COLUNA ÁGORA – Entrevista com Fred Di Giacomo

COLUNA ÁGORA – Entrevista com Fred Di Giacomo

 

 

Fred Di Giacomo, doutorando em literatura e cultura, na Freie Universität – Berlin, escrevi 8 livros, sendo os mais recentes “Gambé” (Companhia das Letras, 2023) e “Desamparo” (Reformatório, 2018), ficções históricasinspiradas na violenta colonização do velho oeste paulista. Publiquei contos, artigos científicos, crítica e jornalismo em veículos como a Revista Cult, Superinteressante, Estudos de Literatura Brasileira Contemporâneae Stadt Sprachen (Berlin). Fui colunista do Uol, roteirista na rede Globo, redator-chefe na Editora Abril e professor e coordenador pedagógico na Énois.

 

ENTREVISTA

 

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REVISTA THE BARD – Fred, você se refere ao seu primeiro romance “Desamparo” como uma biografia sangrenta da sua cidade Natal de Penápolis. O livro recebeu muitas críticas positivas, inclusive pela particularidade de inserir o leitor numa história real, porém mágica. Quais motivos te inspiraram a contar esta história?

FRED DI GIACOMO – O médico e escritor Drauzio Varella costuma repetir que, se você não é um Tolstoi ou Dostoiévski, que podem escrever bem sobre qualquer coisa, deve procurar uma história que só você possa contar.

Confiando no Drauzio (como não fazê-lo?), decidi contar a história da minha cidade natal, que é uma cidade pequena, fica longe demais das capitais e nunca despertou interesse da grande mídia. Quando comecei a pesquisar as histórias de Penápolis e região, vi que tratava-se de um microcosmo do Brasil. Sua colonização brutal era uma versão bonsai da colonização do Brasil. Ela também servia como um estudo de caso para compreender o Brasil contemporâneo: o país do agro, do sertanejo, do conservadorismo e do cristianismo.

 

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REVISTA THE BARD – O tema “justiça social” me parece muito importante para você e em sua mais recente publicação, Gambé, você trata de assuntos como violência, poder e desigualdade. Percebo que os sentimentos dos seus leitores são mais importantes que lições esvaziadas de emoções, isso cativa e transforma. O que você espera que seus leitores sintam ao ler Gambé?

FRED DI GIACOMO – Acho que o romance é uma obra aberta onde o escritor deposita suas intenções sem saber exatamente como elas vão operar nos corações e mentes dos leitores. No entanto, se eu pudesse arriscar um palpite, gostaria que os leitores se indignassem. A indignação é um bom motor para mudanças.

 

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REVISTA THE BARD – Em paralelo à sua carreira como escritor, você atua como diretor da GQ Brasil. Podemos ver que você tem um estilo único que expressa sua personalidade com muito charme. O que você pensa sobre estar na moda e ao mesmo tempo se diferenciar através da própria essência?

FRED DI GIACOMO – Olha, eu sempre sonhei em ser artista, em escrever livros. O jornalismo apareceu para mim como uma forma realista de pagar minhas contas sem me distanciar demais da literatura.

Cobri muitos assuntos diferentes como jornalista, e a moda é um desses assuntos, um mundo que eu conhecia muito pouco e que, agora, tenho me dedicado a estudar.

Antes da GQ, minha relação com a moda se resumia a admirar o estilo do meu velho avô Fausto Di Giacomo, que gostava de usar acessórios – como chapéus, suspensórios e gravatas borboletas –  e, também, ao meu envolvimento com o punk rock que sempre teve a moda como um dos seus pilares, basta lembrar que a estilista Vivienne Westwood foi uma das mães do punk e a banda Sex Pistols surgiu na sua loja de roupas, a Sex, em Londres

Dito tudo isso, eu concordo com o diretor global da GQ, Will Welch, que diz que as revistas de moda hoje não devem ter a pretensão de ensinar às pessoas como se vestir, mas ajudar as pessoas a acharem formas de expressar sua personalidade. Em resumo, enxergo a moda como uma maneira divertida de expressarmos nossa identidade.

 

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REVISTA THE BARD – Seu trabalho na GQ exige um olhar atento para tendências e comportamentos. Como você equilibra a criatividade literária com as demandas editoriais de um veículo tão relevante? Conte um pouco da sua rotina.

FRED DI GIACOMO – Das 10 às 19h, mais ou menos, eu me dedico ao jornalismo e à GQ. Meu trabalho é coordenar a equipe que produz conteúdo para a revista, o digital e os eventos da marca. Eu também viajo anualmente para as Semanas de Moda masculinas e compareço a muitos eventos, geralmente de noite. Uma das experiências mais interessantes da GQ é acompanhar os ensaios fotográficos com as estrelas de capa. Isso me permitiu conhecer artistas que me inspiraram na juventude como Gilberto Gil, Mano Brown e Marcelo D2.

