É na busca pelo mundo e pelas pessoas que mais naturalmente encontramos nossa essência e descobrimos que ela não é exatamente uma substância, algo de fixo, mas sim uma plasticidade, uma imensa capacidade – exigida de quem escreve – de adaptar-se, de comungar com formas, ideias e valores que não eram os nossos, mas que nos enriquecem e nos conduzem a modalidades do ser que haviam nos escapado.
Nesse sentido, a topofilia – a capacidade de tratar lugares como territórios afetivos faz com que tais lugares acolhedores se tornem palavras, se tornem autoconhecimento e alteridade: caminho para o outro, que nos conduz de volta a nós mesmos enriquecidos, diversos do que sempre fomos, mas, de modo algum, estranhos a nós mesmos. O conhecimento que obtemos pela alteridade não nos desfigura como o faz o narcisismo, pelo contrário, faz com que nos vejamos melhor. Faz também com que os outros nos vejam com mais clareza.
O viajar, o observar atento da carga simbólica que os lugares trazem consigo, podem ser um excelente recurso de humanização para a escrita. Talvez, seja possível perceber uma grande semelhança entre os gestos de viajar e de escrever. Em ambos os casos é preciso deixar algo para trás, é preciso arriscar, é preciso esgrimir contra o tédio para encontrar o que está além do óbvio. É preciso, principalmente, sensibilidade e escuta, tanto das pessoas quanto dos lugares. Porque apenas quem cultiva uma escuta apurada pode chegar a construir para si uma voz.
Uma coisa é certa, se há entre escrever e viajar tantas afinidades, se há entre lugar e palavra uma relação produtiva, é porque escrever não é algo da ordem do texto apenas, envolvendo antes, todo nosso corpo e nossa alma. É para uma jornada tal que esta coluna nos convida. Aqui, você irá viajar no tempo e no espaço, onde as experiências humanas se entrelaçam, onde escritor e leitor se encontram e se conectam.
Afinal, conforme expressou Ana Holanda (2018), o convívio com as palavras, entre leituras e processos criativos, pode nos ensinar muito sobre nós mesmos, sobre as vivências que compartilhamos. Nesse sentido, escrever é, também, conviver. É parar para e observar o outro, enxergar a vida que há no outro. É essa vida que dá vigor às criações artísticas. Stephen King (2015) não exagerou, ao dizer:
Escrever é mágico, é a Água da Vida. A água é de graça. Então beba.
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O Poder de Humanização da Literatura
A literatura é, antes de tudo, um veículo para a humanização do homem. E não resta dúvida de que no contexto atual, o que este mais precisa, é de humanização. Num mundo onde os parâmetros estão em crise, aqui estamos nós, por meio do papel extraordinário da literatura, decididos a ecoar o nosso grito e, podemos assim dizer, fazer com que ela também cumpra sua função social.
Nossa expressão hoje talvez precise voltar um século e encontrar-se com a voz de Mário de Andrade, ao se expressar em Há uma gota de sangue em cada poema: hoje também os versos seriam outros e mostrariam um coração que sangra e estua (…) Tudo se apague! Este ódio, esta cólera infinda/ Fujam os ventos maus, que ora esfuziam;/ que se ouça a voz, não o canhão!…
Que se ouça a nossa voz! Não podemos e nem vamos nos calar, pois sabemos que a função social da literatura é também facilitar ao homem compreender e, assim, emancipar-se dos dogmas que a sociedade lhe impõe.
Que se ouça a nossa voz, amados escritores. E que ela seja, acima de tudo, em prol da paz, do amor, da união, da humanização. Que a escrita seja nossa forma de transbordar, de contribuir para fazer do mundo um lugar melhor. Conforme expressou Christopher Vogler (2017): O poder curativo das palavras é seu aspecto mais mágico. Escritores, como xamãs ou curandeiros, das culturas ancestrais, têm o potencial de serem curativos (…) Nós, escritores, compartilhamos do poder divino dos xamãs. Não apenas viajamos a outros mundos, mas os criamos em outro espaço e tempo (…) com o poder mágico de reter aquelas palavras e trazê-las de volta na forma de histórias para outros compartilharem. Nossas histórias têm o poder de curar, refazer o mundo. Dar às pessoas metáforas pelas quais podem entender melhor a própria vida.
