O Natal sempre foi uma festividade apreciada por muitos, uma das datas mais esperadas do ano. Dizem ser nessa data que os corações das pessoas têm mais esperança, vontade de auxiliar o próximo, presentear aqueles que amam e fazer as pazes com aqueles que de alguma forma magoou ou foi magoado. Bem… Pelo menos é isso que todos esperam, mas a realidade é bem diferente: o que vemos são pessoas fazendo o bem apenas para fotografar e registrar em suas redes sociais provando que realmente são boas; outras fazem as pazes apenas para se sentirem bem quando escreverem aqueles textos lindos, cheios de frases motivacionais tiradas de alguma fonte duvidosa ou de alguma inteligência artificial. Árvores de Natal gigantes para suprir algum sentimento de ego recolhido e claro para disputar com os outros quem fez os enfeites melhores e presentes caros comprometendo o salário de meses apenas para provar que se pode comprar, e às vezes a maioria é para pessoas que nem gosta tanto assim! Tudo para exibir nas mídias e no meio em que vivem que estão bem, que podem, que o luxo e o poder são para todos.
Mas, sabemos que a realidade não é essa. O que temos são corações vazios, egos inflados e aqueles que realmente precisam de ajuda, são negligenciados, pois agora tudo é: PROBLEMA DO OUTRO, NÃO É PROBLEMA MEU! Ainda tentam disfarçar, mas o egoísmo já virou moda e tudo que importa é exibir a falsa felicidade nas redes sociais.
Mesmo em meio a esse caos de poderes aquisitivos, ainda existiam pessoas que queriam desfrutar do verdadeiro espírito de Natal. Laura era uma dessas pessoas, durante todo ano fazia trabalhos voluntários, arrecadava doações e unia pessoas que realmente queriam ajudar.
E diante desse cenário caótico e entre egos inflados, Lara, neste ano, convenceu o marido a passar as festividades de fim de ano em uma cidade pequena, sem muito luxo, apenas na companhia dos entes, verdadeiramente queridos.
A escolha foi uma pequena cidade do interior, charmosa e com poucos habitantes, onde todo mundo conhecia todo mundo e os turistas eram recebidos como amigos de longa data. Rômulo, marido de Laura, nunca havia presenciado algo igual, todos na cidade cumprimentavam mutualmente, eram gentis.
Na pequena pousada, foram recebidos por D. Dolores, uma senhora de meia-idade, muito simpática, com um sorriso contagiante. Seus filhos, Mario e Adalberto, fizeram questão de ajudá-los com as malas até os quartos e explicar sobre as celebrações daquele Natal.
— Neste Natal teremos muita coisa boa, teremos uma ceia na praça principal onde todos estão convidados, inclusive os turistas e haverá queima de fogos. — disso Adalberto animado
— E não esqueça o coral da igreja, dizem que esse ano será a melhor apresentação de todas. — continuou Mario. Rômulo era o mais animado, olhando cada detalhe do panfleto que eles haviam pegado na recepção.
— Olha, querida, montaram uma casa do Papai Noel. Podemos levar a Clara.
— Com certeza, amor! Mas antes, você vai me ajudar a desfazer as malas.
E assim aconteceu. No final do dia, foram visitar a casa do Papai Noel, aproveitaram para experimentar as tortas de frutas da quitanda e por fim foram auxiliar os voluntários a terminar de enfeitar a praça para a ceia de Natal. Laura estava feliz vendo a família se divertir. Clara, que sempre foi uma criança tímida, estava saltitante com as novas amiguinhas, seu marido que sempre foi um homem sério de negócios, conversava alegremente com os moradores e até se deu ao luxo de tomar uma cerveja, enquanto pendurava os enfeites na árvore da praça. Seu coração se enchia de alegria com aquela cena. Era tudo que ela queria para aquele ano.
No dia seguinte já era véspera de Natal, então a família resolveu levantar cedo para aproveitar o máximo daquele dia. Quando desceram para o café, a TV estava ligada e informando que em vários países o caos reinava. Várias anomalias climáticas devastaram cidades inteiras, lugares onde não chovia há meses, estavam debaixo d’água. Pessoas desabrigadas, desaparecidas, calotas polares estavam derretendo mais rápido que os especialistas previam, onde era sempre frio, os termômetros estavam bem acima da média, fazendo com que os hospitais ficassem lotados de pessoas com insolação. Rumores de que a bolsa de valores dos países mais ricos, havia entrado em colapso e muitos investidores perderam suas fortunas, multinacionais declarando falência.
— Deus me livre disso tudo, até parece o fim do mundo. — disse D. Dolores, desligando a TV, para que as notícias ruins não interferissem no clima alegre do ambiente.
— Você nem ouse ir para a frente do computador saber sobre seus clientes. — Laura falou com o marido, já prevendo que ele ficaria preocupado com a bolsa de valores.
