AUTOPOIESE E NARRATIVAS – A Carta por Fernando Buzzetto

AUTOPOIESE E NARRATIVAS – A Carta por Fernando Buzzetto

Fernando Buzzetto. Nascido em Jundiaí no interior de São Paulo, morou em diversas cides do estado e se fixou em Praia Grande. Formado em Administração, trabalhou na área comercial em algumas empresas de autopeças. Atualmente, é professor universitário, tendo lecionado em diversas instituições. Na literatura publicou alguns contos e os romances policiais NOSSO RANCHO, TEIMOSA e MENTIRAS. Suas histórias sempre trazem uma personagem mulher como protagonista e tem suspense como foco principal.

 

A CARTA

 Cenário anterior

Era início da década de setenta. Naquele tempo, o que hoje é conhecido como Ensino Fundamental II, era o Ciclo ginasial.

Eu sempre fui um menino popular. Participava de todas as atividades esportivas e culturais, me envolvia nos diversos órgãos de alunos da escola, portanto, sempre estava em evidência por algum motivo.

Embora tivesse participação nos eventos masculinos, preferia a companhia das meninas. Meu grupo de estudos era composto por mim e quatro meninas; a amizade predileta era a Edna, mantinha um relacionamento mais próximo das professoras do que com os professores. Quanto as meninas, não me envolvia com ninguém.

Muitas meninas se insinuavam, queriam me namorar, mas eu sempre as descartava. Desconfiavam que a Edna era mais que uma amiga, o que não era verdade e talvez afastasse aquelas que queriam comigo, mais do que amizade.

Eu gostava da companhia delas, mas preferia as alegres e extrovertidas. Não curtia as tímidas, quietinhas e muito delicadas. Minha rotina era diversificar as companhias, cinema com uma, biblioteca com outra, em cada excursão da escola, no ônibus, sentava ao lado de uma na ida e outra na volta, mas sempre aquelas de personalidade marcante.

Cheguei a namorar alguns meses com uma menina de uma série anterior, mas logo preferi a liberdade e voltei a velha rotina.

Fui presidente da Comissão de Formatura, mas não fui ao baile, tendo participado apenas da colação. Eu havia entrado em uma escola técnica e as aulas já haviam começado e como o evento festivo ocorreu em uma sexta-feira, e depois de um dia inteiro de aula, não me senti motivado a comparecer. Para mim, tudo aquilo havia ficado para trás.

Naquela época a comunicação entre as pessoas era difícil. Não havia internet, celular e poucas famílias tinham telefone em casa. Os meus colegas continuaram na mesma escola enquanto eu fui estudar na cidade vizinha, portanto, me distanciei de todos.

 

A Carta

 Havia se passado quatro anos, eu tinha acabado de me formar no curso técnico.

Estava tranquilo em casa, quando o carteiro deixou algo na caixinha do correio. Mesmo debaixo de chuva, fui até lá, e era uma correspondência endereçada a mim. Abri o envelope e comecei a ler, sem saber quem era o remetente, que se identificou somente pelas iniciais.

 

São Paulo, 1 de dezembro de 1976

Meu Querido,

Espero que esteja bem. Eu carrego comigo uma culpa muito grande, por ter sido tão passiva em relação a VOCÊ.

Fui fraca, tive medo da rejeição, me escondi atrás da minha covardia e nunca lutei pelo que mais queria. Só havia uma coisa que me interessava: VOCÊ.

Não revelei o meu amor, mas faço agora, mesmo que tardiamente. Naquela época em que estávamos juntos, conversava com minhas irmãs mais velhas e elas me diziam se tratar de um amor adolescente. Isso passa, me falavam.

Mas não passou. A distância só o fez aumentar em intensidade e maturidade. Tenho plena convicção de que eu quero VOCÊ.

Quando éramos colegas de classe, foi só isso que consegui, VOCÊ me fazia sofrer. Sentia ódio, jurava que deixaria de gostar de alguém que não me dava a atenção, mas ao vê-lo novamente, queria cair em seus braços.

Nas nossas reuniões de estudo, para fazer os trabalhos, você ficava de “tititi” com a Edna e eu lá, tentando chamar a sua atenção. Na hora de ir à biblioteca eu nunca era a companhia escolhida. Não fui sua companhia no cinema, mas muitas te acompanharam. Nos bailinhos nas garagens, VOCÊ nunca dançou comigo. Olha como VOCÊ me fez sofrer, mas eu mereci, em função do meu silêncio.

 

– Até chegar a esse parágrafo não havia identificado a pessoa, mas após a leitura do mesmo, soube quem era a garota. Mas ela continuava narrando todas as vezes que eu a magoei.

 

No campeonato colegial, quando estávamos na terceira série, eu assistia todos os jogos, mas quando a partida acabava, VOCÊ nem me notava grudada no alambrado. Nas quermesses da escola, brincava com todas, estava sempre acompanhado daquelas colegas mais bagunceiras e eu querendo um espaço.

