AUTOPOIESE E NARRATIVAS – O percurso do projeto africanidades

AUTOPOIESE E NARRATIVAS – O percurso do projeto africanidades

CAROS LEITORES,

 Sejam bem-vindos, aos nossos escritos na 26ª edição, da “Revista Internacional The Bard”. Pretendemos lhes oferecer narrativas que irão descrever a nossa oportunidade em ter tido o prazer de desenvolver um trabalho educativo, em Cabo Verde, envolvendo professores africanos no âmbito da Pedagogia Social (Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Porto Príncipe). Uma boa e autêntica satisfação em trocas humanas, marcadas por pontos emotivos e intelectuais, produzindo resultados fantásticos.  

Pretendemos deixar aqui, uma amostra do melhor e dos melhores momentos, de nossa memória afetiva, na vivência africana. Desta maneira, os educadores africanos, estiveram envolvidos e comprometidos com o autodesenvolvimento e a relevância social, da qualidade de vida de sua comunidade, onde residem e prestam seus serviços. Assim, a otimização no seu processo de formação educativa, para o mundo globalizado, implicou em conquistas da autonomia para a construção do próprio caminho. Na nova trajetória transformacional, bem como iniciativas educacionais que valorizem a diversidade; e ainda, em participação efetiva nos relacionamentos interpessoais, não só em espaços escolares, como também, em espaços não escolares. Lembrando Guimarães Rosa. “O real não está nem na chegada, nem na saída, ele se dispõe para gente é no meio da travessia”. Façamos dessa travessia a descoberta de novos horizontes.

Com essa introdução, destacamos algumas argumentações das ideias, sugestões, em que procurei desenvolver uma prática significativa para o momento pedagógico- formativo, na (Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Porto Príncipe). Buscando fazer parte da melhoria na educação, bem como da alegria e do prazer de motivar professores africanos formados, com matrizes próprias e seus sentimentos, integrados à ação educativa.

 A docência foi, assim, percebida na formação continuada dos professores africanos, como a descoberta de potencialidades inatas que, quando desenvolvidas, possibilitam a formação de um novo homem, de uma nova sociedade, de um novo mundo. Nessa direção, nosso olhar voltou-se para professores e educandos como pessoas, que aprendem na dimensão desse movimento; “educar e educar-se”, como uma atividade cognitiva, afetiva e social, carregada de intenções teóricas e práticas, com possibilidades transformadoras.

Diante desses construtos, lembramos que o ensino deve ser um privilégio e um direito de cada cidadão africano. Deixo então, para vocês, a narrativa dessa exitosa experiência.

                                                                                                        Stella Gaspar

 

  1. O percurso do projeto africanidades

                                          

 O que é ser professor autor e autônomo em uma pedagogia social?

 Podemos dizer que este professor vive num processo dinâmico e interativo de (re)encantamentos que busca, na sua condição humana, o conhecer-se no cotidiano de sua prática pedagógica. Identificamos características desse perfil docente, no momento em que este apossa-se de sua liberdade, usufruindo e abrindo-se às possibilidades de vivenciar experiências desejadas. Então, caminhar na direção de uma educação capaz de, como tão bem coloca Assmann (2001), acender esperanças e sensibilidades, deve-a ser possível compreender melhor o outro, suas incertezas, suas razões e atitudes e entender que vivemos em um mundo sistêmico e a partir dele. Pelos caminhos encontrados, conseguiremos reconhecer a importância de nossa existência, enquanto seres pensantes e profissionais.

Grande foi o início, o momento e a continuidade da experiência, dia a dia. De maneira livre os professores africanos em formação, mostravam-se encantados com as suas autorias e autonomias, com a possibilidade de sonhar aprendendo a vida inteira e por todas as formas de viver. Assim sendo, descobrir caminhos novos requer responsabilizar-se pela construção destes.

“Grande coisa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das coisas, a faculdade de as amparar e o talento de as concluir.” Machado de Assis

A importância da Pedagogia social proposta no curo formativo por mim, ministrado, buscou uma alternativa de educação, nos espaços escolares não formais, visando incluir socialmente todos que a educação formal não alcança capazes de aproximar com as práticas educativas o educando, jovens e adultos aos projetos flexíveis e construções conceituais, que ofereçam a cada um oportunidades para si e, no coletivo, de se perceber interagindo, crescendo e se desenvolvendo com conhecimentos humanos e intelectual.  Ou seja, um educador aberto a estas novas visões, com muitas janelas para o mundo. Não importa se a educação não aconteça em uma sala de aula, o fundamental é o reconhecimento de espaços no qual o educando possa construir uma relação dialética entre mundo e conhecimento, por meio das interações sociais que ali se constroem em situações educativas informais. 

