COLUNA HUMANILITERAR – “The Arrival”: A Chegada da Esperança!

COLUNA HUMANILITERAR – “The Arrival”: A Chegada da Esperança!

Caminhar por Londres é apreciar muita Arte, História, Literatura, por toda parte: desde a arquitetura, às esculturas e jardins. Além dos diversos museus, das incontáveis galerias de Arte, a capital mais famosa do Reino Unido esbanja muitos monumentos a céu aberto, uma espécie de cenário artístico, visto no cotidiano e, para muitos, até passa despercebido. Não por acaso, Virginia Woolf (1822-1941) sempre preferiu se movimentar a pé pelas ruas londrinas, e expressou: “essa grande cidade é meu único patriotismo.”

Deve ser por isso também que Michel Serres propõe uma nova abordagem para as ciências humanas: o “rodeio”, um método que minimiza o papel central da razão e valoriza os sentidos.  Para ele, a vitalidade genuína dos processos sociais, físicos e intelectuais reside nos fluxos, nos turbilhões e no movimento. Para mim, faz muito sentido, pois é nesse turbilhão, nessa movimentação dos sentidos, que paramos para apreciar melhor o que está ao nosso redor.

Imagem do Monumento “The Arrival”, de Frank Meisler, situado na Estação de Liverpool Street- Londres por Sueli Lopes – arquivo pessoal

 

O pensamento de Serres nos convida a observar o conhecimento e as relações humanas através de um olhar que não fixa fronteiras rígidas, mas reconhece a vida no encontro do movimento com a mudança, na estática das marés e na lama dos lugares. Com esta possibilidade em vista, convido você, leitor, a “visitar” um monumento tão estático, mas que flui movimento: de voltar ao passado da História; de conectar com situações semelhantes presentes, de sonhar com um futuro em que haja mais esperança.

 

Preciso confessar que sou uma observadora por natureza. Construo, também, minha escrita, a partir dos lugares que contemplo. Gosto da arte de descrever lugares com afeto (Topofilia). Se não for pretensão de minha parte, me considero uma desbravadora da alma dos lugares. O termo topofilia é definido como “todos os laços afetivos dos seres humanos com o ambiente material” (TUAN, 1980, p. 107), englobando desde o prazer estético no turismo até a ligação emocional com a casa ou com a terra.

Liverpool Street, por exemplo, uma das estações mais charmosas de Londres, tem muita história para contar. Ela carrega um contraste entre o moderno e o antigo. Entre a agitada vida londrina e a contemplação do belo (àqueles que ainda têm tempo e sensibilidade para tal). No meio de tantas experiências vividas e narradas ali, há uma destacável. É bela (pelo resgate) e, ao mesmo tempo, trágica (pelo sofrimento que exprime). Está representada por um monumento em frente uma de suas entradas. Como toda Arte, ela nos permite resgatar a História, que nos dá acessibilidade ao passado, além de nos inspirar para um presente e futuro mais humanos.

 

    Incrível como o bronze, em sua beleza e frieza,  foi capaz de mostrar de forma tão clara e harmônica, a expressão de cinco crianças: assustadas, encantadas, pensativas, confusas, inseguras. É incrível como a Arte é expressiva, como ela tem poder para nos desnudar, arrancar de nós emoção, curiosidade, conexão. De fato, os lugares nos despertam os cinco sentidos!

    Impossível não se emocionar ao observar a forma que a menina mais nova abraça seu ursinho de pelúcia. Aquele objeto parece um refúgio para aquela criança que ali chegou sem saber o que viria para seu futuro. E o violino no chão? De cortar o coração. Cada detalhe da belíssima escultura nos remete a várias indagações, a “alma” daquele lugar é viva demais! 