Vale ressaltar que a literatura tem o poder de reanimar, restaurar, amenizar dores na alma e até mesmo a depressão. Basta estudarmos um pouco a respeito de Carl Jung (psiquiatra e psicanalista suíço, fundador da Psicologia Analítica) e veremos suas afirmações sobre a cura por meio das histórias e metáforas inseridas nas obras literárias, por exemplo. Sim, a literatura era uma de suas fontes de análise em busca de compreender a psiquê humana, bem como um recurso para tratá-la.
O século passado, por exemplo, foi marcado por duas Guerras Mundiais, e o período entre elas gerou profunda depressão na humanidade, decorrente das perdas de entes queridos, queda da economia, fome, medo e doenças. E foi exatamente nessa fase que grandes grupos artísticos e literários se levantaram ao redor do mundo, com o objetivo de organizar movimentos capazes de contribuir para que tamanha dor fosse amenizada.
Em Londres, o famoso Grupo de Bloomsbury se reunia na belíssima Gordon Square e buscava formas de encontrar criações que pudessem alegrar. Em Stratford-Upon-Avon, os teatros lotavam e as narrativas de Shakespeare, tanto tempo depois de sua morte, chegavam de novo ao seu auge. Além de ser um veículo que gerasse cura psicológica e emocional (a Catarse) o teatro foi um grande cooperador para a economia, pois o dinheiro gerado contribuiu sobremaneira. O Círculo Linguístico de Praga, por sua vez, ganhava mais prestígio, bem como a Literatura Russa. O formalismo russo, também conhecido por crítica formalista, foi uma influente escola de crítica literária que existiu na Rússia de 1910 até 1930. Os membros do movimento são considerados os fundadores da crítica literária moderna.
E no Brasil, em 1922, acontecia a Semana de Arte Moderna, também conhecida como “Semana de 22”, no Teatro Municipal de São Paulo, de 11 a 18 de fevereiro de 1922 e representou a expressão de novos valores estéticos, que propunham uma mudança na arte e na literatura brasileira.
Tais exemplos foram citados apenas com o intuito de mostrar o quanto a literatura é atuante na sociedade, no contexto histórico. Mas seu maior papel é, certamente, melhorar a visão de mundo das pessoas. Aliás, segundo o professor Antônio Cândido, a literatura deságua na desigualdade social, no fato de ela ser ou não acessível a todos.
Portanto, nós, escritores, permanecemos firmes em nossa missão de contribuir para um mundo melhor por meio da escrita, de aliviar seus fardos pesados através da catarse. Não vamos nos calar! Continuamos unidos num propósito coletivo. Temos a consciência de que, conforme expressou Charles Dickens, ninguém pode achar que falhou a sua missão neste mundo, se aliviou o fardo de outra pessoa.
Referências
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, Jose Aderaldo. Presença da literatura brasileira. História e Antologia: das origens ao realismo. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. Vol. 1;
HOLANDA, Ana. Como se encontrar na escrita: o caminho para despertar a escrita afetuosa em você. Rio de Janeiro: Bicicleta Amarela. 2018;
KING, Stephen. Sobre a escrita – A arte em memórias. Trad. Michel Teixeira. Rio de Janeiro, Objetiva, 2015;
KOCH, Stephen. Oficina de escritores: um manual para a arte da ficção. Trad. Marcelo Dias Almada. Rev. Trad. Silvana Vieira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008;
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de. Janeiro: Nova Fronteira, 1997;
VLOGER, Christopher. A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores. Trad. Petê Rissati. 3. Ed. São Paulo: Aleph, 2015.
Por SUELI LOPES