RECANTO DAS CULTURAS TRADICIONAIS – A tapeçaria vibrante e multifacetada da cultura africana

RECANTO DAS CULTURAS TRADICIONAIS – A tapeçaria vibrante e multifacetada da cultura africana

1- Introdução

      Segundo a bióloga Pamella Brennand, na obra “Travessias Cognitivas – Áfricas Reveladas”, a teoria da evolução de Charles Darwin vai nos mostrar, quando levantamos questionamentos sobre nossa existência, que temos uma dimensão não questionável: nossa origem biológica que permite a busca de respostas sobre nossa ancestralidade enquanto espécie, “Homo sapiens sapiens”.  A teoria evolutiva atual se modificou com o advento da interpretação do Genoma Humano, permitida pela análise do DNA (Ácido Desoxirribonucleico), molécula presente nas células que carrega toda a informação genética de um organismo. Essa descoberta tem permitido a comparação morfológica de diferentes espécies através da datação geológica, permitindo a cientistas tecer hipóteses acerca da história evolutiva dos seres vivos, entre elas nossa própria espécie.

Imagem de Jean-Louis SERVAIS por Pixabay

      Em 1974, a descoberta de um esqueleto quase completo de um hominídio fêmea por um grupo de antropólogos chefiado por Donald Johnson em uma jazida fóssil na Etiópia, com cerca de três milhões de anos, permitiu revelar um novo capítulo da história evolutiva de nossa espécie, batizada por Lucy. As pesquisas sobre Lucy permitiram hipótese de que, de fato, os hominídeos, incluindo nossa própria espécie, migraram da África para a Ásia e depois Europa e alguns milhões de anos depois conseguiram chegar à América. Nesse processo, surge a diversidade cultural e linguística que marca a nossa existência humana como criadores de transformadores de culturas. Lucy, traz a constatação científica de que o continente africano é o berço de muitas linhagens evolutivas que levaram ao gênero Homo e consequentemente à nossa própria espécie. A autora argumenta que não pode ser esquecido este fato quando questionamos nossa própria existência. 

      Dito isto, iremos nesse texto, buscar alguns elementos da cultura africana para marcar a importância deste Continente, na produção cultural contemporânea, reconhecendo que foi a diversidade inata de nossa linhagem evolutiva que hoje nos permite lançar múltiplos olhares a uma mesma problemática, construir novos saberes e novas perspectivas cognitivas.

 

2  – As muitas Áfricas na diversidade de olhares sobre o mundo

 

Imagem de Aga2rk por Pixabay

 

       O continente africano é vasto e diversificado. Lar de milhares de grupos étnicos singulares com língua, cultura, tradições e história próprios. É difícil atribuir importância a cada um deles, importa reconhecer cada grupo étnico pode variar dependendo do contexto histórico, político e social onde se encontram inseridos. Em diferentes processos civilizatórios, períodos específicos e em diferentes regiões, esses grupos podem ter desempenhado papéis proeminentes. É difícil e até mesmo inadequado determinar se um único grupo específico pode ser considerado como “o mais importante” uma vez que a vasta diversidade e complexidade não permite recortes.

      Cada grupo étnico possui sua própria cultura distinta, com suas próprias tradições e costumes transmitidos de geração em geração. Isso resulta em uma grande variedade de culturas dentro do continente. Poderíamos afirmar, a grosso modo, que é possível assinalar alguns em suas especificidades culturais. Seria difícil no espaço desta coluna, trazer uma lista exaustiva. Assim, neste contexto escolhemos a partir da literatura especializada sobre traços culturais africanos alguns exemplos. Os zulus, localizados principalmente na África do Sul, é um dos maiores grupos étnicos africanos e conhecidos por sua história militar. África do Sul é lar de uma grande variedade de grupos étnicos, incluindo os Zulus, Xhosas, Afrikaners, Coloreds, indianos e muitos outros; os Hausa, um dos maiores grupos étnicos da Nigéria, mas também, encontrados em outros países como  Níger, Chade e Camarões, possuem uma rica história de comércio, e são identificados por suas tradições culturais na arquitetura peculiar; os Yoruba localizados na Nigéria e no Benin possuem rica tradição cultural que inclui religião, arte, música e a literatura. São conhecidos, também, por suas cidades históricas, como Ile-Ife e Ifé; os Achântis têm uma rica herança cultural em Gana que inclui arte, música, dança e tradições religiosas. São conhecidos por sua habilidade na tecelagem de tecidos Kente e sua organização política tradicional; os Anhara um dos maiores grupos étnicos da Etiópia são conhecidos por sua língua e cultura distintivas, bem como por sua influência política significativa ao longo dos séculos; os Berberes  são grupos de tradições nômades encontrados principalmente no norte do continente especialmente em Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia. Possuem língua própria, o berbere, e são conhecidos por sua arte, música; os Massai, grupo étnico pastoralista encontrado principalmente no Quênia e na Tanzânia. São conhecidos por sua rica cultura e tradições, incluindo vestimentas coloridas, danças e sistemas de crenças únicos.