    “The Arrival”, do artista Frank Meisler, é, na verdade,  um memorial às dez mil crianças judias que chegaram à Grã-Bretanha, buscando refúgio da tirania nazista em toda a Europa. O mais surpreendente: o autor do monumento, Frank Meisler, foi uma dessas crianças resgatadas. Cresceu e encontrou uma forma maravilhosa de mostrar ao mundo parte, não só de sua história, mas do percurso de muitos/as meninos e meninas. Seus pais, como da maioria das crianças salvas, morreram pouco tempo depois que ele foi resgatado. Eis, uma vez mais, a Arte com poder de eternizar um legado, emocionar gerações futuras. 

 

Naquela entrada de vidro da estação de Liverpool Street encontra-se o retrato do programa que foi chamado de Kindertransport, alemão para “transporte de crianças”. O grande projeto foi apoiado e incentivado pelo Governo Britânico, juntamente com o esforço de muitos filântropos, os quais  trabalharam em equipe  para garantir a segurança do maior número possível de crianças que chegassem à Inglaterra, mais precisamente, à Estação de Liverpool Street. Vale, portanto, destacar o espírito de filantropia que o britânico carrega. É realmente uma nobreza que faz parte do estilo de vida da maioria desse povo.

Numa das diversas vezes que eu parei para contemplar a beleza daquela escultura, me vinha à memória o que ocorreu ao longo de nove meses entre 1938 e 1939: o “Kindertransport” foi, de forma brilhante, uma resposta quase imediata à devastação dos eventos da “Kristallnacht”, em cinco de novembro de 1938, em toda a Alemanha. É o retrato de uma noite em que judeus alemães foram espancados, torturados, assassinados e enviados de forma aleatória aos campos de concentração. 

Para minha surpresa, enquanto eu observava a beleza e meditava na história daquele pequeno museu a céu aberto, uma criança subiu na base de mármore onde ficam as estátuas (essa prática é permitida) e começou a interagir com o menino da escultura, como se enxergasse nele, vida. Parecia que, inconscientemente, aquele garoto quisesse dizer alguma coisa à criança da escultura, dar boas vindas! Só consegui pensar que hoje a história, em um outro aspecto, de uma outra maneira, se repete: presenciamos de novo guerras e, com certeza, as pessoas que mais sofrem são os pequenos e inocentes.

 

Tomara que todas as crianças, não só da Ucrânia ou da Palestina, mas de todo o mundo, também tenham uma CHEGADA  segura em algum lugar! Tomara que elas sejam todas resgatadas, cuidadas, amadas. E que nós prossigamos dispostos  a seguir os bons exemplos, a nos inspirar em pessoas que semearam o bem no decorrer de nossa nossa História. Há sempre uma forma de fazer a diferença.  Melhor ainda, há diversas maneiras de eternizarmos o nosso legado por meio da escrita e da Arte.

Que sejamos também encorajados a isso, para que abençoemos  nossas futuras gerações, como fez Frank Meisler. Afinal, conforme pontuou Charles Dickens (1812-1870): “Ninguém pode achar que falhou sua missão neste mundo, se tiver aliviado o fardo de outra pessoa.”

Nunca, jamais, em tempo algum, nos esqueçamos de que, conforme expressa o Talmude, “Aquele que resgata uma única alma é creditado como se tivesse salvado o mundo inteiro!”

 

REFERÊNCIAS: 

BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Chicago e  Londres, The  University of Chicago Press, 2000. Edição original, 1972;

SERRES, Michel [1969]. Hermes. Uma filosofia das ciências. Tradução de   Andréia Daher. Rio de Janeiro, Garra, 1990:

______________ [1977]. O nascimento da física no texto de Lucrécio. Correntes e turbulências. Trad. Péricles Trevisan. São Carlos, Ed. Unesp e Edufscar, 2003;

______________ [1985]. Os cinco sentidos. Filosofia dos   corpos misturados –  I. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001;

 TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.                               

“The Kindertransport Statues Of Liverpool Street Station”. Available at https://londonist.com/london/history/kindertransport-statues-in-liverpool-street-station. Acessed: 03 December 2024.

 

  • Imagem do Monumento “The Arrival”, de Frank Meisler, situado na Estação de Liverpool Street- Londres por Sueli Lopes – arquivo pessoal

Por SUELI LOPES

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