CONTOS – A saia de Ganga por Alexandra Ferreira

CONTOS – A saia de Ganga por Alexandra Ferreira

Estou deitada numa confortável cadeira de linho de riscas azul índigo e branco, numa bela esplanada da minha praia de eleição. O sol espreita na linha do horizonte onde o céu toca no mar. Observo a quietude da cidade adormecida, embalada pelo timbre grave das ondas do mar que suavemente se espraiam no manto de areia macio, escurecendo-o.

Dois copos de plástico com as cores do arco-íris, um par de óculos de sol e de chapéus de palha pousados em cima duma mesa quadrada de madeira retratam os resquícios das últimas horas.  Na cadeira paralela de linho de riscas azul-mar e branco, um corpo exausto recupera duma ressaca. 

O meu coração ainda palpita! As letras das canções circulam à volta da minha cabeça, escapando da minha boca e a música, essa ainda vibra nos meus ouvidos ensurdecidos pelos sons agudos que entoaram, envolvendo o mar de cabeças que povoaram o parque da cidade. 

Sinto-me extasiada, sinto-me viva como há muitos anos não me sentia!

A personagem conservadora de olhar tímido transfigurou-se numa fã ousada.

Com as mãos trémulas dispo o casaco e tiro a camisola branca de alças largas que abraço, encosto-me e fecho os olhos absorvendo o odor intenso que paira no ar. A maresia acaricia o meu tronco, apenas vestido com o soutien colorido de flores, com pequenas gotículas de água salgada e enrijece os meus mamilos fazendo-me estremecer. Volto a vestir o casaco de cabedal preto da minha adolescência e rememoro o que despoletou esta noite memorável.

Há poucos meses subia a avenida, a caminho da faculdade, para a classe de Antropologia I, quando a rádio noticia que os “Duran Duran” fazem parte do cartaz do Festival Primavera Pop- Rock. Fiquei tão eufórica que liguei de imediato para a Carlota:

– Carol, não vais acreditar no que acabei de ouvir! – Grito ao telemóvel assim que ela atende.

– Bom dia, Xana. – Responde uma voz ensonada.

– Bom dia, Carol. Dou-te apenas uma hipótese para acertares no desafio que te vou lançar. Estás preparada para responder?

– Minha querida amiga ainda é de noite! Que horas são?

– São 7h30 da manhã, dorminhoca. Já estou quase a chegar à faculdade. – Respondo impaciente, premente em partilhar a notícia bombástica.

– Voltaste a aceitar o horário dos matutinos? Quantos alunos tens na sala?

– Eu gosto de madrugar. – Respondo um pouco amuada com o comentário que me soou inoportuno.

Ela boceja três vezes seguidas evidenciando o fastio. Ouço ruídos de passos e uns segundos depois, o barulho da descarga do autoclismo. A ânsia não me deixa ficar mais tempo calada; começo a irritar-me com a espera. Persisto no objetivo:

– Va lá Carol, presta-me atenção.

– És tão maçadora! O que pode ser tão importante para me ligares de madrugada?

– Vou ignorar o que ouvi, porque és a minha melhor amiga. Quem nos motivaria a ir a um concerto?

– Xana, Xana, Xana. Tu sabes a resposta…

– Quero ouvir da tua boca… – Digo com determinação.

– O melhor grupo da Galáxia – os Duran Duran! – Diz já totalmente desperta e com entusiasmo.

– Certíssimo! Não esperaria ouvir dos teus lábios outro nome. Carlota Maria, acabou de ganhar um bilhete para assistir ao concerto dos Duran Duran no festival mais desfrutável deste pacato país plantado à beira-mar em que temos o prazer de viver. – Declamo numa voz muito solene.

A emoção é tanta que não é possível ser expressa por palavras. Ficamos ambas em silêncio por minutos, aquietando a mente.

Chego ao parque da Faculdade, estaciono o carro e aguardo por uns segundos que recupere. Finalmente ouço uma voz rouca e excitada:

– Sabes amiga, desta vez estás perdoada.

Alegrada imaginei o rosto da minha amiga – os pequenos olhos castanhos deviam acompanhar os lábios finos num sorriso rasgado, formando pequenas covinhas nas bochechas sardentas. Continuo feliz.

– É hora de ir tomar o cimbalino matinal. Ainda te lembras do creme e do aroma?

– Sim, querida, que saudades! Não há café como esse.

– Concordo. Beijocas e um bom dia para ti.

– Beijocas.

A primeira coisa que fiz, assim que entrei no meu gabinete, foi ligar o computador e adquiri dois bilhetes.

Quando éramos jovens não tínhamos dinheiro para comprar um bilhete para um concerto e em adultas embrenhamo-nos na pesquisa, deambulando entre bibliotecas e saltitando por locais arqueológicos, esquecendo os prazeres mundanos. Tornamo-nos duas quarentonas sombrias, enroupadas com trajes monótonos e cabelos apanhados num clássico rabo-de-cavalo.

