O curta “Happiness (Steve Cutts) é uma animação que questiona a obsessão com a felicidade e a ideologia consumista, levando ao entendimento que a obsessão com a “felicidade” é uma marca das sociedades de consumo atuais. Entende-se que a “felicidade” depende, da posse e acumulação de bens materiais ou da incessante busca por “sucesso”. Dessa forma ela deixa de ser compreendida como algo subjetivo e momentâneo e passa a ser perseguida como um estado de “felicidade plena”, levando a superação de todos os obstáculos a qualquer custo.
A experiência de mal estar agora é repudiada e sempre associada ao sentimento de negatividade. Há uma intensa oferta de prescrições sobre como viver uma vida feliz e saudável, passando a se constituir um novo lugar para o sofrimento. Há uma manipulação das emoções, até a exaustão, através da publicidade e do marketing. A felicidade foi transformada numa mercadoria ou bem de consumo. Entende-se a essa busca incessante por felicidade em um contexto social e econômico que favorece justamente o oposto, a infelicidade.
Historicamente o progresso da civilização sempre esteve relacionado ao aumento da felicidade, com a disseminação do ideal do homem sem medos, senhor de si. O projeto moderno exalta a plena realização das conquistas do homem e de sua autonomia. A partir do século XX o projeto moderno começa a sucumbir, a partir da arrogância oriental e das guerras no mundo ocidental, trazendo o sentimento de desconfiança sobre os efeitos e benefícios do “progresso”.
Diante desse sentimento de descrença, os indivíduos contemporâneos não encontram uma referência confiável, pois diante do descrédito das antigas figuras de autoridade, não conseguem se encontrar em total liberdade, e acabam submetidos atualmente a uma “nova divindade”, surgindo sutilmente como uma nova forma de religião e que diante do vazio foi se instalando e tornando-se uma grande potência, o chamado “Divino Mercado”.
Nesse contexto o próprio lugar da experiência de mal-estar se transforma, e a relação com o sofrimento também se altera. Surge a pós-modernidade e seu estado da cultura resultante das transformações ocorridas no final do século XIX, diversos campos foram afetados, principalmente às regras de legitimação da ciência situadas em relação à crise das grandes narrativas. Consolidou-se um cenário cibernético e informacional, voltado para critérios de operatividade tecnológicos e de eficácia nos resultados.
Agora o que está em questão não é mais o empenho de busca da verdade, mas a busca do desempenho ótimo. Nesse cenário o homem busca antes ser antes de tudo produtivo e eficaz, empurrando o sofrimento para um lugar de desvalorização e como destruidor do indivíduo de alta performance. Em uma cultura que quer romper com todas as categorias ligadas ao limite exaltando a liberdade, o bem-estar e a felicidade, o lugar do mal-estar passa a ser extinto, dando espaço aos valores e ideais da expansiva sociedade de mercado.
“Happiness” incentiva a reflexão se podemos ser felizes apesar do consumismo exagerado, falta de liberdade e da supervalorização do dinheiro e do status social. É uma crítica sobre a vida moderna e como ela pode ser horrível. Multidões, mentalidade de massa, consumismo, drogas, medicalização da vida, entre outras coisas. A sinopse do vídeo no YouTube é a seguinte, traduzindo para o português: “Uma corrida de ratos é uma corrida sem fim, auto-destrutiva ou inútil. Isso ecoa a imagem de ratos de laboratório correndo através de um labirinto para encontrar o queijo. Se parece muito com a corrida da sociedade para avançar financeiramente. O termo é comumente associado a um estilo de vida exaustiva, repetitiva e que não deixa tempo para relaxamento e diversão.”
Diante do contexto histórico o projeto iluminista não impediu a devastação e os horrores causados pelas duas grandes guerras e dos campos de extermínio no continente europeu. Desde então, houve um avanço do paradigma cibernético como uma busca de respostas aos escombros deixados pelo desencanto com a razão iluminista. Nesse momento há uma necessidade iminente de superação do desencanto que a racionalidade humana deixou no rastro do pós-guerra. Todos esses fatos conduzem ao surgimento de um novo paradigma que conduziu a ascensão da tecnociência. O discurso tecnocientífico pragmático firmou pouco a pouco as novas bases para a solução dos problemas humanos. Emerge um discurso potente sobre as noções de eficácia, de boa performance e de gestão otimizada dos sistemas humanos e não-humanos.