A formação continuada, para os professores africanos, numa proposta de uma pedagogia socioeducativa, precisa implementar espaços para instigar elaborações que os levem ao crescimento pessoal e profissional, abrindo portas e caminhos para uma ação pedagógica que não comporte apenas matrizes técnicas e teóricas, mas o despertar para a questão de que o que está sendo ensinado pode ser referência para a construção de novas histórias educativas e profissionais, vividas na escola ou fora dela. Com isso, o professor, quando em atuação, pode passar a ter possibilidades para aprender, fazendo dos sonhos docentes, textos visíveis e possíveis. Logo, podemos dizer que a experiência educativa significativa é aquela que nos permite integrá-la a nossa história pessoal e cultural, isto é, de forma dialógica numa ação conjunta. (Stella Gaspar, 2013).

Professores africanos (Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Porto Príncipe) em formação continuada. Gaspar, Stella, 2013.

 

 

  1. A essência de uma experiência

 

Reviver novamente um tempo, suas emoções e seus legados, é como um poema amado de se ler, é como lavar o rosto pela manhã; e se vê feliz, por estar renascendo para um novo dia.” Stella Gaspar

Nossos momentos, como professora formadora de professores em Cabo Verde, foram nutridos pela abertura do coração, pois sabemos que não adianta uma mente técnica e um coração vazio. Buscamos tecer um olhar mais sensível e solidário, mais humano e compreensivo, por todos os que ali estavam, encantados com a possibilidade de se reencantarem com suas atividades.

O ambiente educativo, sempre esteve provocador de reflexões, a partir da caminhada concreta de cada um. Foi para mim, motivo de alegria e satisfação. Juntos estivemos nas dúvidas, conflitos cognitivos como também, com suas produções e sugestões, o que nos permitirá criar diálogos cada vez mais significativos.

Dessa forma, reconhecemos a interdependência entre o ambiente, o ser humano, o pensamento e os processos de desenvolvimento e sua evolução, na existência de uma cooperação coletiva e protagonista. Assim, os professores em formação, foram vistos como seres de inteirezas, com suas vidas integradas às suas emoções, intuições, desejos e afetos, com suas histórias de vida. 

Nessa direção, destacamos a dinâmica nas elaborações de saberes, lançando desafios para que os professores se definissem como aqueles que sentem, amam e que precisam de liberdade para produzir seus próprios caminhos.

Destacamos outro aspecto importante desenvolvido na experiência aqui narrada. Trata-se das “autorias pedagógicas”, gerando novas percepções, nas quais novas ideias fomentavam novos projetos e possibilidades pedagógicas nos diferentes movimentos humanos.

Por isto, mesmo, acreditamos que a pedagogia da autonomia de Paulo Freire, entendida por nós como proposta formativa, pode desencadear os fundamentos teórico-práticos na prática educativa de professores autores que atuam na Pedagogia Social, em seus modos de agir, pensar e ser.

É preciso entender, que o processo de formação profissional envolve transformações ao longo da vida, revelando-se a cada instante nesse sentido, a nossa incompletude e faltas fazem brotar a semente do desejar.

Assim, os desejos de produzir, podem impulsionar os professores para a busca de superações e transformações da prática pedagógica formal e informal no âmbito da pedagogia social.

Sentimo-nos, às vezes, como se estivéssemos enroscados(as) num emaranhado de teias e por sermos possuidores de conhecimentos, discernimentos, sensibilidades e disponibilidades, encontramos alternativas para alcançarmos liberdade de compartilhar com nossos pares a aventura de educar.

Professores africanos (Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Porto Príncipe) em formação continuada. Gaspar, Stella, 2013.

 

Professores africanos (Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Porto Príncipe) em formação continuada. Gaspar, Stella, 2013.

 

 

  1. Um luzeiro de africanidades

 

Corpo-África

De Juliana Costa

 

Meu corpo é uma África

e o mundo, um navio negreiro.

Enquanto cantos que não entendo

oscilam dentro de mim,

eu vejo as atrocidades que ainda não tiveram fim.

“Vivemos tempos de Lei Áurea” − assim nos dizem

enquanto socialmente nos constrangem

pelo cabelo crespo que adoramos

pela coroa simbólica que levantamos

e se ofendem quando nos amamos.

