Português sem Fronteiras
Entre Repolhos, Chuchus e Carimbos no Passaporte
A língua portuguesa é viajante. Ela pega uma mala, um desejo e vai. O passaporte, cheio de bilhetes, carimbos e sinais… Desde o começo, foi assim. Quando o latim vulgar, carregado nos lábios de soldados, mercadores e navegantes romanos, espalhou-se pela Península Ibérica, encontrou novas paisagens, novos sotaques, novas formas de existir. Misturou-se às vozes locais, bebeu das tradições, moldou-se como um rio que, ao seguir seu curso, ganha a cor da terra que atravessa.
O tempo passou, e o latim se transfigurou. Foi galego-português, transformou-se em português arcaico, evoluiu para o clássico e, enfim, floresceu no nosso português moderno. E a cada travessia, a cada nova cultura que a acolheu, a língua se reinventou. Absorveu gestos, cores, expressões. Expandiu-se como o vento que sopra nas velas das caravelas, levando consigo palavras que seriam semeadas em terras tropicais, africanas, asiáticas.
Imagem de Immortal70 por iStock
A língua é viva. Ela respira, ela escuta, ela aprende com quem a fala.
E há palavras que fazem um caminho curioso. Algumas pegam um voo direto e há outras que vão fazendo escalas e chegam cheias de histórias para contar. E quem diria que uma delas seria… chuchu?
Sim, chuchu!
Parece banal, mas pense bem: quantos ditados populares você conhece com essa palavra? Eu conheço vários: “Chuchu beleza”, “Forte pra chuchu”, “Bom pra chuchu”, “Sem graça igual chuchu” e aquele que todo mundo conhece, mas evita repetir: “Vai dar mais que chuchu na cerca!”
Pois bem, eu queria entender como um fruto tão discreto se enraizou tão profundamente em nossa língua. O chuchu (Sechium edule), primo da abóbora, do melão e da melancia, nasceu sob o sol da América Central e já era cultivado e apreciado pelos astecas muito antes de os europeus sequer imaginarem sua existência.
Quando os colonizadores chegaram ao Novo Mundo, levaram consigo sementes, especiarias e, claro, palavras. O chuchu embarcou nessa travessia e, no século XVIII, chegou à Europa. Em 1760, foi descrito oficialmente pelo botânico holandês Nicolaus Joseph von Jacquin, que registrou seu nome científico. Mas, três anos depois, o francês Michel Adanson tentou batizá-lo de chocho, um termo que, apesar de não ter vingado na nomenclatura botânica, acabou ressoando na língua falada.
Imagem de Mushroomthejournal.com
E foi assim que a confusão linguística começou. O “chocho” francês encontrou um caminho até o português brasileiro, onde se transformou em chuchu, e a palavra, como a planta, se espalhou sem esforço, enraizando-se nos quintais e nas expressões populares do nosso idioma.
Então, eis que, na minha última viagem à França, sentei-me em um pequeno café, à sombra imponente de Notre Dame, cujas torres, ainda em restauração, pareciam sussurrar histórias de tempos imortais. O cheiro do café recém-passado misturava-se ao perfume das folhas úmidas do outono parisiense, e em minhas mãos um pão crocante, recheado de algo que eu não sabia nomear, mas que trazia o sabor da tradição.
Imagem de Urbazon por iStock
Nesse instante, entre um gole e outro, meus ouvidos captaram uma palavra solta no ar: “chu”. Um som breve, arredondado, como o eco dos sinos da catedral ao longe. Meu olhar se ergueu instintivamente, e ali, entre conversas apressadas e risadas discretas, percebi que falavam sobre a massa choux.
De repente, tudo se conectou. Sob o olhar atento das gárgulas de Notre Dame, aquelas mesmas que viram séculos de línguas e dialetos se transformarem, eu viajava não apenas pelas ruas de Paris, mas também pela musicalidade da palavra “choux”.
Diante da catedral que resistia ao tempo e às chamas, pensei: as palavras, assim como as grandes construções, também são reconstruídas, atravessam eras, erguem pontes entre culturas e renascem em novos significados.
Ali, em Paris, choux significa repolho. A massa choux, leve e delicada, feita com manteiga, água, farinha e ovos, é a base dos profiteroles e éclairs, pequenas joias da confeitaria francesa que, apesar da leveza, sustentam séculos de tradição. Mas por que essa massa, tão fina e delicada, leva o nome de um vegetal tão expressivo?
A resposta está na forma. Quando assada, a massa choux se expande, formando pequenas bolhas douradas, arredondadas como um repolho. O nome não veio do sabor ou da origem dos ingredientes, mas sim da aparência que a massa toma ao crescer no forno. ‘Massa repolho’, quem diria!