Esse dia passou tão lentamente – o ponteiro do relógio teimava em percorrer os segundos como minutos, perpetuando a minha ânsia em terminar os compromissos letivos, ir para casa e colocar na aparelhagem que comprei na feirinha de velharias, o meu álbum predileto #Rio#. Diariamente, aos serões, reconfortada no sofá de veludo verde sálvia, deliciava-me com os discos de vinil, bebericando meio cálice de vinho do Porto – permitindo-me a uma leviana extravagância semanal.

Numa dessas noites de desvaneio, atrevi-me a abrir o armário das “excentricidades” – como carinhosamente denomino o espaço reservado aos trajes festivos e arrojados. Observei, excitada, todas as peças meticulosamente ordenadas – os meus olhos brilharam, quando visualizei a cruzeta com um casaco de cabedal preto, uma saia de ganga e uma camisola de alças branca. Tirei-a e toquei na roupa, inalando o odor do perfume que usava, quando tinha menos duas décadas.  Recoloquei a cruzeta no guarda-fatos e só a umas horas voltei a tatear as três peças, deixando-me seduzir pela voz do coração.

Já tinha as calças de ganga e a t-shirt posicionadas em cima da cama, quando fui impelida a voltar ao quarto de vestir e abrir a porta do canto. Os meus olhos encontraram de imediato a cruzeta, os meus braços moveram-se e a mão direita retirou-a. Apertei a roupa contra o peito e voltei a sentir o aroma do perfume – que saudades da minha juventude, da rebeldia, da irreverência, da alegria. Ouço uma voz:

– Xana, veste a saia de ganga.

Virei-me e não vi ninguém, mas a voz persistia, insistindo que a enroupasse.

– Xana, atreve-te e enfia a saia de ganga.

Despi-me e vesti-a. Olhei-me ao espelho, soltei o cabelo e sorri, embora um pouco mais magra, a saia ainda me ficava bem, delineando as minhas ancas, deixando os joelhos nus. Num impulso vesti a camisola justa com um decote atrevido e fiquei agradada com o resultado. Permaneci algum tempo mirando-me no altivo espelho retangular e admirando a esbelta figura espelhada. Fiz várias tentativas para me desnudar sem sucesso; os braços desobedeceram, mantendo-se imóveis. Impotente, calcei as sapatilhas pretas e apanhei o casaco. Ouço novamente a mesma voz:

– Xana, estás fantástica!

 A Carol chegou nesse segundo ficando embasbacada quando me viu e teve de se sentar.

– Caramba, amiga, tu estás mesmo bonita! Quem me dera ter o teu corpo e a tua coragem.

Abraçamo-nos com carinho – a idade tinha sido menos generosa com ela. Saímos disparadas para chegar bem cedo ao recinto, pretendíamos ficar mesmo junto ao palco, na primeira fila e fomos bem-sucedidas. Quando os ponteiros se uniram, na hora em que o sol assume a perpendicularidade com o planeta azul, as duas amigas sentaram-se na relva e degustaram um cachorro e uma cerveja preta bem gelada.  A tarde foi magnânima, as horas passaram como se fossem minutos, imiscuídas na multidão de fãs, cantarolando todas as canções editadas pelos Duran Duran. Já a escuridão se tinha instalado, quando eles subiram ao palco; o público ficou em rubro.

Estava uma noite irrepreensível – o céu pintado de azul suave e forrado de estrelas era clareado pela lua cheia, e a ligeira brisa marinha que soprava, transportava um agradável odor a erva e algas. Contagiadas por esta ambiência, bebemos várias cervejas e até demos uma passa num charro, que um quarentão bem interessante nos ofereceu, partilhando da excentricidade instalada.

Mergulhei e surfei todas as ondas – cantando, gritando, saltando e dançando com a multidão que endurecia com eloquência após cada música.

Quase no final, quando pensávamos que o auge já tinha sido atingido, tocam a canção Save a Prayer. Um grupo de fãs tira as camisolas e com os braços direitos bem esticados fazem círculos ao ritmo do som da música, outro eleva um isqueiro aceso na mão destra, e com os braços também esticados, fazem movimentos ondulatórios para ambos os lados. A Carol acompanha-os; eu decidi juntar-me ao primeiro. Dispo a minha camisola, exibindo o meu soutien. O quarentão do cigarro observa-me e também tira a dele. No final estamos todos em transe e ele aproveita para me beijar.

Meu Deus, que loucura! Passei da professora séria, cujos alunos olham com complacência, para a quarentona desbocada que despe a camisola num concerto e aceita um beijo dum desconhecido.

A transformação que senti, quando enroupei a saia de ganga, anestesiou o meu cérebro, adormeceu a razão e despertou a paixão de viver intensamente os momentos como únicos.

E aqui estou eu, sentada nesta esplanada, ainda atordoada com as recordações duma noite longa e inesquecível, partilhada com a minha melhor amiga. Atrevi-me, fui ousada e experienciei emoções imortais.

Por ALEXANDRA FERREIRA

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