Outono de 2019. Cores, dores, amores. Silêncios. Portas fechadas. Londres, que escancara as mudanças de cada estação, parecia quieta, não conseguia acompanhar o movimento natural da natureza. Ou seria o contrário?
As folhas caíam, o vento assoprava algo novo e universal: era tempo de ficar em casa! Como assim? Logo no outono? A estação mais sublime, viveria um novo simbolismo? Então, eu olhava, da janela, nossa linda árvore no pequeno jardim. Ela nos consolava, de alguma forma. De dentro de casa (o único lugar permitido), em Blackheath, um dos vilarejos mais charmosos de Londres, eu e meu namorado procurávamos as mais variadas formas de sermos felizes. Morávamos num apartamento de esquina, no primeiro andar. A arquitetura dos prédios da rua é Georgiana, linda, imponente. Tínhamos uma decoração discreta, com exceção das cortinas de veludo vermelho, impedidas de serem arrancadas pela dona, quando nos alugou. As janelas enormes, daquelas que ocupam quase a parede inteira: as de vidro, depois uma janela de madeira por cima, e por último, as cortinas de veludo vermelho. Abrir tudo aquilo parecia um ritual! Na verdade, era, mas só descobri mais tarde.
E a gente se divertia, eu e Andrew. Há uma escadaria para chegar na porta principal, o apartamento que morávamos é o que fica à esquerda, onde há o pequeno jardim que citei. Do outro lado da escadaria, outro jardim, na outra parte da esquina. Nele, uma mesa onde todos os moradores do prédio (de quatro andares) se sentavam para um chá da tarde, um drinque, uma boa conversa. Mary, a senhora da Nova Zelândia, proprietária ou landlady, sempre ficava à nossa espera no final do dia. Bom, isso foi interrompido também! Passamos a nos falar apenas por telefone. Ou quando trazíamos compras de supermercado a ela.
Antes das restrições, porém, eu passava um tempo aprendendo sobre a cultura Haka, sobre as tradições da Nova Zelândia com a Mary. Ela gosta de vinho tinto, bastante. E depois da terceira taça, deixa a imaginação fazer parte das histórias dela. Eu amava ouvir todas, e anotar, lógico. Minha máquina de datilografia se sentiu bastante útil naqueles dias.
Eu e Andrew fazemos parte dos casais que sobreviveram àquele período de convivência e rotina forçada, fora do normal. Ele, baterista; eu, escritora. Eu o conheci num pub todo eclético, decorado com livros e violões, onde havia show ao vivo. Começamos uma grande amizade, que se tornou um relacionamento sólido. Nós dois enfrentamos juntos o período drástico de total restrição.
Viver em qualquer lugar do mundo e não poder sair de casa é terrível. Mas, viver em Londres sem a explorar é tortura na certa. Blackheath fica ao lado do deslumbrante parque de Greenwich, onde as infinitas e indefinidas cores de outono escancaravam, mas não havia ninguém para contemplá-las. Imagino que a natureza tenha provado sua humildade, vivendo cada detalhe, cada pequena mudança, mesmo sem “expectadores”. Comecei a observar movimentos diferentes nas cortinas vermelhas e aveludadas. Elas pareciam querer me dizer algo.
Primeiro, disseram podermos apenas caminhar ou correr no parque, sem parar em lugar nenhum, depois, nem isso. Aí, quando começaram a liberar de novo, eu já havia me acostumado a não sair, não respirar ar puro, não contemplar a natureza, não falar com ninguém. Andrew, além de baterista, trabalhava fazendo entrega de orgânicos, e foi uma das profissões que não parou. Então, eu passava o dia escrevendo. Posso dizer que a escrita foi uma forma de eu não me enlouquecer. Eu variava. Escrevia à mão, no computador. Porém, a minha forma favorita era na máquina de datilografia. Fiquei fascinada pelo barulho de cada tecla que batia. Aquilo me dava uma certa força, não posso explicar, mas funcionava assim. Enquanto eu batia as teclas, olhava a nossa árvore do jardim: o outono chegava ao fim, as folhas começavam a cair. Além disso, passei a ter altos diálogos com as cortinas vermelhas aveludadas.
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O inverno chegou, rigoroso, e trouxe a neve. Como foi lindo ver a neve cair naquele ano! Passei a observar detalhes que nunca havia me dado conta! Eu caía em questionamentos e reflexões, ao mesmo tempo, em que mergulhava no ato de escrever. Éramos eu, a neve e máquina de datilografia. Andrew sentia falta de tocar, mas compensava ouvindo músicas em sua vitrola. Como um bom colecionador de vinis, tem o bastante para ouvir anos! E talvez, pela primeira vez, numa noite qualquer, comecei a perceber e valorizar mais a beleza no ordinário! Pequenas coisas rotineiras começaram a ser lindas, importantes, e, na verdade, são mesmo!
E o Natal foi assim, só nós dois: vinho, a neve caindo, os vinis tocando Michael Bublé. A música “It`s beginning to look a lot like Christmas everywhere you go…” pareceu tão mais especial quanto naquele ano. Porque as pessoas fizeram questão de decorar os jardins com luzes, colocar suas guirlandas nas portas. Aquilo foi mais apreciado do que nunca.
