raimundo – responsável individualmente pelo pagamento integral da cozinheira, apenas com o que gastava, dado que ia lá todo dia, sem exceção.

As pessoas que frequentavam o bar já estavam devidamente rastreadas por seu agudíssimo radar. Conhecia a todos, entendia as preferências etílicas e os pratos escolhidos. Com maior intimidade do que o Leão da Receita Federal, sabia dos ganhos de cada um, apenas ao acompanhar os padrões dos gastos, as roupas e o valor do carro estacionado do lado de fora. Acima de tudo, os times e jogadores de preferência de cada qual eram logo identificados.

Ao chegar algum novo cliente, era logo rotulado, de forma a saber quem o indicara, de quem era amigo, qual a faixa de renda aproximada e a frequência que viria ter no estabelecimento. Sempre acertava.

Quando um bebedor de longa marca de certa marca de cerveja ou uísque pedia refrigerante ou água, ele já sabia que iria viajar. Também conhecia o destino, o acompanhante e as finalidades do périplo.

Apreciava as longas conversas, amigos e amigas de longa data falando sobre todos os assuntos imagináveis, ansiosos por trocarem surpresas, contarem coisas, ao mesmo tempo que se interessavam em ouvir.

Era um diplomata, sabia quando iriam começar discussões leves ou ligeiramente mais sérias. Nas raras ocasiões nas quais as brigas chegaram às vias de fato, soube avisar de antemão os garçons para evitarem o pior. Em muitos anos de frequência no boteco, jamais se envolvera em qualquer conflito ou sequer tivera alguma ligeira alteração na voz.

Em certa ocasião, um novo frequentador e não muito gastador, veio a receber em menos de uma semana uma honraria jamais vista na vida desse bar: ganhou mesa reservada, dedicada, intocável pelos demais clientes.

Nosso Raimundo jamais vira algo semelhante e jamais sofrera tão grande afronta em toda a sua vida. Nem quando o Brasil perdera de sete a um da Alemanha. Nem quando fora reprovado na sexta série. Nem quando o chefe o preteriu injustamente de uma longamente aguardada promoção para escolher um recém-formado que não suportou a pressão. Nem quando fora abandonado pela primeira namorada – uma paixão séria para os seus padrões.

Fez um esforço para não gritar, para não fazer qualquer escândalo. Depois de refletir com calma, resolveu chamar discretamente a garçonete e relatar a injustiça que estava ocorrendo, a si mesmo e a todos os clientes mais antigos que jamais haviam recebido a glória incomensurável de contar com uma mesa reservada.

A pobre garçonete captou a agonia do pobre Raimundo, todavia nada soube responder. Um gesto do fiel cliente fez com que o gerente fosse chamado a se explicar. Nenhuma palavra convincente.

Raimundo solicitou a conta. Depois empreendeu algo inédito para um fiel frequentador de boteco: fez questão de pagar sem incluir os dez por cento da gorjeta. Dali em diante jamais foi visto naquele estabelecimento.

Por ROBERTO MINADEO

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