A conexão ficou clara: as palavras viajam, se adaptam e, muitas vezes, se transformam pelo som, pela forma, pela coincidência fonética. De uma massa de confeitaria a um fruto tropical, do repolho ao chuchu, as palavras se entrelaçaram em um jogo de formas e sons, recriando significados, porque a língua, assim como a cultura, nunca permanece imóvel – ela se expande, cresce, se reinventa.
De volta à cafeteria…
Imagem de Ansilia por Freepik
Voltei no tempo, como quem rebobina um filme de viagens. O chuchu chegou à Europa no século XVI, um imigrante vegetal vindo das Américas, silencioso e abundante. O nome “chocho”, que depois virou “chuchu” no Brasil, convivia ali, na sonoridade do idioma, com a palavra de peso: “chou”, o repolho.
E foi então que entendi a conexão, tão doce quanto inesperada. Os franceses, com seu apreço pelo lirismo, costumam chamar seus filhos, seus amores e seus amigos de “mon chou” – “meu repolho”. Parece estranho? Para nós, brasileiros, talvez. Mas na França, repolhos não são apenas hortaliças; eles guardam um mistério pueril. Segundo a tradição, era nos campos de repolho que se encontravam os bebês, trazidos não pela cegonha, mas brotando entre as folhas, como pequenos milagres da terra.
A mesma lógica que nos faz, aqui, repetir sílabas para tornar o carinho mais doce – Lulu, Dudu, Lili – levou os franceses a pegarem “mon chou” e transformá-lo em “mon chouchou”, um diminutivo que significa “meu queridinho”, “meu favorito”.
E adivinhe só? O “chouchou” atravessou o oceano.
Imagem de Nikada por iStock
A língua francesa, que por tanto tempo nos serviu de musa, que nos deu o requinte dos bijoux, dos souvenirs, das femmes fatales, também nos deu o “chouchou”. Mas, como bons brasileiros, abrasileiramos a coisa toda. O som parecia o mesmo, e como já tínhamos o nosso chuchu, a confusão estava armada. O “chouchou” virou chuchu e, na escrita, ‘xuxu’ também. E assim, sem que ninguém percebesse, o carinho francês se misturou à nossa linguagem cotidiana.
Então, veja só a ironia: quando dizemos “Eu te amo pra chuchu”, evocamos um fruto insosso, humilde e generoso, que cresce sem exigências, abraçando qualquer solo. Mas quando dizemos “Meu chuchuzinho” ou “ela é um chuchu”, sem saber, estamos sussurrando um afeto que veio de longe, um carinho herdado do francês, lapidado entre os cafés de Paris e os campos de repolho da tradição.
Assim as palavras viajam. Algumas cruzam oceanos embaladas por navios mercantes, outras pousam silenciosas em páginas amareladas, esperando ser lidas. Algumas se espalham pelas ruas de Montmartre em versos de poetas errantes, outras saltam das bocas apaixonadas nos bares do Rio de Janeiro. Elas deslizam entre sotaques, se transformam no tempo, dobram esquinas, atravessam pontes – da Pont des Arts à ponte sobre o Rio São Francisco.
No fim, o que importa não é apenas de onde vieram, mas como aprendemos a dizê-las com o coração.
E eu, que nem gosto de chuchu, acabei amando essa palavra. Porque, no fundo, a língua portuguesa é isso: uma viajante incansável, sempre pegando carona em outras línguas, mudando de roupa, trocando perfumes, misturando sons e sentidos. No epílogo, quem está cheio de carimbos, histórias e sinais no passaporte não sou eu, é ele – o nosso idioma.
E você?
“J’ai aimé et toi?”
“À bientôt et au revoir!”
Para viajar:
Palavra em Francês |
Significado em Português |
“À bientôt” |
“Até breve” |
“Au revoir” |
“Adeus” ou “Até logo” |
“Bijoux” |
“Joias” |
“Choux” |
“Repolho” |
“Chouchou” |
“Queridinho” ou “Favorito” |
“Éclair” |
Tipo de doce francês feito com massa choux, geralmente recheado e coberto com chocolate |
“Femme fatale” |
“Mulher fatal” (usado para descrever uma mulher sedutora e misteriosa) |
“J’ai aimé et toi?” |
“Eu gostei, e você?” |
“Mon chou” |
“Meu repolho” (usado carinhosamente como “meu querido” em francês) |
“Massa choux” |
Massa de confeitaria francesa usada em doces como profiteroles e éclairs |
“Profiterole” |
Doce francês feito com massa choux, geralmente recheado com creme e coberto com chocolate |
“Souvenir” |
“Lembrança” ou “Recordação” |
Por ALINE ABREU