Na versão contemporânea, a ênfase desse projeto torna-se radial e a busca pela felicidade se consolida como um anseio que depende da performance e da eficácia de cada pessoa em administrar sua vida. A “felicidade” passa a ser algo imperativo e passa a ser um conceito que compõe a definição de saúde, tornando-se o objetivo primordial nas sociedades atuais. A busca por “felicidade” passa a ser entendida como um anseio por auto-realização que se torna possível através da sociedade do consumo.
O homem contemporâneo deve ser autônomo e saudável numa sociedade centrada no bem-estar. A vida equilibrada, feliz e saudável se transformou num ideal de estilo de vida. Os padrões de saúde e bem-estar definem o conceito de qualidade de vida, e esses passam a ser perseguidos incessantemente, sendo expandidos e disseminados através de estímulos cada vez mais explícitos no mundo da propaganda. A autoconfiança, o entusiasmo, à adaptação ao ambiente, flexibilidade, eficiência, animação e bom humor, passam a ser padrões comportamentais relacionados aos valores de felicidade, de bem-estar e de estilos de vida saudáveis.
Nesse novo contexto, a experiência do sofrimento torna-se intolerável. Na busca imperativa de bem-estar os indivíduos tornam-se mais frágeis frente ao mal-estar. A experiência do mal-estar passa a ser considerada como um sinal de fracasso individual, enfatizando a ideia de uma cultura onde o sofrimento é patologizado e a felicidade torna-se imperativo de vida. Em “Happineas” a interação do rato com os outdoors que vendem a bebida como felicidade, e depois os remédios, trazendo elementos gráficos novos e agonizantes. Outro momento muito marcante é a cena da liquidação com a luta dos ratos para comprar, mostrando o momento onde um rato mastiga o braço do outro, de uma forma muito medonha e violenta. A cena final retrata o trabalho como uma armadilha, onde o dinheiro é a isca.
No texto em questão há uma crítica as terapias comportamentais, que são vista como um dos dispositivos mais difundidos para lidar com o sofrimento, alegando que existe uma sedução nessas abordagens por sua simplicidade e por sua eficácia no tratamento de quase tudo. Os autores alegam que nesse tipo de intervenção, não há um olhar voltado para a experiência da vida da pessoa em sofrimento para além do episódio patológico. Porém os grandes teóricos das terapias comportamentais afirmam que todo indivíduo é biopsicossocial, e dessa forma é único e dotado de sua história, suas singularidades que refletem dentro das pluralidades da convivência social.
Partindo desse pressuposto, é notório que as técnicas aplicadas pelas terapias comportamentais tendem a chamar atenção por sua eficácia, porém não deixam de enxergar o indivíduo dentro do seu contexto, é necessária a escuta, o processo de anamnese, as entrevistas com as pessoas mais próximas, as observações e a descoberta de cada gatilho e em que momento da vida dessa pessoa eles surgiram. Dentro das TC não há uma receita de bolo pronta, aplicável a cada pessoa, e entende-se que o episódio patológico é reflexo de algum acontecimento a longo, médio ou curto prazo.
Busca-se entender as bases genéticas da família, o repertório comportamental do indivíduo, suas limitações e habilidades, para que somente após a análise e estudo de todos esses fatos e variáveis possa se entender qual a demanda primária e as demais demandas secundárias que trouxeram o indivíduo a condição de adoecimento atual. Somente após todas essas etapas se estabelece o plano individual de atendimento, com as tentativas de sensibilização e as técnicas específicas para as suas necessidades, sempre de uma maneira assertiva, mas respeitando o tempo de cada indivíduo não esquecendo que ele é o protagonista da sua história, sendo essa a maior forma de cuidado.
É certo que os indivíduos estão sofrendo com a inflexão na responsabilidade de administrar suas próprias vidas, seus próprios interesses, sua segurança, suas preocupações e projetos de felicidade. Cada um é como se fosse empresário de si mesmo, proprietário de si, e cada um escolhe seu estilo de vida para ser feliz. Nesse contexto, a tecnologias farmacêuticas de drogas lícitas tem sido o grande auxiliar do projeto da conquista da felicidade. Os chamados facilitadores químicos são responsáveis por uma produção imediata de prazer, e atuam como grandes amortecedores de preocupações, provocando um embotamento emocional e causando a sensação de independência, afastando o indivíduo das pressões e cobranças do mundo real, e encontrando refúgio em um mundo próprio, dentro de uma realidade ideal.