      Muitos outros grupos étnicos constroem a cultura ancestral africana mediante uma tapeçaria vibrante e multifacetada, que continua a inspirar e influenciar o mundo moderno. Rica e diversificada, a cultura ancestral e moderna do continente africano abrange uma vasta gama de tradições, línguas, crenças e práticas mundializada através das diásporas africanas ao redor do mundo. A diáspora africana expressa esta cultura através da ciência, da música, da dança, da arte, da mitologia, da culinária, do vestuário, festivais e práticas religiosas que variam de região para região, compartilhadas por crenças semelhantes, a exemplo da adoração aos antepassados, e aos espíritos da natureza. Diversas manifestações incluem esculturas, máscaras, pinturas, tecidos e cerâmicas, muitas vezes com significados simbólicos profundos. Em todos os grupos étnicos, independente da localização no continente, a música e a dança desempenham um papel fundamental com uma grande diversidade de estilos e instrumentos musicais, desde tambores tradicionais; kora, balafon, mbira, d jembê. Muitos são, também, os estilos contemporâneos, como o afrobeat highlife,  jazz africano, reggae africano, rumba, soukous e muitos outros.

      A arte africana, tem uma profunda conexão com a espiritualidade, a mitologia e a identidade de cada país. A tradição oral desempenha, também,  um papel importante na transmissão de histórias, mitos, lendas e sabedoria cultural de geração em geração. Inclui narrativas épicas, contos populares, poesia oral, provérbios, etc. Celebram uma variedade de eventos, como colheitas, casamentos, iniciações, ritos de passagem, funerais e celebrações religiosas.

            Muitos países africanos possuem populações étnicas diversas, e os conflitos  podem surgir de tensões históricas, disputas territoriais, competição por recursos naturais, discriminação e marginalização. Esses conflitos resultam em violência, deslocamento de populações e divisões sociais profundas. Um aspecto a considerar é a grande diversidade de religiões, tais como o cristianismo, o islamismo, o animismo e outras crenças tradicionais. Os conflitos religiosos podem ocorrer quando grupos religiosos diferentes competem por influência, recursos ou poder político, levando a tensões inter-religiosas e, por vezes, violência. As Disputas territoriais entre comunidades, grupos étnicos ou estados são comuns em várias regiões. Essas disputas em muitos territórios envolvem fronteiras internacionais, terras ancestrais, recursos naturais como água e petróleo, e questões de soberania, instabilidade política e conflitos pelo poder são uma fonte significativa de tensão. Os conflitos políticos podem surgir de eleições contestadas, falta de governança democrática, corrupção, repressão política e competição por recursos do Estado. Os conflitos culturais modernos são recorrentes com o rápido processo de urbanização e globalização. São comuns conflitos culturais entre tradições e valores tradicionais e influências modernas como debates sobre identidade cultural, mudanças nos papéis de gênero, padrões de comportamento social e uso de tecnologias.