Vi minhas esperanças se despedaçarem, ao saber que estava namorando aquela loirinha sem graça da série anterior. Chorava todas as noites, imaginando-a em seus braços. Não tinha dúvidas de que ela não te amava como eu.

Voltei a sonhar quando o namoro acabou. Foi assunto na escola por uma semana.

Decidi: “no baile de formatura eu me declaro e ele não vai escapar”

Mas VOCÊ não foi.

Não te vi mais, mas continuei sonhando com VOCÊ. Todos esses anos.

EU TE AMO! E vou amá-lo para sempre.

 

Nesse ponto da carta, resolvi que iria procurá-la. Na época da escola, embora ela fosse uma menina muito bonita, não me despertava nenhum interesse. Era quieta, nas festas ficava em um canto, parecendo esperar que alguma coisa acontecesse. Será que era por mim que ela aguardava?

O tempo havia passado, nós amadurecemos e talvez ela tivesse mudado. A carta mostrava que ela estava tomando uma atitude e isso me agradava. Mas ao continuar a leitura, tive uma surpresa.

 

Quero passar o resto da minha vida com VOCÊ. Prometo que serei uma esposa dedicada, carinhosa e a amante perfeita.

Vou aguardar que me procure. Continuo morando no mesmo lugar. Se não se lembra mais, afinal nunca ligou muito para mim, o endereço está no envelope.

A partir da data desta carta, espero por VOCÊ por sessenta dias, ou seja, até o dia primeiro de fevereiro. Contudo, se não me procurar, não vou te esquecer, mas vou seguir com a minha vida.

Estou com casamento marcado para 16 de abril do ano que vem.

Se me procurar, largo tudo para ficar com VOCÊ.

Estou esperando,

 Silvana (nome fictício)

 

Ao ler que ela estava com casamento marcado, não achei justo, nem correto procurá-la. Se ela estivesse sozinha, como eu, poderíamos namorar e se não desse certo, terminaríamos, mas destruir um relacionamento para algo incerto, era uma atitude que eu não quis assumir.

Rasguei a carta e esqueci o assunto

 

Quinze anos depois

 

Saí para visitar alguns clientes, mas assim que retornei para a empresa, minha secretária avisou:

 – Tem uma mulher que ligou três vezes. Diz que é sua amiga, mas não quis dizer o nome. Disse que você não voltaria hoje.

 – Se ligar de novo pode passar a ligação. Deve ser alguém pedindo dinheiro para alguma coisa.

 No dia seguinte, logo cedo, a mulher ligou e conforme havia sido orientada a secretária passou a ligação, avisando ser a anônima.         

– Bom dia! Talvez você nem lembre de mim, mas tem algo me incomodando há quinze anos. Eu preciso resolver isso.

– Quem está falando?

 – Silvana, sua colega de escola.

 

Foi assim que ela se apresentou. Eu me lembrei dela, mas não entendi porque ela me procurava. Ela ficou remoendo alguma coisa por quinze anos?

Tentei fazê-la falar, porém, ela quis um encontro. Disse que precisava me fazer uma pergunta, mas, pessoalmente.

Combinamos de almoçar em um restaurante próximo ao local de trabalho dela. Preferi me encontrar no lugar combinado. Como sempre faço, cheguei mais cedo. Ela chegou pontualmente no horário combinado. Estava nervosa. Vestia saia e blusa preta, calçava sapato de salto.

Fazia quase vinte anos que não a via e ela havia se tornado uma mulher muito bonita. Continuava com rostinho angelical.

Levantei para cumprimentá-la, lhe dei um abraço e puxei a cadeira para ela se sentar à mesa. Voltei para o meu lugar e esperei pela pergunta que ela queria fazer.

Conversamos por algum tempo e Silvana não demonstrava pressa. Falou sobre sua vida, o quanto estava entediada com o casamento, disse ser mãe de um menino de dez anos, mas não se interessou em saber da minha vida. Sempre que tentei contar algo, ela me cortou. Então me calei, já um pouco irritado com a atitude dela. Em determinado momento eu a pressionei:

 

– Você disse que há algo te incomodando? Posso ajudar a resolver?

– Sim. Você recebeu a minha carta?

 – Carta? Que carta?

           

Quando ela fez a pergunta, não sabia ao que ela se referia, mas conforme ela foi relatando o assunto, me lembrei daquele dia. Quis tentar explicar, mas ela não me ouvia, repetindo inúmeras vezes o conteúdo da carta, se culpando por não ter ido até a minha casa e conversado pessoalmente. Sem ouvir o que eu tinha a dizer, ela se levantou, pegou a bolsa e foi embora. Após alguns dias liguei para o seu local de trabalho. Ela não me atendeu, não retornou e eu nunca mais soube dela.

 

FIM

O tempo! O passado! Um perfume! Recordações…o que foi, não será mais. O que lemos, são sentimentos, emoções, saudades e o desejo do que poderia ter sido e não foi. Tudo escrito em uma carta, relatando situações de vida, e uma distância íntima, com delicadeza se foi! (Grifo da Colunista).

Por STELLA GASPAR

 

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