Vale salientar o perigo do excesso e dos efeitos de anestesiar todo tipo de dor, pois há a necessidade de se encontrar estratégias para lidar com o sofrimento sem utilizar mecanismos de fuga. Sabemos que em casos de transtornos mentais a terapia medicamentosa com psicotrópico é muitas vezes indicada como uma das formas de auxiliar o indivíduo durante esse processo de adoecimento, oferecendo uma redução dos sintomas, a preservação da integridade e melhoria na qualidade de vida. Porém atualmente o número de pessoas que fazem uso desses “amortecedores de preocupações” vai muito além da quantidade de diagnósticos existentes, além dos outros tipos de drogas lícitas utilizadas mais comumente, como o consumo excessivo e periódico de bebidas alcoólicas.
Nesse ponto cabe apontar a intertextualidade dessa resenha crítica com o livro “Admirável mundo novo” que é um clássico romance de 1932 de Aldous Huxley, onde o autor centra-se em uma sociedade utópica onde todos são feliz, mas para alcançar esse felicidade, os cidadãos são condicionados a tomar uma droga chamada “soma”. World State é uma cidade que serve como um corpo social onde todo mundo pertence a todos os outros. Os cidadãos são divididos em um sistema de castas depois de serem produzidos em um tubo de ensaio. A sociedade é condicionada desde muito jovem e criada para seguir três regras rígidas: sem privacidade, sem família e sem monogamia. Embora existam superiores para liderar a comunidade, todo sistema é governado por uma força invisível chamada Intra.
Em “Admirável mundo novo” a medicação soma é de uso obrigatório em todas as castas, e tem como objetivo bloquear emoções resultantes de situações estressantes, como dor, tristeza e raiva. Existem diferentes cores de soma destinadas a suprimir certas emoções ou ajudar em situações extremas, dependendo da dosagem. Nessa realidade ficcional distópica a droga permite que a sociedade tenha melhor controle sobre os cidadãos e suas castas, pois o soma ajuda a extrair qualquer senso de individualidade. Sem o soma as pessoas começariam a ter uma noção melhor de quem elas realmente são, e assim teriam a possibilidade de experimentar todas as emoções, sejam boas ou ruins.
Para a Intra a estabilidade do poder absoluto e inquestionável seria muito difícil de ser alcançada. Por isso os líderes obrigam e incutem a ideia da importância de que cada um tome sua “dose diária de soma”, pois não querem que os sujeitos em questão sejam livres pensadores. Nesse contexto um personagem conhecido como “Selvagem” é contra o soma e incentiva as pessoas a jogarem fora a droga, experienciarem suas emoções e falarem livremente. Dessa forma, a evasão da medicação causa uma rebelião e uma queda no sistema autoritário de controle absoluto, dos corpos, das mentes e das emoções. Surge então a reflexão se as pessoas após conhecerem o mundo real e suas dores desejariam nunca ter parado de tomar sua “dose diária de soma”, mostrando as “facilidades” causadas pelo entorpecimento, apatia e desconhecimento do sofrimento. Fica a sensação que o autor mesmo em 1932 parecia prever o impacto que o vício em pílulas causaria na sociedade, sendo este um problema atual de saúde pública.
O resultado dessa anulação do sofrimento e da necessidade de entorpecimento gera um sentimento de apatia que acaba impedindo o indivíduo de encontrar novas formas de lidar com o mal-estar. Quando se supre a infelicidade corre-se o risco de não conseguir ressignificar essas experiências consideradas a priori como negativas, assim perde-se a oportunidade de atribuir novos significados a própria existência. É imprescindível vivenciar as experiências da vida, sejam elas boas ou ruins. A partir desse confronto subjetivo surge uma mobilização de esforço psíquico para a elaboração e assimilação do vivido. Com o trabalho de elaboração, respeitando o tempo necessário, torna-se possível lidar com o sofrimento como parte da vida. A necessidade de enfrentamento é crucial para que aja uma invenção criativa de outras normas de vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Furtado MA, Szapiro AM. Novos dispositivos de subjetivação: o mal estar na cultura contemporânea. Rev. Polis e Psique, 2015; 5(3):166-185.
Happiness. A film by Steve Cutts.
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 21. São Paulo: Editora Globo, 2001.
Por JULIANA DENISE NASCIMENTO SILVA