“Eis que alcancei o outono de meu pensamento”.
(Charles Baudelaire)
Não era outono. Era primavera, e havia muitos girassóis, assim como trigos. E também havia corvos sobrevoando os campos. Que distração a minha! Minha expressão é sobre o outono de um pensamento, de um sentimento, de uma percepção. Há tantas formas de “outonizar” a vida, o olhar.
É que vou falar de um vilarejo francês, o qual nos remete a “Baudelaire”, que nos lembra o Simbolismo, o retrato do outono. Incrível mesmo é a capacidade tão rápida e criativa que nosso cérebro tem de associar imagens, conhecimentos, histórias, cenários. Tudo em algo único e novo. A tão falada sublimação, o poder da criação, a nova ideia ao se materializar.
O caminho dessa nova ideia se revela, pouco a pouco. É um mistério, mas, ao mesmo tempo, é fruto de tudo o que já buscamos. O mundo das ideias é tão infinito que, muitas vezes, tememos nos adentrar a ele, hesitamos em seguir o percurso que nos é revelado. Nós e essa mania de “mistificar” tudo. O poder da criação, materializado por meio de obras-primas, exige coragem. Ousadia para mergulhar no rio da “Água da Vida”. Assim, imersos nesta água, recebemos a criação.
A responsabilidade de trazê-la à tona, apresentá-la ao mundo físico, está nas mãos de cada artista. Alguns ignoram, preferem não se expor. Outros, como fonte, entregam, transbordam, seguem o fluxo. Seja por meio da escrita, da fotografia, das artes plásticas, ou qualquer outra obra-prima.
Não é à toa que Van Gogh disse: “procura compreender o que dizem os artistas em suas obras-primas”, os mestres sérios, aí está Deus. Há que se ter muita sensibilidade para enxergar, não só uma obra, mas o grande poder do Criador, manifestado pelo artista. Há de se valorizar o momento, o poder da criação, em cada nova ideia que se materializa. É a expressão de algo novo que veio de outra dimensão. Por isso, todas às vezes que você observar uma obra-prima, tente também sentir a energia do poder que ela carrega. Isso é surreal. Eis aqui um texto que nasceu na atmosfera da contemplação de um cenário, e marcou minha vida para sempre.
Vamos lá!
Auvers-sur-Oise, França, março de 2018. Era véspera de meu aniversário. Eu saí de Portugal, onde morava, e fui passar uma semana na França. A ideia era celebrar meu dia em Cocherel, com minha irmã, na casa de um casal de amigos, daqueles que a vida nos dá de presente, “Celso e Isabel Parollini”. Os dois, muito hospitaleiros, logo sugeriram que fôssemos conhecer a cidade onde Van Gogh, viveu os últimos dias de sua vida.
O vilarejo é pequeno, é charmoso, é despretensioso. É uma espécie de “museu” aberto. Há réplicas das obras do artista espalhadas pela cidade, nos locais exatos onde ele pintou. Observar as telas diante dos cenários que o inspirou é algo instigador. Impossível parar diante de cada uma e não sentir a atmosfera dos momentos da criação.
Chegamos bem cedo. O pequeno vilarejo ainda dormia. E fomos acompanhar as réplicas das obras do grande gênio. Cada uma remete a uma história, um sentimento, uma indagação. A primeira delas está na praça principal, e retrata a “prefeitura” do lugar. É linda e mostra a arquitetura daquele prédio com muita particularidade. Ao fundo, bem do outro lado da rua, está o albergue onde ele morou. Permanece simples, o quarto onde ele viveu continua da mesma forma, como símbolo de memória e respeito ao grande gênio Van Gogh.
Fomos para a mesa de um café, bem no meio da praça. De lá, eu observava o albergue, a distância entre a tela e o cenário. Era tudo mágico. Do lugar que Van Gogh ficava, conseguia ver as árvores, o céu, por trás daquela arquitetura tão clássica e francesa. Também vi girassóis pintados nos comércios, inclusive, caixas do correio com réplicas das obras do pintor. “Ele” está presente em toda a cidade.
O sentimento de observar a vida, mesmo depois da morte, consola a alma da gente. Van Gogh se foi, não suportou a depressão e as crises psicóticas. Mas a obra dele ficou e, daquela forma retratada em Auvers-sur-Oise, permanece mais viva ainda. Achei fantástica a forma que posicionaram aquelas réplicas. Dá uma ideia do momento da sublimação, da criação, isso é muito vivo.
Aos poucos, pessoas de diversas partes do mundo foram chegando, a vila começou a ficar bem cheia. A atmosfera da arte crescia, contagiava. Confesso que me emocionei. Chorei de gratidão, pelo privilégio de estar ali. Também derramei lágrimas de tristeza pela forma trágica que Van Gogh deu fim à própria vida. Um turbilhão de emoções, ao sentir aquela energia tão forte. É incrível o poder da vida nas obras-primas. É como se houvesse uma batalha entre a vida e a morte a ser contemplada. A morte do pintor e a vida das obras, imortalizadas.
A minha atenção também se voltou ao carinho tão peculiar que os visitantes tinham. Bom, era primavera, e era possível encontrar girassóis. E, assim, eu via acontecer o retorno dos girassóis. Naquele outono de primavera. Ou seria uma primavera “outonizado”? Não sei definir, pois era um outono do meu pensamento, vivido na primavera.
Enquanto aquela pequena multidão passava pela igreja que ele pintou, pelo campo dos corvos, pelo campo de trigo, levavam girassóis. A última tela (O campo e os corvos) fica já bem próxima do cemitério onde foram enterrados os irmãos Vincent e Theo.
Uma caminhada sublime, surreal, que nos fizera sentir dentro das telas, dos sentimentos do artista. E lá chegamos nós, nos túmulos, cheios de girassóis, enquanto levávamos os nossos.Como se quiséssemos dizer:
– Você se foi, mas seu legado ficou, sua arte foi imortalizada, os seus lindos girassóis caminham pelo mundo. E sim, conforme você nos alertou, compreendemos sua Arte como algo vindo de Deus, do criador. Nós aprendemos a achar belo, a contemplar mais, a observar mais a natureza, como você sugeriu!
– Não sabemos se é verdade a versão popular sobre sua tela Girassóis: que você a pintou com o intuito de deixar o quarto da pensão Ravoux mais alegre para receber Gaugin. Mas temos a certeza de que você deixou o quarto mais vivo sim. Aliás, você deixou o mundo mais alegre, mais nobre, com sua Arte e com suas palavras escritas nas cartas ao seu irmão, Theo. Seus girassóis caminham pelo mundo, trazendo sempre a esperança de uma nova primavera.
Obrigada, querido Van Gogh!
Eu também deixei os meus, agora também faço parte do retorno dos girassóis.
Por SUELI LOPES