Um dia, daqueles de véspera de Natal, a campainha tocou! Surpresa, ao abrir a porta, me deparo com o senhor do correio com uma entrega em meu nome. Agradeci e corri para abrir. Naqueles tempos difíceis, qualquer coisa diferente parecia festa! Não, era qualquer coisa. Foi a maior surpresa de minha vida! Um caderno com laço azul: eram as memórias de minha mãe, escritas à mão, e um humilde pedido para ver a possibilidade de editar. Possibilidade? Aquilo renovou as minhas forças, a minha vontade de trabalhar, de restabelecer minha missão neste mundo por meio da escrita. Foi como se um diamante houvesse chegado em minhas mãos. Que preciosidade.
Então, comecei a trabalhar na edição do livro “Minhas Pedras Preciosas”, lançado no site da Amazon por Judite Lopes de Oliveira, como autora independente. Foi um período de extrema reflexão. Eu, sequer, sabia do sonho de minha mãe em ser escritora. Até que, num de nossos telefonemas, ela insinuou. Foi o bastante para eu encorajá-la. A resposta veio muito mais rápido do que imaginei.
Eu e Andrew continuamos juntos, ainda em Londres, não mais em Blackheath. Moramos hoje no lado oposto, entre West Hampstead e Ripplewood. A nossa vida nunca mais foi a mesma. Passamos a dar valor em pequenas coisas que nos eram despercebidas. Quando ele vai às fazendas perto do País de Gales buscar os orgânicos, eu vou junto, e são dias maravilhosos. Entendi que o extraordinário somos nós que fazemos a partir do ordinário. As melhores fotos que já fiz são desses pequenos vilarejos ingleses pelos quais passamos. Muitas delas, publicadas em meu livro “Nossos Outonos”, que também nasceu naquele ano de restrição, mas só foi publicado dois anos depois.
E o inverno, juntamente com o Natal, continua a me surpreender! Daqui há pouco, a neve irá cair de novo, mais linda do que nunca! Ela tem um significado especial para mim, este ano! Minha preciosa mãe, com 82 anos, aquela que escreveu seu livro à mão, virá passar o Natal aqui em Londres, e eu, juntamente com minhas irmãs, estou preparando o lançamento oficial do livro dela. Posso afirmar, sem medo de errar, que essa é a maior realização, a mais importante, de toda a minha vida. Eu não a vejo há cinco anos!
Acredito em memória ancestral. Para mim, não há coincidências. Tudo tem um propósito! Abrir um caderno de laços azuis foi o mesmo que abrir nossa ancestralidade. Ela fala de coisas no livro, que eu nem imaginava. Algo foi mudado, rasgado, chegamos mais longe. Vejo as mulheres de meu antepassado unidas, todas se preparando para o lançamento do livro de “Judite Lopes de Oliveira”, minha primeira professora, aquela que vi libertar uma comunidade rural inteira do analfabetismo, numa escola de pau a pique.
Ah, as cortinas vermelhas! Elas me revelaram muita coisa no meio do balanço do vento, no contraste com a neve. A Mary não deixava os inquilinos tirarem as cortinas exatamente por isso. Ela sabia que havia um mistério ali. Parece de gerações passadas, antigas, muito antigas.
Papai Noel existe, sim, e ele se esconde atrás das cortinas de nossa vida. Só aparecerá para quem der crédito. Eu dei. Enquanto elas balançavam de um lado para outro, como uma música, vi meu passado, aquele antes de eu nascer. Vi possibilidades infinitas que moram em nossa imaginação, pobres de quem as ignoram. Somos de uma genealogia judaica, dos Açores, mulheres sábias, habilidosas, capazes de fazer a diferença no mundo!
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Quando desatei aquele laço azul, desatei nós que nos aprisionavam no passado, fiquei pronta para eternizar o legado de uma grande mulher que é digna de ser lembrada em futuras gerações. Fui escolhida para tamanha missão. E você, está pronto/a para desatar os laços ou nós que chegarem em suas mãos?
Desde que aprendi o valor da imaginação, da criatividade, nunca mais parei de obter respostas. Talvez meus ancestrais tenham alguma ligação com aqueles povos tribais Haka, vai saber! Sem falar que minha mãe é obcecada por cortinas. Nossa casa sempre teve cortinas suntuosas, de seda pura, daquelas que cobrem a parede inteira. Eu não entendia bem aquele zelo, atenção às cortinas. Havia um senhor que vinha em casa para retirar, levar para lavar, passar e vir montar de novo. Era quase um ritual. E, de repente, ouvindo as cortinas da Mary, tão imponentes, me veio à memória as cortinas da minha mãe.
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É que fui escolhida para “descortinar” a vida dela, num livro em que ela se desnudou de forma tão elegante e na medida certa, que me deixou maravilhada. Sou a “esmeralda” do livro “Minhas Pedras Preciosas”, no qual cada filho é uma pedra preciosa. Sou aquela que traz esperança. Ela, intuitivamente, já sabia.
A escrita liberta, desata laços, renova afetos, traz esperança. E, por meio dela, eu vi o silêncio de gerações ser desatado num laço de fita azul.
Por SUELI LOPES