As cartas desempenham um papel crucial no registro histórico, oferecendo uma janela íntima para o passado e revelando a vida cotidiana, os pensamentos e as emoções de indivíduos em suas próprias palavras. Elas fornecem um registro direto e pessoal, muitas vezes mais detalhado e sincero do que documentos oficiais ou narrativas históricas tradicionais. Por meio das cartas, muitos escritores, artistas e figuras históricas deixaram suas próprias biografias e experiências narradas, permitindo um entendimento mais profundo de suas vidas e épocas.
Um exemplo grandioso é Cartas a Theo, de Vincent Van Gogh. Esta compilação de cartas enviadas por Van Gogh ao seu irmão Theo é uma fonte valiosíssima para historiadores, escritores e entusiastas da arte. A obra revela 200 das 600 cartas que Vincent escreveu a Theo e que ficaram em poder da esposa deste, após sua morte.
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Na verdade, Theo, embora fosse quatro anos mais novo que Vincent, a partir das cartas, passou a sustentá-lo para o resto da vida. Ficou desolado com o episódio da morte de Van Gogh, teve uma paralisia e morreu poucos meses depois. Ao visitar Auvers- sur- Oise, onde há um museu aberto das obras de Van Gogh, contemplamos uma réplica de “O campo e os corvos”, numa paisagem bonita e sombria, a última tela de Vincent. Foi ali que ele tentou tirar a própria vida e conseguiu êxito. Logo ao lado, um pequeno cemitério com dois túmulos cheios de girassóis. Lá estão os irmãos Vincent e Theo.
Poucos sabem, mas os Van Gogh têm uma história fortíssima com a arte, desde o século XVI. Eram conhecidos como curadores e comercializadores de arte. Porém, no tempo de Vincent, estavam pobres. Mesmo assim, Van Gogh consegue um emprego na conceituada Casa Goupil, em Bruxelas, assim como Theo. Depois, ao ser enviado a Londres (Vincent), começam as correspondências (1873-1875, cartas de Londres). São cartas lindas, leves, falando de aspectos gerais, do trabalho, e há muitas sugestões de leituras de Van Gogh a seu irmão.
Percebemos, ao ler as cartas, que Van Gogh era um artista apaixonado e brilhante. Um escritor por excelência, dado a metáforas, a grandes imagens. Ler as cartas de Van Gogh é ver sua arte por meio das palavras, era uma outra forma de “pintar”. Ele era um grande estudioso, de anatomia e de literatura. Inclusive, em suas sugestões de leitura a Theo, ele cita Charles Dickens e Shakespeare. Ler Cartas a Theo é como se conhecêssemos Van Gogh por ele mesmo. De uma beleza incrível mesmo. Foi numa dessas cartas de Londres, que expressou:
“Ache belo tudo o que puder. A maioria das pessoas não acha belo o suficiente.”
É como se ele visse a vida a partir de quadros. Ele olha para uma paisagem e vê um quadro. Assim, conta o tipo de visão, o tipo de luz com todas as suas características. Vincent era um contemplador. Desde cedo, procurou sair e observar a natureza. Nasceu em Groot-Zimbert, na Holanda, uma região com muitas paisagens. Cresceu muito voltado a esse observar e contemplar.
As cartas de Paris (1875-1876)
Um período com cartas bem interessantes que fazem descrições detalhadas dos passeios pelo Louvre, Jardin de Luxemburg, caminhadas à beira do Rio Siena. Um verdadeiro exemplo de escrita humanizada, de como narrar com sentimento, de como descrever com a alma. As cartas são como se ele estivesse pintando com as palavras. O leitor tem a sensação de estar passeando com ele.
Embora estudasse e se interessasse bastante pela arte, Van Gogh, até essa época, ainda não pintava, o que só veio a acontecer uns cinco anos mais tarde. Essa é uma prova de que ele se preparou muito primeiro, muito mesmo. Contudo, já expressa muito veementemente o quanto deseja, com o trabalho dele, com o ofício dele, levar beleza às pessoas, levar claridade, alento.
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Cartas de Amsterdã (1877-1878)
Um período difícil em termos de trabalho. Van Gogh já não está mais na Casa Goupil e tenta a vida como pastor. Há, dele, uma enorme preocupação com exames de grego e pela forma que será avaliado pelos professores. Há um desesespero da parte dele por não estar fazendo nada de impressionante, valioso. Sente-se meio perdido, à deriva da própria vida e isso o consome. Continuava muito angustiado e as cartas mostram uma ascenção que parecia consumi-lo gradativamente. Mostram já pequenos indícios do pensamento suicida:
“Depois disto, me experimentei de um pedaço de pão (seco) e um copo de cerveja; é uma maneira recomendada por Dickens àqueles que estão a ponto de suicidar, como sendo particularmente indicada para desviá-los ainda durante algum tempo deste projeto.”
Ele se dedica a ser missionário, mas não é bem sucedido. Vai para Borinage, na Bélgica. Ali, começam os desenhos a carvão, nas minas. Retrata a vida dura dos mineiros. As cartas vêm com gravuras, desenhos. Época também que ele gasta quase todo o dinheiro que tem, adquirindo livros, para aprimorar seu conhecimento de como desenhar melhor, sobretudo figuras humanas.
