CONTOS – Dois presentes de Natal por Neri Luiz Cappellari

CONTOS – Dois presentes de Natal por Neri Luiz Cappellari

Faltavam, aproximadamente, trinta dias para o Natal. As lojas começavam a expor as suas decorações natalinas. Na cidade, haviam luzes multicores, árvores do festejo, brinquedos para as crianças – porque não, para os adultos também. O Papai-Noel, distribuindo doces, tornava-se o ator principal da festa.

Naquele mês de novembro, o comércio colocou um atrativo a mais. Os superdescontos da “Black Friday” serviam para estimular os consumidores a comprar, muitas vezes, até o que não precisavam. Comigo não poderia ser diferente.  Adquiri uma “bike”, após meses de namoro, em uma loja perto de minha casa.  Pronto! Papai Noel foi bonzinho naquele ano, agora, eu poderia pedalar nos fins de semana. Durante os dois finais de semanas seguintes, cumpria a minha meta e pedalava vários quilômetros. Eu estava adorando o novo brinquedo.

Porém, essa lua-de-mel com o veículo de locomoção não iria durar muito tempo.  Em uma quarta-feira após a saída do trabalho, ao chegar em casa, descobri que a minha bicicleta não estava mais no lugar onde a tinha deixado. Perplexo custei a acreditar que ela fora furtada.

Levaram meu presente de Natal. Frustrado, após várias indagações a meus vizinhos a respeito do furto, sem sucesso, fiz um boletim de ocorrência na delegacia.

Passaram-se duas semanas, o Natal se aproximava, e eu já tinha me conformado com o fato de ter perdido o meu presente. Contudo, no final da tarde de terça-feira, uma semana antes do feriado, recebi um telefonema da delegacia.  Descobriram quem tinha furtado a minha bicicleta e inclusive estavam com o delinquente sob custódia.

Imediatamente me dirigi ao local. Ao chegar lá, deparei-me com uma pessoa que aparentava uns 50 anos de idade. Observei-o de longe. Tinha uma aparência cansada, era magro, vestia-se de uma maneira muito simples, e estava a barba por fazer. Conversei com o delegado, em uma sala separada, e perguntei a respeito do infrator.

O policial disse que, no momento, ia fazer o registro do furto. Se eu quisesse mais dados acerca do delinquente, poderia olhar os autos contidos junto a uma pasta que deixou à minha disposição. Curiosamente foi o que eu fiz. Nesse dossiê, constavam a confissão do furto da bicicleta e os motivos do crime. Seu nome era Antônio Jesus dos Santos, tinha 42 anos de idade, embora aparentasse muito mais. Ele morava na Rua da Liberdade, 32, em uma periferia pobre da minha cidade. Aquele bairro era conhecido por todos pela sua violência e pela falta de infraestruturas básicas, como água e esgoto.  Ele tivera várias passagens na prisão e, há seis meses, em sua última reclusão, conquistou a sua liberdade condicional.  A descrição continuava dizendo que Antônio de Jesus tinha sido, recentemente, abandonado pela sua companheira.  Ela o deixara sozinho com o cuidado dos três filhos do casal. Pela sua condição de ex-presidiário, ele não conseguia emprego, e o bico de catador de latinhas não era o suficiente para suprir as necessidades básicas de sobrevivência de sua família.  A bicicleta, dizia o homem, estava servindo para uma locomoção mais rápida em seu trabalho de catador, e, nas horas vagas, para o passatempo de seus filhos. 

Enquanto ainda estava terminando de ler o conteúdo da pasta, o policial encarregado dessa notificação entrou na sala e disse que o caso estava encerrado.  O homem não tinha dinheiro para pagar a fiança da soltura. Porém, como não tinha sido dado o flagrante, poderia responder em liberdade. O que para mim, que já estava sensibilizado com caso, foi um alívio. Como um homem, dentro da prisão, poderia sustentar seus três filhos?  Em seguida, o delegado apontou para o estacionamento externo à delegacia. Lá estava a minha bicicleta pronta para a retirada imediata.  E evidentemente foi isso que eu fiz.

No próximo fim de semana, peguei a “bike” e fui pedalar, porém o vento que batia em meu rosto não me trazia um ar de liberdade nem de prazer.  Aquele presente não me pertencia mais, pois eu o tinha furtado de volta de alguém que merecia bem mais do que o próprio dono. Ao me olhar no espelho, vi um burguês egoísta, egocêntrico e alheio ao que acontecia ao seu redor. A história daquele homem e de seus filhos não saía da minha memória.  Quantas vezes nós erramos em nossas vidas? Quantas vezes nos foi negada a chance de recomeçar? Quem somos nós para julgar quem quer ter a chance de voltar plenamente à sociedade?

A dois dias do Natal, tomei a decisão que iria contrariar a opinião de muitos, mas particularmente me deixou mais leve e empático. Enquanto que, para mim, aquele meio de locomoção representava apenas um objeto de desejo para meu prazer em fins de semana, para aquela família, representava uma oportunidade de recomeço no trabalho e de lazer para os filhos.  Às vezes, o supérfluo para nós é vital para alguém menos afortunado na vida. As pedaladas em fins de semana poderiam esperar para um outro momento. Foi com a consciência tranquila e com a certeza de que estava fazendo o que era certo, que, sem vacilar, dirigi-me à Rua da Liberdade, 32, e, para a perplexidade de Antônio de Jesus e de seus filhos, doei-lhes a bicicleta como meu presente de Natal. 

Hoje, já se passaram três anos que essa história aconteceu. Para mim, tornou-se  uma tradição prazerosa visitar essa família – que, hoje, mora em meu coração –  em todos os Natais. Antônio de Jesus, finalmente, conseguiu um emprego com carteira assinada. Seus dois filhos estudam em uma escola pública na periferia de minha cidade. A bicicleta continua, lá, cativando o sorriso de duas crianças, e… alimentando a minha alma.

Por NERI LUIZ CAPPELLARI

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