Meu corpo é uma África

que ainda grita

todos os crimes contra sua terra

e contra sua gente.

O racismo de nossa era

vem com uma boca sorridente

que dissimula

e tudo que é negro anula

como contribuição social.

Meu corpo é uma África

Meu mundo vive comigo a resistir

Já que não podemos mais permitir

o silêncio a nos chicotear,

nem os discursos com outros termos a inferiorizar o que somos.

 

Os cadernos negros n. 39 – (p. 194)

                 

Ao aceitarmos a legitimidade do outro, estamos propondo à reflexão sobre o desenvolvimento de sua autonomia, sua criatividade e capacidade crítica. Sendo assim, abrindo um espaço sem fronteiras, reconhecendo e acolhendo-o em sua legitimidade.

Muitas são as exigências advindas da sociedade, para com o professor, como, por exemplo, formar-se e continuar se qualificando, inovando métodos e técnicas pedagógicas, dominar o uso das tecnologias e o uso de suas linguagens, adotar uma prática pedagógica integrada a interdisciplinaridade, flexibilidade, transversalidade e contextualização, ser criativo, criar estratégias de ensino que contagie os alunos com suas ideias. Esse cenário desafiador impulsionaram os profissionais da educação africana, em buscar meios para dar respostas às demandas que requerem transformações, tanto nas práticas educativas, quanto na produção dá conhecimentos. Nesta busca, destacamos o mundo complexo da profissão docente, que tem, por expectativa, uma aprendizagem formativa não linear de modo que possa provocar mudanças na postura docente.

Portanto, devemos buscar processos formativos ousados, criativos e ressignificados, que gerem em nós sentimentos de reconhecimento de que as ações pedagógicas são mutantes e se articulam aos contextos sistêmicos, que, ao longo de vivências, na trajetória de vida pessoal e profissional, vão se materializando. Assim, torna-se evidente que o espaço da ação educativa, envolva aprendizagens para o “ser, sentir e agir”.

Para isso, entendemos que o processo de ensino informal utilizado na realidade africana, aquele que pode ser vivenciado fora da sala de aula, é também um espaço de aprendizagem e que pode potencializar a formação de jovens e adultos num ambiente dialógico tecido em conjunto com os professores em suas singularidades, isto é, em reciprocidade.

A educação de jovens e adultos na África, é uma modalidade educativa que necessita ser olhada de perto, com um olhar de encantamento, porque talvez, o que importa seja uma nova forma de olhar, que modifique a ótica de ver a função educativa.  Portanto, uma educação dialógica comprometida com a leitura crítica da realidade, para, a partir daí, juntos buscarmos novas formas de relações com o mundo.

Arquivo fotográfico (África) Gaspar, Stella, 2013.

 

 

  1. O educador e a arte de educar

 

Significa ser aquele que aprende ensinando com a sua práxis, afirmando que aprender precede ensinar, porque se dilui na experiência do aprender. Lembramos o sentido etimológico da palavra’ ensinar’, que vem do latim “insignare”, significando marcar com um sinal, indicar um caminho, um sentido. Todo conhecimento humano é, na sua origem o desenvolvimento, inseparável da ação; assim como “todo conhecimento cerebral, elabora e utiliza estratégias para resolver os problemas postos pela incerteza e a incompletude do saber” (Morin, 1996, p. 192).

É preciso integrar a educação, escola e vida, razão e emoção, matéria e espírito, indivíduo e meio ambiente, hemisférios cerebrais esquerdo e direito e tantas outras questões, porque cada ser humano carrega, dentro de si, o mundo em que vive e que pretende viver. 

Nessa linha de entendimento, entendemos que o processo de formação da profissão docente torna-se uma busca do professor de si, de sua função em um mundo que demanda consistência pessoal para o enfrentamento dos desafios que deverão ser encarados na sociedade atual.

 Arquivo fotográfico (África). Gaspar, Stella, 2013.

 

 A arte de educar, precisa formar seres humanos para os quais a criatividade e a ternura sejam necessidades vivenciais, e elementos definidores de sonhos de felicidade individual e social.

Acreditamos que o agir pedagógico, quando realizado em um lugar cheio de encantos, de criatividades e alegrias, pode representar uma fonte que proporciona a transformação do professor em um profissional de (re)encantamentos numa rede de conhecimentos que se cruzam e dialogam com as condições de vida da população.  A atuação pedagógica pode, então, resultar a descoberta de potencialidades inatas que, quando desenvolvidas, geram bem-estar na atuação docente.

