COLUNA HUMANILITERAR – O poder de humanização da obra de Shakespeare

COLUNA HUMANILITERAR – O poder de humanização da obra de Shakespeare

A topofilia – a capacidade de tratar lugares como territórios afetivos faz com que tais lugares acolhedores se tornem palavras,  se tornem autoconhecimento e alteridade: caminho para o outro, que nos conduz de volta a nós mesmos enriquecidos, diversos do que sempre fomos, mas, de modo algum, estranhos a nós mesmos.

O viajar, o observar atento da carga simbólica que os lugares trazem consigo, podem ser um excelente recurso de humanização para a escrita. Talvez, seja possível perceber uma grande semelhança entre os gestos de viajar e de escrever. Em ambos os casos é preciso deixar algo para trás, é preciso arriscar, é preciso esgrimir contra o tédio para encontrar o que está além do óbvio. É preciso, principalmente, sensibilidade e escuta, tanto das pessoas quanto dos lugares. Porque apenas quem cultiva uma escuta apurada pode chegar a construir para si uma voz.

Uma coisa é certa, se há entre escrever e viajar tantas afinidades, se há entre lugar e palavra uma relação produtiva, é porque escrever não é algo da ordem do texto apenas, envolvendo antes, todo nosso corpo e nossa alma. É para uma jornada tal que esta coluna nos convida. Aqui, você irá viajar no tempo e no espaço, na universalidade da literatura, onde as experiências humanas se entrelaçam, onde escritor e leitor se encontram e se conectam; onde a alma dos lugares se revelam.

Escrever é, também, conviver. É parar para  observar o outro, enxergar a vida que há no outro. É essa vida que dá vigor às criações artísticas. Stephen King (2015) não exagerou, ao adrimar: Escrever é mágico, é a Água da Vida. A água é de graça. Então beba.

Seja muito bem-vindo/a à fonte Humaniliterar!

Na edição de março e abril, nossa fonte alcançará rios e  mares, e se desembocará no Rio Avon, sobre as águas que cortam o lindo vilarejo onde Shakespeare nasceu e morreu: Stratford-upon-Avon, Inglaterra. Passará também pelo Rio Tâmisa, em Londres, onde, à sua margem, está o lindo teatro The Globe. Como o autor Christopher Vogler (2015) sugere, faço uma paráfrase, trocando a palavra livro por texto, ou apenas “escrita”:

Um livro começa como uma onda rolando na superfície do mar. Ideias irradiam da mente do autor e colidem com outras mentes, desencadeando  novas ondas.

Imagem de Freepik

Mergulhe nessas ondas, estimado/a leitor/a: conheça um pouco mais sobre o poder de humanização da obra de Shakespeare e também alguns lugares por onde ele passou, ou que lhe prestam homenagem.

 

O poder de humanização da obra de Shakespeare

 

A Literatura Quebra Barreiras Geográficas e Une Fronteiras Diplomáticas.

As fronteiras diplomáticas, aquelas linhas traçadas sobre os mapas para delimitar nações e territórios, são como costuras invisíveis que unem ou separam as histórias de povos. Elas moldam as relações internacionais e, muitas vezes, determinam a trajetória de nações inteiras.

No entanto, por trás dessas linhas frias e oficiais, encontra-se a poderosa influência da literatura, que atua como a narradora silenciosa de nossa história comum, registrando as vidas e as experiências que transcendem fronteiras geográficas.

A literatura, como a linguagem da alma, e também com sua função social, tem o poder de atravessar essas fronteiras e unir pessoas de diferentes nacionalidades e culturas. Através das palavras de autores, poetas e escritores, somos convidados a adentrar mundos desconhecidos, conhecer experiências que ecoam através do tempo e do espaço.

A literatura é também um instrumento de registro da História. Por meio de narrativas ficcionais ou autobiográficas, escritores capturam momentos de significado e impacto, preservando-os para as gerações futuras.

Ao visitarmos Stratford-upon-Avon, onde Shakespeare nasceu, por exemplo, nos deparamos com imensos painéis informativos, deixando bem claro que em tempos de bombardeios da Segunda Guerra Mundial, os teatros lotaram. Era uma forma de amenizar a dura realidade por meio da catarse, e não só: foi uma grande contribuição à economia da época. De forma metafórica, Shakespeare foi “um mercador para muito além de Veneza.”. Vale uma afirmação da historiadora de arte e professora da Universidade de Colchester-Uk, Dawn Ades (1943):

Apesar de ser perigoso, as pessoas queriam sair de casa durante a guerra, estavam sedentas por cultura . Queriam mostrar resiliência, e não medo. Esse sentimento as ajudava a sobreviver.

