Introdução
Ao longo da história do Brasil, a violação dos direitos dos povos originários é registrada em diversos estudos e pesquisas. Bancos de dados gerados por pesquisas científicas, relatórios governamentais, ONGs, observatórios nacionais e internacionais, demonstra que os povos originários jamais conseguiram estabelecer uma paz estável no território Nacional.
A instrumentalidade das diversas formas de violências mostra que a negligência do Estado no reconhecimento desses povos como cidadãos plenos de direitos criou um grande contingente de defesas nacionais e internacionais das lutas por reconhecimento. A intensificação das violências perpetradas contra os povos originários é uma marca que desafia o tempo histórico, desde a colonização. Repetem-se padrões de invasão e grilagem a terras, queimadas criminosas, desmatamento em grandes proporções, doenças, falta de escolas e negação de direitos.
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Stuckert argumenta nos “Diversos Relatórios sobre Violências contra os Povos Indígenas”, elaborados desde 2015 pelo Conselho Indigenista Missionário-CIMI (cimi.org.br), que permitem uma visão mais abrangente sobre as violências e tentativas de destruição da cultura indígena.
O CIMI é um organismo vinculado à “Conferência Nacional dos Bispos do Brasil” que, em sua atuação, conferiu um novo sentido ao trabalho da igreja católica junto aos povos indígenas. O Conselho visa testemunhar projetos de vida dos povos indígenas, denunciando as estruturas de dominação, violência e injustiça, praticando o diálogo intercultural e inter-religioso. Atua junto a mais de 180 povos indígenas em 26 estados e cinco regiões do Brasil, o que lhe confere credibilidade e importância quando se trata do tema.
As violências contra as culturas indígenas
A obra de referência para discutir o processo de aculturação dos povos indígenas, no Brasil, é “O Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro. Nessa obra o autor oferece as principais chaves analíticas para compreensão do processo da miscigenação e da diversidade que compõe as matrizes étnicas de nossas identidades. Nos permitindo ver de forma panorâmica e cheia de sentidos a expansão territorial das referências culturais que nos moldaram a partir da chegada dos estrangeiros por volta de 1500.
Mediante uma chegada agressiva e de novas doenças, foi letal, levando grandes contingentes da população preexistente à morte. Os registros da época demonstram que, ao nível biótico, foi travada uma guerra bacteriológica pelas pestes que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações locais. Há ocorrências de epidemias de varíola, de 1562 a 1563, que não atingem os portugueses, mas em três meses matam mais de 30 mil indígenas.
A imigração, com a introdução de novos contingentes humanos, principalmente europeus, árabes e japoneses, faz surgir a escravização dos povos indígenas. Houve um processo de articulação entre um novo mundo e um velho mundo europeu, onde as populações locais tornaram-se provedores de gêneros exóticos, cativos e coletores da nova riqueza: o ouro. Isto tem como consequência um novo plano étnico-cultural pela unificação da língua e costumes. Das relações com os negros africanos e os europeus, surge o novo brasileiro construído com os tijolos dessas matrizes.
A leitura crítica da “Obra de Darcy Ribeiro” e Florestan Fernandes permite compreender essa desventurada aventura, dos conflitos entre as tribos de diversas matrizes culturais. Nesse momento histórico, as tribos somavam, talvez, 1 milhão de indígenas, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes. Viviam do cultivo de alimentos, tais como: mandioca, milho, batata-doce, cará, feijão, amendoim, tabaco, abóbora, urucu, algodão, curauá, cuias e cabaças, pimentas, abacaxi, mamão, erva-mate, guaraná, etc. e de árvores frutíferas, como o caju e o pequi, por exemplo.
Ao longo da expansão civilizatória brasileira, segundo “Caio Prado Júnior”, não se concebeu um pacífico processo de formação socioeconômico e cultural. Nesse contexto, coube aos poderes constituídos arbitrariamente o controle violento sobre os processos de desenvolvimento que afetaram esses povos, suas terras, territórios e recursos naturais. Tudo isso permeado pela ausência de normatividade que regulasse a relação entre os envolvidos por violentos conflitos.
Na primeira Constituição de 1882, que vigorou até 1889 com a Proclamação da República, nenhuma menção é feita à pluralidade étnica. Somente em 1939 a diversidade étnica no Brasil entra em pauta. O presidente Getúlio Vargas instituí o Conselho Nacional de Proteção aos “Índios” Decreto 1.794/1939. Nasce, assim, a primeira preocupação com o reconhecimento da dignidade dos povos originários por meio de um perfil normativo.
No século XX é criado o Serviço de Proteção aos “Índios” (SPI) que operou em diferentes formatos até 1967. Foi substituído pela Fundação Nacional do “Índio” (FUNAI), que se encontra ativa até hoje. A pluralidade étnica, entretanto, vem ser reconhecida somente a partir da Constituinte de 1988, que devido às mobilizações das Nações Indígenas ao longo do território nacional na década de 1980.