 “Para aprender é importante estarmos abertos para acolher o novo, e  o que pode ser transformado. É voar com a imaginação, escrever e se surpreender, com a sinfonia dos conhecimentos adquiridos, é captar a paisagem e sentir a beleza das ausências. Aprender, é ter um flash de luz entre mundos e culturas, traduzindo sonhos, imagens em movimentos.” Stella Gaspar

Vegetação africana. Gaspar, Stella, 2013.

 

 

  1. O desejo de se conectar

 

Alunos africanos encantados com o computador. Gaspar, Stella, 2013.

 

Na experiência vivida, nosso objetivo foi também levar as oportunidades interativas no campo virtual, interativo on-line. Podemos destacar nessa direção, os múltiplos dispositivos midiáticos, trabalhados nas aulas com os educadores africanos: os fotologs (sites que permitem que se coloquem fotos na Internet com facilidade e rapidez), as conversas em MSN (dispositivo on-line que permitem em tempo real trocar informações com amigos e familiares) e os e-mails.

 A comunicação, compreendida como troca de conhecimentos, possui dimensões educativas que devem ser levadas em conta, como as possibilidades da rádio escola, como uma proposta que foi desenvolvida. O equipamento simples e de fácil manuseio como: microfones, mesa de som, aparelho de som com gravador, CD e rádio AM-FM e um amplificador. Esse equipamento foi de fácil obtenção e uso na realidade da África, naquele momento. Vale recordar que cada professor ganhou o seu Notebook, dado pelo projeto do curso, em convênio com a UFPB (Universidade Federal da Paraíba) para trabalhar com seus alunos, desenvolver suas atividades, entre outras.

 

 

 Fica a reflexão

 

Para nós, é importante renovar estratégias, adequar metodologias e instrumentos de trabalho, com aprendizagens formativas que podem estar nos desenhos, colagens, produções, na voz, no corpo. 

Lembramos que, cada aprendente, mesmo em se tratando de professores, tem uma necessidade de estímulo no exercício do pensar para transformar, porque, quando um prazer de uma realização é experimentado por nós, fica difícil desistir dele.

A formação profissional passa também pelo aspecto pessoal e, por isso, as ações que favorecem um trabalho sobre si, devem servir de referência e produzir maneiras de ser e estar com o outro, pressupondo a participação e articulação com as múltiplas interações, no processo de aprendizagem continuada.

Nossa experiência didático-pedagógica, tratou de pensar o que nos fazem sentir mais felizes e encantados na profissão docente e, com isso, poder superar o sentido limitado, muitas vezes dado ao fazer educativo.

As ideias aqui tecidas não se esgotam em si mesmas, podendo ser espelho para novas autorias, estas poderão ser fontes de estímulos para o nosso (re)encantamento como educadores. Em síntese, desejamos, incentivar as autorias profissionais na educação, oportunizando o reconhecimento de nossa capacidade de sermos autores do nosso “pensar, agir, criar, ousar”.

 Momento de finalização do curso. Gaspar, Stella, 2013.

 

Encontro

A cada encontro: o imprevisível.

A cada interrupção da rotina: algo inusitado.

A cada elemento novo: surpresas.

A cada elemento já conhecido: desconhecimento.

A cada encontro: um novo desafio, mesmo que supostamente já vivido.

A cada tempo: novo parto, novo compromisso.

A cada conflito: nova faceta insuspeitável.

A cada aula: descobrimento de terras ainda não esbravejadas.

A cada aula uma aventura.

A cada aula uma revelação.

A cada aula uma perplexidade.

Cada aula um caminho na busca de mim mesma.

Cada aula um nascimento com o outro.

Madalena Freire (2008, p. 154).

Imagem de Emmanuel Ikwuegbu por Pexels

 

Agradecimentos

        

Agradeço ao apoio de todos os envolvidos, nessa valorosa interlocução entre o Brasil e a África. Essa interação foi decisiva em todas as etapas de realização do projeto “Africanidade”.         

Agradeço também aos leitores da “Revista Internacional The Bard”, e a todos que amam o “Coração afetuoso, chamado África”.         

Agradeço, pela paixão da escrita compartilhada.

Espero que gostem.

Imagem de Emmanuel Ikwuegbu por Pexels

Por STELLA GASPAR

 

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