Imagem de VariousPhotography por Pixabay

 

Viva William Shakespeare: O Mercador Muito Além de Veneza!

É mais fácil obter o que se deseja com um sorriso do que à ponta da espada.

William Shakespeare

 

Há diversas formas de analisarmos as obras de William Shakespeare (23/04/1564 – 23/04-1606). Uma delas, sem dúvida, é o poder de reconciliação, muito além dos palcos, que elas exprimem.

O icônico dramaturgo inglês do século XVI, transcendeu as fronteiras do tempo e do espaço, não apenas como um mestre das artes dramáticas, mas também como um visionário da condição humana.

Suas obras atemporais não apenas encantam e cativam o público, mas também revelam profundas reflexões sobre temas universais, como amor, poder, justiça e reconciliação.

Um dos temas mais proeminentes nas obras de Shakespeare é o poder da reconciliação. Em peças como O Mercador de Veneza (1598) e A Tempestade (1611), vemos como ele explora a complexidade dos relacionamentos humanos e a possibilidade de perdão e cura mesmo nas situações mais desafiadoras.

Em O Mercador de Veneza, por exemplo, Shakespeare mergulha nas tensões entre cristãos e judeus, representadas pelos personagens Shylock e Antonio.

No clímax da peça, após uma série de conflitos e desafios legais, Shakespeare nos presenteia com um momento de surpreendente reconciliação. Shylock é forçado a renunciar à sua vingança e converter-se ao cristianismo, enquanto Antonio demonstra misericórdia ao perdoar suas dívidas.

Esse gesto de perdão e compaixão é um poderoso testemunho do potencial humano para superar diferenças e encontrar paz.

Além disso, as obras de Shakespeare têm um teor diplomático e jurídico que ressoam até os dias de hoje. Em peças como Henrique V (1599) e Medida por Medida (1604), Shakespeare explora questões de justiça, poder e autoridade, levantando questões éticas e morais que continuam relevantes na sociedade contemporânea.

Seus personagens frequentemente se envolvem em debates sobre a natureza da lei e da governança, oferecendo insights perspicazes sobre temas como responsabilidade, corrupção e equidade.

Em suma, as obras de Shakespeare continuam a inspirar e fascinar não apenas pela sua brilhante linguagem e narrativas envolventes, mas também pela sua profunda compreensão da natureza humana e da condição humana. Seu poder de reconciliação, sua dimensão metafórica e seu teor diplomático e jurídico ecoam através dos séculos, convidando-nos a refletir sobre nossas próprias vidas e sociedades.

Shakespeare não foi apenas um dramaturgo, mas um mestre da humanidade, cujas lições continuam a iluminar o caminho para a compreensão e a reconciliação.

Imagem – Mural de Shakespeare feito pleo artista Jimmy C, às proximidades do teatro The Globe – arquivo pessoal – Sueli Lopes

 

Viva Shakespeare! Viva a Literatura! Viva a diplomacia! Viva a reconciliação! Viva o teatro!

 

Imersão Literária em Stratford-upon-Avon, Local onde Shakespeare Nasceu e Morreu

 

Eis um dos lugares mais literários que já visitei: Stratford-upon-Avon, local onde Shakespeare nasceu e morreu, no dia 23 de abril. Como se a vida dele tivesse feito um retorno ao mesmo lugar e ao mesmo dia em que nasceu. Curioso. Gosto de promover imersões  literárias, algumas delas foram neste vilarejo charmoso, que esbanja arte, teatro e literatura por todos os lados e de todas as formas. Aliás, Caminhar por Stratford-upon-Avon é como mergulhar em um soneto de Shakespeare. Cada rua de pedras parece ressoar versos antigos, e o ar, impregnado de história, sussurra lembranças de um tempo em que o dramaturgo ainda era apenas um menino correndo pelos campos verdes da Inglaterra.