— Querida, é preciso e você sabe disso! Acha que saiu barato essa nossa viagem? Preciso saber se estamos seguros financeiramente, os meus clientes investem conforme as probabilidades que faço para eles.
— Eu sei, meu bem, mas hoje não. É véspera de Natal e viemos para essa cidade, para não nos preocupar com essas coisas. Não há nada que você possa fazer agora.
Mesmo contrariado, Rômulo escutou a esposa, mas a mente de contador trabalhava intensamente e já calculava quanto dinheiro teria perdido, e como isso afetaria suas finanças; as parcelas da casa nova, a escola particular e até mesmo as doações generosas que sua esposa fazia para a caridade e a proposta para se tornar sócio do clube de Elite.
Era noite de véspera de Natal e todos estavam na praça central, o céu estava estrelado, a lua brilhava em um tom de azul que nem precisaria das luzes artificiais, de tão brilhante que estava. Uma brisa suave fazia as folhas balançarem em seu próprio ritmo trazendo o aroma marcante dos Ipês que rodeavam a cidade. As pessoas vinham de todas as direções, conversando alegres. Laura sentia uma paz como há muito não ocorria.
No palanque montado na escadaria da igreja, o prefeito anunciava que os fogões começariam em poucos instantes e que seria o melhor show em muitos anos. Enquanto isso, as pessoas se deliciavam com o banquete oferecido, eram gostosuras que não acabavam mais. Os mais velhos comentavam sobre a fartura naquela cidade; os mais novos estavam surpresos com toda aquela festa, afinal, ali era uma cidade pacata, onde nada acontecia.
Naquele local, o prefeito iniciava a contagem regressiva para meia-noite… 10… 9… 8… enquanto a contagem acontecia, o céu estrelado dava lugar para nuvens espessas, o vento suave e confortante, levantava os forros das mesas, guardanapos bailavam no ritmo, as folhagens se agitavam. De repente, o clima agradável mudou e um arrepio/ calafrio percorreu a nuca dos moradores… Laura ouviu alguns pais gritarem aos seus pequenos que estavam distantes, outros tentando segurar as toalhas de mesas para não derrubarem a comida. E contagem, mesmo no caos, prosseguia… 4… 3… 2… 1
Sem explicação, uma chuva pesada começou a cair na praça, e o silêncio era absoluto, exceto pelas pesadas gotas que se jogavam contra as superfícies. Laura olhou em volta e percebeu que todos estavam paralisados; apenas ela conseguia se mover sem problemas entre aqueles corpos inertes. A primeira preocupação era achar a filha, que estava perto do parquinho e que não demonstrou nenhuma resistência quando a mãe a pegou no colo para levá-la para mais perto do pai, garantindo assim que não perderia nenhum dos dois de vista.
Enquanto Laura pensava em uma maneira de acordar o marido, uma risada corta os céus, como se fosse um raio cortando a escuridão infinita que apagou a luz azul da lua. Nesse momento ela olha para a torre da igreja, de onde o clarão do raio havia vindo e vê apenas a sombra de um ser gigante com as patas pousadas sobre a torre fazendo pedaços de concreto cair pesadamente pelo chão. Pessoas que estavam perto foram atingidas, outras esmagadas pelos destroços.
Em meio àquela bagunça, Laura olha em direção à igreja, e seus olhos não acreditam no que veem: um ser dominado pela escuridão cujas asas abertas faziam o vento bater ainda mais forte. As mesas voaram para todos os lados e algumas pessoas se chocaram contra as vidraças das lojas. Mesmo paralisados, era possível ver o desespero nos olhos daqueles que se mantinham de pé. A criatura tinha chifres enormes; os pés pareciam garras cobertas de sangue e o grito fazia os pelos de qualquer um se arrepiar.
— Porque, você está causando toda essa destruição? Essas pessoas são inocentes! — gritou Laura, o mais alto que pode.
Com olhar frio, o ser demoníaco volta a atenção para a Laura, que se coloca alguns passos à frente da família, torcendo para não serem notados.
— Inocentes? — A gargalhada sombria abria um novo clarão cortando o céu tempestuoso. — Ninguém nesse mundo é inocente, ninguém nesse mundo é bom. Eles destroem por puro prazer tudo que foi lhes dado de bom grado; são egoístas, presunçosos e ainda se acham donos de tudo.
— E quem é você para decidir sobre tudo isso?
— Quem sou eu? É muita petulância, mesmo! Eu que pergunto quem é você, ninguém escapa da paralisia, por que você não está congelada de medo como os outros?
— Isso não tem importância. Me diga! Quero saber quem é você?
— Eu? Sou a escuridão que vive no mais profundo dos corações humanos, nos redutos mais escuros da mente humana… Sou o desejo mais sombrio de cada um deles. EU sou a deusa do Caos e vim extirpar a vida desse planeta.