            Entretanto, apesar de a diversidade cultural e dos conflitos dela decorrentes, do ponto de vista econômico  há uma grande diversificação nos vários países na contribuição para o Produto Interno Bruto do continente. São destaques: a Nigéria país mais populoso da África e um dos maiores produtores de petróleo; a África do Sul a economia mais industrializada, possui uma economia diversificada que inclui setores como mineração, manufatura, serviços financeiros, turismo e agricultura; a Argélia tem uma economia baseada principalmente na produção de petróleo e gás natural. Outros setores importantes incluem mineração, manufatura e agricultura; o Marrocos tem uma economia diversificada que inclui setores como agricultura, pesca, mineração, manufatura, turismo e serviços. É um importante centro comercial e financeiro na região; o Quênia é uma das economias mais dinâmicas do leste africano, com setores como agricultura, turismo, serviços financeiros, tecnologia da informação e comunicação (TIC); Gana é conhecida por seus setores de mineração (ouro, bauxita), agricultura, serviços financeiros, petróleo e gás, além de uma crescente indústria de tecnologia; e por fim o Egito que tem como foco de produção a agricultura (nas margens do Nilo), o turismo, a siderurgia, a metalurgia, indústria têxtil, química, alimentícia, exploração de minerais, petróleo e gás natural. Além disso, o Canal de Suez ligando a Ásia e a Europa o torna um centro comercial e logístico muito importante para o comércio mundial.

Imagem de Sabine Fischer por Pixabay

 

      A riqueza cultural deste imenso continente, numa curta coluna como esta, tomei como parâmetro minhas poucas viagens à África, para trazer à cena um dos países que me encantou como socióloga de matriz africana (assim hoje me considero) o Egito.

 

3-  A riqueza cultural egípcia

 

      Não é fácil falar sobre as diferentes regiões da África, bem como de seus diferentes países. Isso requer uma narrativa precisa e respeitosa, com o uso de termos descritivos que se refiram às regiões geográficas específicas ou às culturas e etnias presentes nessas regiões. Assim, as interpretações aqui construídas partiram de recortes metodológicos próprios, considerando que esta coluna tem o caráter informativo inerente a este tipo de abordagem. Neste sentido, explorar a conexão entre a herança cultural egípcia e o continente africano e outras civilizações envolve reconhecer tanto as influências únicas da cultura egípcia quanto as conexões mais amplas com outras culturas como a dos invasores estrangeiros, como, por exemplo, romanos, otomanos e gregos. Situado na região noroeste do Continente africano, e no extremo leste do Deserto de Saara, o Egito, possui 92 milhões de habitantes vivendo em sua maioria ao longo do vale do Rio Nilo. Tem como principais cidades o Cairo (capital) Alexandria, Gizé e Xubra Queima. A localização geográfica do país permitiu ao longo de sua história (Egito Antigo  e Moderno) compartilhar fronteiras e interações históricas. Isso facilitou o intercâmbio cultural ao longo dos milênios.

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      Muitos aspectos da cultura egípcia, como sua arte, mitologia e práticas religiosas, têm paralelos em outras culturas diversas. Por exemplo, a crença em divindades associadas à natureza e aos elementos ambientais é comum. O Egito antigo teve relações comerciais e diplomáticas com outras civilizações africanas, como a Núbia (atual Sudão), a Etiópia e os reinos da África Subsaariana. Essas interações resultaram em trocas culturais significativas, incluindo o comércio de bens, tecnologias e ideias. As descobertas arqueológicas e os estudos antropológicos continuam a revelar as conexões entre o Egito e outras culturas africanas. Por exemplo, evidências de práticas funerárias e artefatos encontrados em sítios arqueológicos demonstram conexões culturais entre o Egito e regiões vizinhas. Reconhecer a herança cultural egípcia como parte integrante da história e identidade do continente africano é essencial para promover uma consciência histórica mais abrangente e inclusiva sobre a importância deste país para a cultura universal.

      Os egípcios antigos, fizeram muitas contribuições importantes para a civilização, incluindo avanços na medicina, matemática, arquitetura e astronomia. Eles desenvolveram técnicas de construção avançadas, como a utilização de roldanas e rampas, e criaram um calendário solar preciso. A civilização egípcia antiga é famosa por suas realizações monumentais, como as pirâmides de Gizé, os templos em Luxor e Karnak, e os hieróglifos, sua forma de escrita. A religião desempenhou um papel fundamental na vida cotidiana dos egípcios antigos, com divindades como Osíris, Ísis, Hórus e Rá ocupando papéis centrais. A cultura egípcia antiga foi influenciada, especialmente por aquelas ao sul do país. Muitos aspectos da religião egípcia, mitologia e arte têm paralelos com estas culturas vizinhas. Embora a cultura antiga do Egito, seja frequentemente estudada separadamente, é importante reconhecer sua conexão com a vasta e diversificada herança cultural do continente em sua  totalidade.