Imagem – Móveis da casa onde ele viveu, mantidos até hoje, em Stratford-upon-Avon – arquivo pessoal – Sueli Lopes

 

Logo ao chegar, sinto-me envolvida por um encanto quase literário. As casas de madeira e pedra, com suas vigas escuras contrastando com paredes brancas, conferem à cidade um aspecto de livro ilustrado. Mas é ao pisar na porta da casa onde Shakespeare nasceu que meu coração se acelera. E não só: a pena que ele usava para escrever está exposta na casa, que hoje é um museu, e eu pude tocá-la. Uma sensação arrebatadora. O ambiente tem uma energia que transcende o tempo; as tábuas do assoalho rangem sob meus pés como se quisessem contar segredos do passado.

Percorro a Henley Street, e cada vitrine me devolve o reflexo de um viajante em busca de sentido, como tantos que já passaram por aqui. Na casa de Anne Hathaway, sinto a delicadeza de um amor imortalizado, e no Hall’s Croft, morada de sua filha Susanna, percebo o eco de uma linhagem que se desdobrou em séculos de admiração e reverência.

Mas tenho fascínio pelas águas, elas me lembram o fluir da escrita. Então, quando me aproximo do Rio Avon, a alma de Stratford se revela por completo. O rio serpenteia a cidade com a graça de um verso bem metrificado. Observo e ouço o barulho bonito das águas. É primavera, os pequenos barcos passeiam no rio, as trepadeiras roxas se exibem por todos os lados. O tempo parece desacelerar. O sol poente tinge o céu de dourado, e percebo que não há cenário mais digno para as tragédias e comédias que brotaram da mente de Shakespeare. É como se ele ainda estivesse ali, sentado à beira do rio, compondo versos sob a brisa fresca do entardecer. À beira do rio, painéis gigantes retratando a imortalidade de suas obras.

Ao visitar a Holy Trinity Church, onde seus restos repousam, sinto uma estranha familiaridade. De alguma maneira estranha e inexplicável, suas palavras pareciam já ter me levado até ele muito antes de eu cruzar esse oceano de pedra e tempo. Deve ser “as ondas literárias”, que vêm e vão. Leio a inscrição de sua lápide e, respeitosamente, deixo-me perder no silêncio solene do lugar.

Na despedida, lanço um último olhar ao Rio Avon, como quem se despede de um amigo. Saio de Stratford-upon-Avon levando na alma algo que não se explica, apenas se sente. Talvez seja a alma do próprio lugar, Algo que Shakespeare, provavelmente, chamaria de um vestígio de sonho.

Imagem de Claudiodiv por Freepik

 

Shakespeare em Shoreditch: um Encontro do Clássico com o Moderno 

 

O The Globe é, sem dúvidas, o teatro mais famoso onde são mostradas as peças de Shakespeare. Mas, Na verdade, o que poucos sabem, é que o primeiro teatro onde ele se apresentou fica em New Inn Broadway, um pequeno e poderoso “quadrado” onde estão atualmente os maiores centros tecnológicos do mundo, cheio de relíquias, no “descolado” Distrito de Shoreditch, ao leste de Londres. Logo o leste, que tem um passado histórico nada favorável e animador, hoje apresenta tantas novidades culturais e financeiras! 

Imagem arquivo pessoal – Sueli Lopes – The Globe

 

 O bairro “trendy”, na verdade, esbanja cultura por todos os lados e de diversas maneiras. Que tal um encontro com Shakespeare, uma volta ao passado, ao primeiro teatro da Inglaterra, todo adornado, como na primeira apresentação de “Romeu e Julieta”? Convido você “se imaginar sentado” ao lado do grande escritor e teatrólogo, bem na esquina de New inn Broadway e New Inn Yard.  Como? 

Bem, os britânicos, que fazem de tudo para preservar a arte e cultura, não perderam tempo, e já fizeram um banco pra lá de convidativo: ao lado da estátua de Shakespeare, com a vista para a belíssima réplica do The Theatre. Se você, como eu, gosta de descobrir histórias, apreciar monumentos culturais e sentir “a alma do lugar”, ficará contagiado.   

Pasmem: arqueólogos encontraram, numa escavação, resquícios ou a base do antigo teatro, perdidos há 400 anos: The Theatre, que havia sido construído para Shakespeare, em 1576 por Richard Burgage. Isso mesmo! E não só. Quando foi desmontado em 1598, o material foi movido para a construção do The Globe, in Bankside.   