— Você não pode fazer isso, eu te imploro, minha irmã!
— Irmã? Você não pode ser a minha irmã!
Em meio a incredulidade da deusa do Caos, Laura mostra a sua verdadeira forma, um ser iluminado, envolto de uma luz clara, asas tão longas quanto a da irmã, vestida com um longo vestido azul-claro, semelhante às mais puras nuvens do céu. Com um aceno de sua mão, a chuva passa e as estrelas voltam a brilhar.
— Você não pode ser ela!
— Sim, eu sou sua irmã, sou eu a Benevolência, há muitas eras vim para terra a fim de aprender e compreender suas vidas.
— Então sabe que essa raça não tem salvação, tem que ser destruída.
— Nem todos são assim. Entendo a sua fúria e o peso que carrega sobre suas asas, mas existe bondade nos humanos, eles apenas precisam de orientação e uma dose de compreensão.
— O que me pede é impossível e a destruição já começou.
— Então pare! — gritou Benevolência em meio às lágrimas.
— E por que eu faria isso, irmãzinha?
— Olhe lá embaixo, perto da árvore de Natal. São a minha família — marido e filha — eles são pessoas boas.
— Não é o que o coração do seu marido me diz. — O sorriso cruel atravessa os lábios da Deusa do Caos com um gosto de satisfação.
— Minha irmã, querida, eu sei bem o que se passa no coração dele. — havia ternura em seus olhos. — Ele, como muitos, busca apenas o conforto e tranquilidade que a vida terrena permite que eles tenham. Para eles é impossível acreditar no mundo superior, se tudo que conhecem é a fome, o desespero, a arrogância e a ganância, mas mesmo com tudo isso, eles escolheram serem bons. Buscam ser melhores dentro daquilo que é ofertado. Se eles destroem o próprio lar, ensino-os a cuidar do jardim imenso que a terra é, que através desses frutos, sempre terão como se alimentar.
— Belas palavras, minha irmã, mas a resposta ainda é não! Todos serão mortos.
Mais uma vez a chuva pesada começou a cair, ventos fortes derrubavam as árvores, raios poderosos destruíam as construções. Caos estava ferida demais para parar. Benevolência não poderia ver a família ser morta e não podia parar Caos, assim, ela conjurou a magia antiga, antes do tempo saber contar o tempo, para que as pessoas, não só daquela cidade, mas de todo o mundo, que tivessem o mínimo de amor em seus corações fossem salvas da Deusa do Caos.
— Você não pode fazer isso, é muito poder! Até para você. — gritou Caos, percebendo o tamanho do sacrifício que a irmã estava fazendo. — Você irá morrer se continuar com isso.
— Eu não me importo, desde que a minha família esteja segura, eu não me importo com o que vai acontecer comigo.
Em uma explosão de luz, o corpo celestial de Benevolência se espalhou por todos os cantos, restando apenas alguns fragmentos, só o suficiente para se despedir da sua família. Com o poder manifestado, todos voltaram ao normal.
— Querido! Você está bem! Estou tão feliz por vocês estarem vivos. — disse Laura, quando voltou à sua forma humana.
— Laura, o que está acontecendo? O que foi tudo isso? Precisamos sair daqui imediatamente.
— Não há tempo para explicações, meu amor. Quero apenas que saiba que te amo demais e sempre amarei. Quero que você se cuide e cuide bem da nossa filha.
— Querida, o que você está falando? Precisamos sair daqui.
— Eu sei, Rômulo, apenas me prometa que vai cuidar da nossa filha. Me prometa.
— Tá bom, amor, eu prometo, mas por favor, vamos embora.
— Minha jornada nesse plano termina hoje, meu bem, para que vocês e todos os outros se salvem, tive que usar todo o meu poder. — Percebendo que não tinha mais tempo, ela beija calorosamente o marido e abraça apertado a filha.
— Bebê mais lindo, mamãe te ama muito, mas muito mesmo!
— Eu também te amo, mamãe!
— Terei que fazer uma viagem, muito, muito longa. Mas prometo que a sempre visitarei em seus sonhos, sempre estarei em seus sorrisos e você sempre verá a minha face naqueles que você ajudar.
— Está bem, mamãe! — A criança, sem entender direito o que estava acontecendo, dá um abraço apertado na mãe. Mesmo em seu coração inocente, ela sabia que, de alguma forma, nunca mais veria a mãe.
Ainda nos braços da filha, a verdadeira forma de Laura apareceu e ela começou a brilhar subindo aos céus. Foi quando o marido se deu conta que sempre estivera casado com uma deusa.
Que sacrificou tudo para salvá-los e salvar a humanidade.
Por LADYLENE APARECIDA