Outras Constituições que normatizaram direitos ao longo da República, foram as de 1934, 1946, 1967 e Constituição de 1988 (Artigos 231 e 232). Outros instrumentos também normatizam direitos: Código do Processo Penal — Decreto Lei n. 2848 de 07/12/1940 e Decreto Lei n. 3.689 de 03/10/1941.
Apesar do reconhecimento normativo pelo Estado os povos indígenas continuam sendo alvo de ataques violentos, reflexo de uma política indigenista historicamente subordinada aos interesses políticos e econômicos dominantes, evidenciando a negligência do Estado ao longo do processo civilizatório e colonizador.
Passados 500 anos da colonização, e a inserção de normas que supostamente garantem direitos, não há registros confiáveis de um convívio pacífico e nem mesmo socialização equitativa entre os população civil e os indígenas. Não há indícios de gestos de integração social ou espírito de coexistência cultural. O que ocorreu foi um processo de transformação cultural caracterizado pelo abandono da cultura da liberdade e a efetivação gradual e sedimentada de uma cultura do medo. Não deixaram registros da criação de situações desejadas de paz, segurança e normalidade.
Considerações finais — Brasil Indígena na atualidade: violências e genocídio cultural
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Ainda possui ecos no Brasil contemporâneo a luta cotidiana pela sobrevivência e reconhecimento pelos povos indígenas. O limitado acesso a direitos e as violações da dignidade estão sendo recorrentemente mostrados na mídia. Flashes da imprensa, em 2020 a 2022, continuam o registrar torturas, estupros de crianças, assassinatos, invasões de terras e a falta de acesso aos serviços de saúde. Essa realidade aponta que os problemas vivenciados por estes povos se repetem e avolumam. Atualmente, a luta por reconhecimento começa a ser considerada a importância de novos mecanismos de proteção às comunidades, cultura, territórios e demarcações de terras.
O Marco Temporal, que deveria ser o mais promissor mecanismo de proteção de territórios e culturas, está se transformando na principal ameaça contra os povos indígenas do Brasil. A pressão do agronegócio e da bancada ruralista no Congresso Nacional visa estabelecer uma data a partir da qual um território pode ou não ser considerado terra indígena. Não há fundamento jurídico para a tese do retrocesso que visa a sobrepor os interesses de alguns em detrimento dos direitos de outros. Esse Marco Temporal, coloca em risco territórios já demarcados e consolidados, apontando para o aumento de conflitos fundiários. O Ministério dos povos indígenas registra a existência de 832 terras indígenas, por todo o País, que aguardam providências do poder público para sua regularização (equivalendo a 64% de um total de 1299 terras indígenas).
Além de colocar em risco as florestas brasileiras, essa tese coloca em risco a manutenção de suas culturas indígenas, a garantia de seus territórios e a garantia sua sobrevivência de muitos povos. O MPI registra a existência de 115 povos indígenas isolados, sendo 114 deles na Amazônia. Grande maioria deles vive em terras demarcadas criadas para sua proteção. Modificar a política de demarcação de territórios coloca em risco a sobrevivência física e cultural desses povos.
Dados do Atlas da violência (2023) e do Anuário da Secretaria de Segurança Pública (2023) corroboram os estudos de Stuckert, Valente, Darcy Ribeiro e Caio Prado Junior mostram que a Violência Cultural pela imposição de práticas culturais não indígenas, destruição de objetos sagrados e proibição de rituais tradicionais, caracterizando um processo de genocídio cultural. As violências praticadas visam a aniquilação cultural, apagando as tradições e formas de vida dos povos indígenas, também conhecido como genocídio cultural, esse processo pode ser tão destrutivo quanto a morte física.
A perda de territórios ancestrais, impacta profundamente suas estruturas sociais e culturais. O Estado e agentes econômicos entre 2019 a 2022 interferiram brutalmente nas culturas e territórios indígenas, desrespeitando suas formas de vida e impondo uma lógica de integração forçada e exploração. É muito relevante a abordagem intersetorial para enfrentar e mitigar os impactos da colonização sistêmica, promovendo uma justiça reparadora que respeite e valorize as culturas e modos de vida indígenas.
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A resistência indígena é uma constante na história brasileira, desde as revoltas contra os colonizadores até as mobilizações contemporâneas por direitos territoriais e culturais.
Os dados do Atlas da Violência de 2023 e Relatório da Secretaria de Segurança Pública de 2023, mostram somente os índices de letalidade. Mas os diversos estudos permitem verificar que as violências perpetradas contra os povos indígenas possuem duas dimensões, a material e a simbólica, que agem simultaneamente e decorrem da deterioração das condições de vida, das violações de direitos e do genocídio cultural.
Por EDNA BRENNAND