Eu sempre escrevi ficção nas “horas extras”, de madrugada, nos finais de semana e nas férias. Escrever pra mim é uma necessidade, uma forma de organizar os pensamentos e dar sentido para a vida. Agora, se eu tenho uma ideia literária no meio do expediente da GQ, eu anoto rapidamente para não esquecê-la e trabalho nela, depois, quando arranjo algum tempo livre.

Também carrego comigo, sempre, um livro físico, na mochila, e uns dois livros no celular, para ler no Kindle. Leio no transporte, nas filas e nos momentos de espera. Assim vou conciliando o jornalista com o escritor. É claro que às vezes essas coisas se misturam. As técnicas de jornalismo me ajudaram na pesquisa para escrever “Desamparo” e “Gambé”, por exemplo. Os textos que editei como jornalista ajudaram na fluidez do meu texto literário. A experiência de ouvir os entrevistados, no jornalismo, também ajudou a criar diálogos (e “vozes”de personagens) convincentes. Por outro lado, eu procuro trazer resenhas de livros e textos assinados por escritores para a nossa revista mensal.

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REVISTA THE BARD – O que o motivou a sair do interior e buscar uma carreira nas grandes cidades? Houve algum momento decisivo ou influência familiar que impulsionou essa decisão e moldou sua trajetória profissional?

FRED DI GIACOMO – Quando eu era adolescente eu odiava morar no interior. Achava tudo pequeno e conservador, me sentia aprisionado, era muito “esquisito” para os padrões locais: não gostava de jogar futebol, não frequentava nenhuma religião, não gostava de música sertaneja, etc. Rolava um certo bullying na escola e eu não tinha muito dinheiro para as coisas que gostava: roupas legais, viagens, shows, restaurantes… tudo isso eram coisas distantes que a gente via que existia nas cidades maiores e que custavam caro.

O fato de meus pais terem livros em casa foi um dos maiores privilégios da minha vida, mas o fato de eu me sentir alienado socialmente e não ter muitos amigos no colégio me fez me apegar aos livros e aos estudos como uma saída para aquela realidade.

Nós inventamos uma “cena punk” em Penápolis, quando éramos jovens, nos anos 1990, tínhamos uma badna chamada Praga de Mãe e uma de nossas músicas se chamava “Não nasci para essa cidade”.

Estudar e entrar em uma faculdade, em algum lugar maior, parecia a única tábua de salvação em que eu podia me agarrar. Por isso me tornei o “melhor aluno da classe” e passei direto em primeiro lugar no curso de jornalismo da Unesp – Bauru. Quando eu passei na faculdade, foi como se eu tivesse me “salvado” daquela vida que eu odiava. E também foi o início de uma grande ascensão social.

 

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REVISTA THE BARD – Fred, você cresceu no interior e, ao longo dos anos, construiu uma carreira sólida como escritor e jornalista. Como a sua infância e a relação com a sua família influenciaram o seu processo criativo e a forma como você enxerga o mundo?

FRED DI GIACOMO – Meus pais eram professores de ensino médio e fundamental. Passaram boa parte da vida dando aulas em escolas públicas nas periferias do estado de São Paulo. Acreditavam que a educação era uma espécie de revolução pacífica que poderia melhorar o país e essa visão de mundo me influenciou. Eles também tinham muitos livros em casa, um privilégio, e gostavam de cinema e música.

Por outro lado, eles eram muito rígidos conosco, nos cobravam muito sobre os estudos. Diziam que se não entrássemos direto na faculdade, sem cursinho, passaríamos a vida no interior fazendo trabalhos mal remunerados. Eu fui bolsista em um colégio particular dos 10 aos 17 anos e sempre tirei notas excelentes. Eles também idolatravam os artistas e acreditavam que uma forma de você “permanecer vivo” era através de sua obra. Acho que isso deixou a gente bastante neurótico e pressionado (risos), mas conseguimos passar em universidades gratuitas de qualidade ou que mudou nossas vidas.

Ao mesmo tempo, em Penápolis, eu e alguns amigos descobrimos o punk rock e a filosofia do “faça você mesmo” nos influenciou muito. Percebemos que podíamos fazer nossas próprias revistas (zines), festivais, bandas e tivemos até um programa de rádio. Nos organizamos na União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Penápolis. Acho que essa filosofia me influencia até hoje. Me ajuda a não esperar o “momento certo” e as “condições ideais” para produzir minha arte, para tentar correr atrás dos sonhos. O momento ideal não existe, pelo menos pra mim.

