Marília saiu correndo da sala de jantar, subiu a escada e trancou-se no quarto. Estava tomada por um sentimento que ainda lhe era desconhecido. Pegou suas bonecas e atirou-as contra a parede. Os ursinhos de pelúcia que estavam em cima da cama foram atirados no chão com toda força. Retirou a presilha dourada em forma de borboleta que prendia seus longos cabelos louros e a atirou contra sua casinha de bonecas próxima do cavalinho de madeira. Revirou todo o quarto, e quando já não tinha mais o que bagunçar, ajoelhou-se ao pé da cama e pôs-se a chorar. Quando se acalmou, ela olhou ao seu redor, teve uma feição triste, parecia estar arrependida do que fizera ao seu santuário e aos seus amigos mais fiéis. Então pegou o ursinho mais próximo a ela, abraçou-o, acariciou-o e o beijou.
– Me perdoem, eu não queria ter feito isso com vocês. – Disse Marília, com seus olhinhos verdes lacrimejando, e assim passou a confessar ao seu amigo o que lhe ocorreu.
– Pompom, ontem de noite eu tive um pesadelo, fiquei com medo, e fui para o quarto de papai e mamãe pedir para dormir com eles.
Naquela noite saindo do seu quarto, Marília abre a porta vagarosamente, olhando para os lados com uma face assustada. Vendo que o abajur estava aceso, ela dá os primeiros passos para fora. Apressou-se pelo corredor, evitando olhar para os quadros assustadores que seu pai comprara recentemente numa venda de garagem. Aproximando-se do quarto, Marília começou a ouvir uns gritos bem abafados, e ficou mais assustada.
– O que será que está acontecendo com papai e mamãe?
Marília aproximou os ouvidos da porta e ouviu um barulho, do que parecia ser uma briga violenta. Então buscou um banquinho em seu quarto para conseguir espiar melhor pelo buraco da fechadura. Quando retornou, percebera que o barulho havia se intensificado. Posicionou o banquinho e pôs-se a espiar. Nesse momento ela viu seu pai em cima de sua mãe agarrando o delicado pescoço dela. Ele tinha uma feição rude, jamais fora vista por Marília aquela face. Era agora um desconhecido para a menina.
– Eu vou acabar com você sua vadia. – Disse o pai, apertando o pescoço da esposa. Marília ficou paralisada vendo tamanha crueldade vinda de seu pai, que sempre se mostrou um homem bom e incapaz de fazer mal a uma mosca.
– Você não tem culhões seu cretino! Vai ter que se esforçar muito mais, eu que irei acabar com você primeiro.
Possesso pela provocação da esposa, ele deu-lhe um tapa em sua face imaculada. – Por que está fazendo isso papai?! sussurrou Marília. Descendo do banquinho com face chorosa ela retornou ao seu quarto.
Pela manhã, Marília está tristinha no café da manhã, servida pelo pai que está agindo normalmente, como sempre foi em sua vida. A mãe se aproxima e senta-se ao seu lado.
-Você está linda, meu bem. – Aproximando-se do ouvido de sua mãe, seu pai ainda sussurra – Só não mais que ontem! – E dá um beijo em sua face.
Ela dá um leve tapa no braço dele e diz.
– Obrigada meu amor! Bom dia filha, olha o vestido que seu pai me deu ontem pelo aniversário do nosso casamento.
Sua mãe usava um vestido preto, um colar dourado com uma pequena medalha em torno do pescoço, maquiada como uma boneca de porcelana. Consternada com a interação dos pais, Marília nem prestou atenção no que sua mãe lhe falara.
– Filha, não me ouviu? – Perguntou a mãe.
Porém Marília estava perdida em devaneios. Recordava da cena em que seu pai agarrava o pescoço de sua mãe, o palavrão, as expressões dele, a forma como estavam agindo há poucos minutos. E não conseguia entender.
-Marília, me responde, você não gostou do meu vestido?
Marília olha para o pescoço da mãe e relembra a cena novamente. Levanta-se precipitadamente e sai correndo. Seus pais se olham, e ficam se perguntando o que aconteceu à Marília para que reagisse daquela maneira.
– Talvez tenha tido mais um pesadelo e estava se lembrando dele. – Disse o pai.
– Mais tarde vamos deixá-la com os meus pais para irmos comemorar nosso aniversário. Isso vai fazê-la se sentir melhor. – respondeu a mãe.
– E certamente poderemos aproveitar um pouco mais nosso aniversário. Comprei outros presentinhos para você. – Disse o marido.
Ela ri e beija seu marido, que pega lentamente em sua nuca. E em seguida serve-lhe o café da manhã.
Enquanto isso, Marília está concluindo a história para seu confidente, agora tentando entender o porquê de eles estarem agindo como se nada tivesse acontecido, após a briga que tiveram a noite passada. Sem compreender, ela dá um suspiro e começa a arrumar seu quarto.
Por DORGIVAL DE ANDRADE