Imagem de Shalt.dmu.ac.uk

 

Londres, em 1572, vivia o horror da grande peste e, para evitar a fatal propagação, o então prefeito reprimiu as peças apresentadas na cidade. Obviamente, as companhias começaram a se espalhar em busca de outros espaços para suas apresentações. Outra curiosidade é que décadas antes de 1576, havia acontecido a dissolução dos mosteiros e, consequentemente, o Priorado de Holywell foi demolido. O The Theatre foi levantado ali, num local “sagrado”.   

 Shoreditch, nessa época, era um distrito de muita pobreza, rude, cheio de casas de jogos e tavernas. Quem deu início ao projeto ousado foi o ator e gerente de teatro James Burbage (1530-1597), juntamente com seu cunhado John Brayne (1541-1586).  Como tentativa de proteção, devido a um grande desentendimento entre o filho de Burbage e o proprietário do local, Gilles Allen, o The Theatre chegou ao fim. Com ajuda de associados, os filhos de Burbage, Richard e Cuthbert desmantelaram o teatro em 1598. 

 As madeiras do The Theatre foram usadas para construir o The Globe em 1599. Mas onde entra Shakespeare? Simples: havia uma companhia de teatro chamada Lord Chamberlain`s Men, da qual Burbage, juntamente com o “ator e dramaturgo de Stratford-upon-Avon” faziam parte. Começaram a apresentar as peças de Shakespeare com exclusividade, até que a “trágica história de amor”, Romeu e Julieta foi mostrada pela primeira vez no The Theatre. Acredita-se que a inesquecível e romântica peça foi escrita entre 1591 e 1595.

 Imagem arquivo pessoal – Sueli Lopes – Estátua de Shakespeare e o mural representando “Romeu e Julieta”, em Shoreditch  

 

E lá está um lindo mural de Romeu e Julieta, adornando um moderno prédio de escritórios, cheio de poesia, literatura e arte. Este é o charme de New Inn Broadway, o contraste entre o clássico e o moderno, grafites e as maiores companhias tecnológicas do mundo. Lindo de se ver, de se sentir, contemplar e apreciar. Shoreditch não é para apenas passar, há muito o que se descobrir ali. Essa riquíssima história é apenas parte de um quadrado. Imagine todo o distrito? Vale a pena conferir!   

 

Londres e Shakespeare: a Resiliência da Literatura e do Teatro

 

Devido a um desacordo entre o “landlord” e líderes do projeto do teatro (os Burgages), como forma de proteção, o The Theatre foi desmontado em uma noite, e todo o material foi levado para a construção do The Globe em 1599. A estrutura fácil de ser desmontada era comum, pois as companhias sofriam perseguições. O novo teatro foi projetado por Peter Street, com supervisão de Shakespeare.

Imagem de Blog.hiperion.art por Britannica.com

 

Em 1613, na primeira apresentação da peça Henrique VIII, numa cena de explosão de canhão, um chumaço de algodão atingiu o telhado e o teatro foi incendiado. Um ano depois, já estava reaberto. Porém, em 1644, devido à vitória dos “Puritanos” na Guerra Civil da Inglaterra (1642-1649), o The Globe foi destruído para dar lugar aos cortiços!

Imagem de Blog.hiperion.art – desenho do incêndio do Globe Theatre por Google

 

Em 1970, o grande visionário americano San Wanamaker fundou o projeto “Shakespeare Globe Trust”, que angariou fundos para a construção de uma réplica fiel do primeiro teatro. Infelizmente, ele não contemplou a reabertura, em 1997, pois faleceu em 1993.

A tradição do projeto de Shakespeare foi mantida: o atual ingresso de £5, para o The Globe, reforça “os terráqueos” da época, que pagavam apenas um “penny”. Bem próximo ao teatro, às margens do Rio Tâmisa, também se encontra o belíssimo mural, feito pelo artista autraliano Jimmy C, no número 1 da Clink Street, na entrada do túnel. Ou seja, o local carrega toda a atmosfera do imortal draumaturgo.

Imagem arquivo pessoal – Sueli Lopes – The Globe

 

O The Globe é para todos, como Shakespeare lutou! Toda Arte contribui para um mundo melhor. Por mais “Wanamakers” e menos “puritanos” no mundo!

 

Por SUELI LOPES

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