Muito da minha relação com a celebração do Natal se deve à minha mãe. Ela é certamente uma das pessoas que conheço que mais ama essa data. Desde minha pequena infância a vejo assistindo a filmes natalinos, lendo contos e crônicas cujos enredos se passam nessa época, e decorando nossa casa, bem como sua loja de decoração na minha cidade no interior, com árvores, guirlandas, castiçais, bonecos, arranjos de mesa, almofadas temáticas e — um dos meus itens favoritos — presépios.
Simpatizo demais com presépios e sagradas famílias, devido à sua singeleza, ao seu cenário despojado, à variedade simpática de personagens, à sua simbologia de um nascimento sagrado coroado por uma noite incrivelmente estrelada, com a presença dos poucos que realmente importam. Quando menina, ajudava meus pais em seu comércio, e o mês de dezembro era quando me sentia mais útil. Nunca via tanta gente ao mesmo tempo, ali, escolhendo com carinho presentes e lembranças para seus queridos. Eu me prontificava a armar os presépios, retirando-os com cuidado das embalagens para colocá-los sobre as prateleiras de exposição. Tinha receio que uma orelhinha de ovelha, por exemplo, se quebrasse, pondo todo o conjunto a perder… Eu era uma exímia arrumadora de presépios, sabiam? Dispunha os personagens da cena com muita atenção, para a história ser contada com veracidade e entusiasmo. Nada de deixar Maria muito longe de seu bebê, a vaquinha de costas para o burrico, ou o pastorzinho como mero figurante: eu tentava revelar a contribuição genuína de cada um para o acontecimento mais marcante da cristandade.
Tanto que, após adulta e já na minha própria casa, passei a exibir algumas sagradas famílias em minha cristaleira e num cantinho do quarto, o ano todo. Estão lá, admiráveis, convidando-me a lembrar do que verdadeiramente significa uma família para mim. Esse meu gosto particular se fortaleceu ao mesmo tempo, em que, também por influência de meus pais, passei a assistir desenhos natalinos. Terminavam os anos 1980 quando se tornou tradição familiar vermos juntos na sala, em DVD, um clássico Disney, “O Natal de Mickey Mouse”, que já sabíamos ser adaptação do famosíssimo “A Christmas Carol”.
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Traduzida como “Um Conto de Natal”, a história acompanha Ebenezer Scrooge, um idoso extremamente avarento que recebe a visita de três fantasmas na véspera de Natal, o do passado, do presente e do futuro, forçando-o a uma transformação pessoal, tendo sido publicada pela primeira vez em 1843 por Charles Dickens (minha mãe era uma sua leitora assídua).
Assim, toda noite do 24, após o jantar, já sabíamos, eu e meu irmão, que viria na sequência essa história comovente sobre saber doar e dividir, o real espírito natalino. Conseguimos, inclusive, passar a tradição para outros familiares e amigos que frequentavam eventualmente nossa casa nessa data. Chegamos agora à geração dos netos.
Essa minha incursão por uma crônica familiar imprime, na verdade, o movimento que aspiro criar aqui com vocês para a última edição deste ano da The Bard. Por aqui estamos em clima de festa e de reflexão. Estamos fechando um ciclo e nos preparando para as intenções do próximo. Intenções, vejam só. Não é momento de realizar, e sim de desejar, como Bob Cratchit, que tanto desejava que seu caçulinha Tiny Tim se recuperasse de sua fragilidade física e que seu patrão Scrooge reconhecesse sua dedicação como escriturário, no conto de Dickens. O movimento é de introspecção e de reavaliação dos nossos valores mais íntimos e arraigados, porque só eles nos permitem avançar confiantes para 2025, escolhendo que tradição preferimos manter.
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Por falar nela, é hora de selecionarmos os nossos clássicos literários de Natal. Eu poderia citar dezenas de títulos, já que a tradição não só é longa, mas culturalmente variada. Comemora-se o Natal de diferentes maneiras ao redor do globo, o que nutre há séculos todas essas literaturas nacionais, das quais se destacam autores ora mais, ora menos tradicionalistas, ora mais, ora menos religiosos, ou então espiritualistas. Mas me atenho, como já indiquei, à minha jornada íntima pelo Natal e por suas histórias, fortemente marcada pelos meus ancestrais, que pode servir como um pequeno repertório para vocês, leitores. A seleção compreende unicamente contos brasileiros.