Como eu disse, na adolescência eu odiava minha cidade e me achava muito cosmopolita. Mas quando cheguei em São Paulo eu vi como eu era caipira e como muito da cultura do interior era importante pra mim. Isso acabou marcando muito meus livros e, também, minhas canções com a banda Bedibê, especialmente o disco “América”, que você pode ouvir no Spotify e no Youtube.

 Eu pensava muito no bairro onde me criei, Vila São João, nos meus vizinhos, nos amigos que moravam em sítios, nos carroceiros passando em frente de casa, no Museu do Folclore, no catolicismo popular das novenas e promessas, a oralidade, a comemoração de Cosme e Damião, a escola de samba da Usina Campestre… Isso tudo acabou moldando minha personalidade; como os livros que eu li ou as músicas que ouvi.

 

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REVISTA THE BARD – Muitos escritores encontram na leitura de infância seus primeiros estímulos criativos. Quais livros ou histórias marcaram sua juventude?

FRED DI GIACOMO – Li uma versão adaptada de “A Ilha do Tesouro”, quando tinha sete anos e mudou minha vida. Depois com 11 anos eu li “O Falcão Maltês”, que mudou minha vida de novo. E, com 21 anos, me apresentaram o “Misto Quente”, do Bukowski, que era sobre ser uma criança branca da classe trabalhadora que não era bonita e tinha poucos amigos. Mudou minha vida pela terceira vez. Também lia muitas histórias em quadrinho: Marvel, DC, Asterix, Turma da Mônica, os quadrinhos mais cult não chegavam no interior, mas tínhamos a MAD e algumas edições da Chiclete com Banana.

Além desses, li, antes de entrar na faculdade, ou seja, antes de fazer 18 anos: “Alice no País das Maravilhas”, “Romeu e Julieta”, “As Viagens de Gulliver”,  “As Aventuras de Huckleberry Finn”, “Alexandre e outros Herois”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Cem Anos de Solidão”, “A Metamorfose”, “Vidas Secas”, “O Quinze”, “Os meninos da Rua Paulo” e muita coisa do Nelson Rodrigues, Borges, Drummond, Leminski e Edgar Allan Poe. Todos me marcaram profundamente.

 

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REVISTA THE BARD – Em um mundo cada vez mais digital, como você vê o futuro da literatura e do jornalismo? Acredita que os desafios de uma publicação de sucesso mudou com o passar dos anos?

FRED DI GIACOMO – Acho que a recepção à informação está mais fragmentada e pulverizada. É mais difícil você ter, no jornalismo, algo como o Jornal Nacional, que era uma fenômeno nacional, falava com quase todo o país. O jornalismo, hoje, é muito mais digital, os vídeos são importantíssimos e os recortes para redes, em pílulas, também. Sem jornalismo profissional as democracias se enfraquecem, precisamos de jornalismo plural, diverso e de qualidade. Não dá pra substituir por influencers e publicidade.

Acho que a literatura foi menos abalada pelas mudanças digitais. O livro impresso ainda é importante. O que eu sinto que mudou é uma tendência para romances curtos e novelas, as pessoas têm menos tempo para ler. Mas aí você tem um fenômeno como “Torto Arado”, do Itamar Vieira Jr, que não é um livro curto e vendeu horrores.

A literatura brasileira tem um belo presente, então, isso me deixa esperançoso com seu futuro.

 

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REVISTA THE BARD – Poderia nos contar sobre quais são os seus próximos projetos, tanto no universo literário quanto na GQ Brasil, e como os leitores podem acompanhar o seu trabalho?

FRED DI GIACOMO – Na GQ estamos comemorando 15 anos da edição brasileira, em 2025, e teremos uma edição especial do prêmio Men of the Year no final do ano. Nossa próxima capa, de fevereiro, é com o jogador Memphis Depay e, na mesma edição, temos uma entrevista fantástica com o Tom Zé. A edição de aniversário, de abril, também promete.

Terminei um romance novo agora, estou revisando antes de mandar para o meu editor. É o final da trilogia que inclui “Desamparo”(2018) e “Gambé”(2023). Se passa no interior contemporâneo, entre os anos 1990 e 2010.

Trabalho também em um romance curto autobiográfico e em algumas histórias para crianças. Recentemente dei algumas entrevistas para os podcasts “Rabiscos” e “How you look”, se alguém tiver interesse por conhecer mais meu trabalho, é possível encontrar esse material nas redes.

 

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REVISTA THE BARD – E para finalizarmos, poderia deixar uma mensagem para os leitores da Coluna Ágora?

FRED DI GIACOMO – A literatura brasileira vive um momento muito forte e instigante, leiam autores e autoras vivos, mas não esqueçam dos clássicos. Livros salvam vidas, eles salvaram a minha.

 

LIVROS 

 

Por MIA KODA

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