Numa das cartas, Vincent descreve como passou seis horas dentro de um das mais perigosas minas da região. Comia muito pouco para que o dinheiro fosse empregado em seus livros, seu conhecimento. As cartas também mostram que ele sempre dividia o que tinha com quem precisava mais.
É o período das melhores cartas. Praticamente, um guia sobre técnica, sobre a própria arte, a criação artística. Van Gogh era realmente um gênio, não só porque pintou obras maravilhosas, mas porque entendia muito daquilo que estava fazendo. A prova de que a genialidade é muito mais transpiração, do que inspiração ou criatividade. Ele descreve toda a “transpiração” que teve para chegar ao “reino da pintura.” Começou com desenho a carvão, desenhos a lápis, tentou vários tipos de lápis, economizou muitas refeições para comprar materiais diferentes. Estudou exaustivamente, com muita disciplina e já lutando contra a doença que o consumia, cada vez mais. Entre 1880 e 1881, passeia por Bruxelas e vai para Haya, onde fica até 1883.
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Van Gogh também, nessa época, já discutia os aspectos de sua técnica e do seu estilo. Deixa claro que não é só um paisagista. Mesmo que faça paisagens, haverá sempre uma forma humana, nem que seja um resquício. Ele tinha uma paixão pela forma humana, principalmente a face, ou as formas que a vida toma. Ele deixa claro nas cartas o desejo de fazer quadros que comovam, que valham a pena ser apreciados. Para ele, o pintor deve ter paciência e deve partir para cima da imagem de modo a dominá-la. Ou seja, a obervação só pode ser bem sucedida se o pintor transformar tudo o que observa em uma obra e, principalmente, se conseguir reproduzir na obra aquilo que sente, aquilo que provocou determinado enquadramento.
Pelas cartas, percebemos como Van Gogh traçou um caminho “entre aquilo que sentimos e o que podemos fazer para transformar isso num quadro.” Sabe que é com estudo, com trabalho, que pode-se aprimorar esse caminho. Ou seja, para traduzir o que se sente, não basta sentir, é preciso descobrir a melhor forma de traduzir essa emoção.
Para ele, a perfeição não é chegar ao estado de uma obra completa, acabada, magnânima. Ao contrário, é o pintor fazer o melhor que pode a cada dia. Ainda em Haya, Van Gogh rompe com Anton Mauve (1838-1888), um primo, também artista, que o apoiava, mas era bastante crítico. Um dos maiores motivos do rompimento foi o fato de Vincent receber, em seu paupérrimo ateliê, a prostituta grávida, em gestação bem avançada, Sien Hoornik, que tinha sido abandonada pelo seu marido. Ela vai estrelar uma sequência de ilustrações da série Sorrow (Tristeza). Dentre as descrições sobre ela, escreveu:
“…Não um ateliê místico, mas um ateliê que deita suas raízes em cheio na própria vida. Um ateliê com um berço e uma cadeira de criança. Onde, portanto, não há estagnação, mas onde tudo incita, conduz e estimula à atividade.”
É este também o período em que Vincent começa a nomear seu estado de angústia como uma doença. Tem consciência dos momentos que ela se aproxima e se afasta dele e os descreve a Theo. O mais comovente é a maneira que Van Gogh retrata essa alternância, uma briga constante dentro dele: a angústia e a arte.
Mais comovente é a forma que ele lidou com tudo isso. Sentia a necessidade de trabalhar até o esgotamento, como forma de optar pela arte e afugentar a dor. Ele realmente cria que se parasse de pintar seria consumido pela dor da angústia:
“A arte é ciumenta, ela não quer que a doença lhe tenha procedência. Faço portanto o seu gosto.” (…) Pessoas como eu nunca deveriam ficar doentes.”
Em resumo, a doença se acentuou muito, a ponto de Van Gogh pintar 80 telas em menos de dois meses em Auvers- sur- Oise, onde viveu seus últimos meses de vida. Em 27 de julho de 1890, nos campos de Auvers, ele deu um tiro em si mesmo. A bala ficou presa na virilha e o médico não conseguiu retirá-la. Na segunda noite após o episódio, deitado ao lado de Theo (que foi abalado para vê-lo), ele disse que “estava partindo”, e se foi.
É claro que há muito mais a dizer das cartas, mas termino este artigo emocionada, com a certeza de que Van Gogh foi muito mais especial do que imaginamos. Foi culto, gentil, sensível, compassivo, generoso. Ainda bem que, além de suas lindas pinturas, temos suas cartas, através das quais conhecemos um pouco mais de um dos maiores gênios da arte de todos os tempos. Mesmo que ele tenha escrito em suas cartas a Theo:
“O que é que sou aos olhos da maioria? Uma nulidade, um homem excêntrico ou desagradável, alguém que não tem uma situação na sociedade ou que não a terá; enfim, pouco menos que nada.”
―Meu querido Van Gogh, você é um mestre imortal, não só na pintura, mas também na arte de escrever com alma e afeto! Pode ter certeza de que pensamos sobre você exatamente o que expressou:
“Quero chegar ao ponto em que digam da minha obra: este homem sente profundamente, este homem sente delicadamente.” (Vincent a Theo, 1883)
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Por SUELI LOPES