      A arte egípcia é reconhecida por sua estilização e simbolismo. Pinturas murais, esculturas e objetos de arte eram frequentemente criados para servir a propósitos religiosos ou funerários. A arquitetura egípcia, especialmente as pirâmides, é um testemunho duradouro da habilidade e engenhosidade dos antigos, incluindo estilos como a arquitetura de barro na África Ocidental, as casas de pedra na Etiópia, as casas de colmo na África Oriental.

      A arte egípcia, seja textos escritos, pinturas, esculturas, templos entre outras, era marcada pela sua funcionalidade, seja ela religiosa, histórica, ideológica, mitológica ou cosmológica. Reproduzia valores sociais e expressavam sentimentos, capacidade criativa e visões de mundo das camadas superiores da sociedade. Eram expressas em templos, estátuas, rochas, papiros, cerâmica, máscaras mortuárias, amuletos. Em todas essas manifestações não se buscava uma experiência estética específica, mas atender a uma demanda dos soberanos e a preocupação com a vida após a morte, ou seja, a imortalidade. A vida cotidiana no Egito antigo era influenciada por tradições como a agricultura, pesca e comércio. A sociedade era estratificada, com os faraós no topo da hierarquia social, seguidos por nobres, sacerdotes, escribas, comerciantes, camponeses e escravos.

 

4- Considerações finais

 

            Tema fascinante e desafiador, construir interpretações  acerca da memória cultural da África é um grande desafio. A arte da história inspirada em nossas heranças africanas.

            É fundamental buscarmos as raízes comuns entre muitos povos para fortalecer a noção contemporânea dos chamados “lugares de memórias’. A exploração das pertinências das relações entre história e memória nos obriga a pensar a dimensão humana que atravessa as histórias construídas por muitas civilizações que influenciam nossa construção cultural individual e coletiva. Ao atravessar as leituras realizadas para construção deste texto, vimos o quanto são frágeis nossas compreensões sobre diversidade cultural, pertencimento e a condição humana.

            Traços da cultura africana e em especial a cultura egípcia habitam nossas interpretações de mundo, fazendo-nos refletir que somos o universal cultural em diálogo permanente com as especificidades de manifestações de diversos povos.

            Nesse esforço de aproximação, a interação com imagens, sons e sabores mostra que a dimensão da nossa condição humana se aflora quando dialogamos com diversas manifestações culturais.

            A arqueologia, os domínios científicos da astronomia, os bancos de dados digitais nos ajudam a realizar descobertas de muitos mundos em nós, mesclando a cultura local com a cultura humana, em geral. O passado não pode ser desvelado no tempo longínquo de muitos territórios desconhecidos. Na reconstrução de pistas deste vasto território que é o planeta terra, a cultura africana perpassa tempos e lugares chegando a espaços nunca visitados, mas reconhecido pelas mãos dos que construíram as artes multicoloridas e multifacetadas para criar identidades múltiplas. Os fragmentos de vida que encontramos em toda forma de arte e cultura nos leva à experiência viva da memória e segundo “Paul Ricœur” nos leva à especulação multimilenar sobre a ordem do tempo. A arte pode expressar a imperiosa necessidade de reescrever a história com o almagma de muitas mãos nas construções culturais do tempo presente.

             Reconhecer a África como berço da humanidade antiga e moderna se impõe cada vez mais nos estudos interdisciplinares sobre os seres humanos e as redes sócio-técnicas complexas que nos permitem conhecer as origens das primeiras civilizações, a formação do mundo antigo e o contemporâneo. Muitos intelectuais africanos contemporâneos oferecem grande contribuição ao desenvolvimento do conhecimento trazendo novas bases epistemológicas para reflexões sobre esta grande população que a diáspora espalhou por todo o planeta.

              A cultura africana fundamenta a compreensão da cultura brasileira e sua história. Estudos indicam a permanência de um extenso conjunto de representações formuladas que povoam os cenários do intenso processo de apropriação heterogêneo de cultura cujos conjuntos de formas e sentidos são utilizados para falar de diversidade cultural.

 

 

“Que a cultura africana na sua riqueza possa inspirar a humanidade a reescrever as múltiplas percepções  da diversidade cultural, sua complexidade e sua beleza”.

                 Colunista Edna Gusmão de Góes Brennand

Imagem de Sabine Fischer por Pixabay

Por EDNA BRENNAND

 

 

 

 

 

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