Começo por “A Missa do Galo” do incontornável Machado. Adoro esse conto desde os meus 17 anos, idade de uma das personagens. Publicada em 1893, a narrativa se desenrola durante a madrugada de Natal, enquanto o jovem Nogueira aguarda a hora de ir pela primeira vez a uma missa do galo no Rio de Janeiro. Hospedado na casa de Meneses, amigo da família, ele acaba estabelecendo uma conversa repleta de alusões, sutilezas e silêncios com Conceição, a esposa do anfitrião, uma mulher bem mais velha que lhe desperta certo fascínio. É um típico Machado, nesse sentido: exímio narrador de encontros entre casais que se atraem estranhamente e que saem transformados dessa experiência fortemente interna, já que nós, seus leitores, nunca sabemos ao certo se chegam a consumar suas relações.
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“O Peru de Natal” é outro conto marcante da nossa literatura, de autoria do revolucionário Mário de Andrade. Publicado em 1942 e postumamente recolhido em Contos Novos, o texto revisitaquestões familiares e emocionais profundas, desencadeadas pela frustração com a ceia e o tal peru. O narrador já adulto recorda de quando seu pai, um homem austero e econômico, decide que o peru não seria comido no Natal, mas guardado para o Ano Novo, causando intenso ressentimento nele garoto. O prato, um clássico dos banquetes natalinos no Brasil e em outros países, acaba se tornando um símbolo de desilusão e do distanciamento emocional entre o pai e o filho (aflorando sentimentos que, devemos admitir, muitas vezes perpassam o clima familiar nessa época). Lembro-me de ter ficado muito mexida com esse Mário. Porque é uma denúncia bem-humorada do quão danoso pode ser o patriarcalismo no seio familiar e do quão revigorante, ao contrário, o clima que se instaura após o falecimento da figura autoritária.
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Já “Na manjedoura”, publicado originalmente em jornal em 1962, vejo uma das mais poéticas descrições do nascimento de Jesus. Em vez de apresentar uma narrativa festiva ou dramática, a inigualável Clarice Lispector (autora nossa que caiu também no gosto literário de celebridades internacionais, como a atriz australiana Cate Blanchett, que durante uma recente premiação do cinema confessou ser sua ávida leitora) explora os sentimentos de simplicidade e de ternura que brotam espontaneamente em nascimentos e renascimentos. E traz a mim um singelo presépio:
“Por enquanto o nascimento era só de família. Os outros sentiam, mas ninguém via. Na tarde já escurecida, na palha cor de ouro, tenro como um cordeiro refulgia o menino, tenro como o nosso filho. Bem de perto, uma cara de boi e outra de jumento olhavam, e esquentavam o ar com o hálito do corpo. Era depois do parto e tudo úmido repousava, tudo úmido e morno respirava”.
Essas sugestões de leitura nos permitem sentir o Natal em toda a sua profundidade. Afinal, é uma das datas celebrativas mais importantes em muitas culturas, que não passam em branco, como dizemos. Por menos que as famílias e os amigos façam, ela é lembrada, marcada, vivenciada. Com ou sem troca de presentes, com ou sem nostalgias, missas ou perus, com muitas ou poucas tradições familiares, ela incide sobre nós de alguma forma, ela nos toca, nos lembra de algo, mesmo que seja simplesmente que somos uma humanidade neste planeta desejando paz.
Concluo como costumo fazer aqui: sugerindo que esses ou outros contos natalinos sejam lidos em voz alta, ou contados adaptadamente para as crianças. Elas têm o direito de acessar histórias que mostrem dificuldades econômicas e emocionais pelas quais passem famílias do mundo todo. Isso, sim, é sagrado. Mantê-las a par de significados um pouco mais sensíveis, totalmente ausentes das curtas narrativas que acessam por telas e produções comerciais.
Por aqui montaremos juntos um presépio, é claro, e leremos histórias na véspera de Natal, bem coladinhos, ainda que não possamos usufruir de um cobertorzinho e um chocolate quente como em outros países onde neve em dezembro faz sentido. E vocês, por aí, como irão comemorar?
A toda a Família The Bard um 2025 de amor e luz!
Por VANINA SIGRIST