CONTOS E MINICONTOS A escolha por Glenda Brum

 Olhava a folha diante de si, com os pensamentos em completa ebulição, sem rumo. Sempre trabalhou com a verdade. Seus pacientes confiavam nela, por essa razão. Porém, aquela folha de papel colocava em desafio a sua autodeterminação e os seus princípios. As paredes do consultório, pareciam se fechar sobre ela. A primavera se tornou um inverno gelado.
 Em seus muitos anos de medicina oncológica, o momento de apresentar um diagnóstico positivo, para a doença que todos receiam é delicado, mas necessário. Ela considerava que cada paciente conhecer o seu verdadeiro estado de saúde, era o melhor aliado, no desafio de vencer um câncer. Após a natural depressão que a má notícia causa, todos passam para fase da esperança e da luta. A verdade se torna o melhor agente de recuperação.
 As folhas de papel a sua frente colocavam isso tudo em xeque. Os exames haviam sido feitos, como se fossem uma simples rotina de um check up médico. Mas os resultados mais específicos, mostravam um quadro terminal, com pouco tempo para o desfecho daquela vida, tão jovem. Talvez restassem um mês, ou semanas, ou dias. Não era possível prever, pois esse desfecho depende de cada ser humano. Um quadro tão sério, que não importaria o que fosse feito, o final seria rápido. Qualquer procedimento usado poderia prolongar apenas em dias e tornar o pouco tempo restante, em algo torturante, com agulhas, soros, injeções… Uma prisão na cama de hospital.
 Olhava para os exames e o bilhete do seu cunhado, que pedia que não contasse nada, se os resultados fossem positivos. Ele suplicava que deixasse sua irmã viver seus últimos dias com felicidade plena, sem saber que a morte a esperava logo ali, na próxima esquina da vida. O que fazer? Qual o certo? Afinal, nenhum tratamento lhe faria recuperar a saúde. Agiria com a verdade transformando os últimos dias de sua irmã, em angústia; ou agiria com a compaixão da ignorância, e mentiria?
Após exames de rotina, que foram feitos porque a irmã se sentia muito fraca e sem apetite, os resultados provocaram suspeitas e novo exames foram feitos. Sua irmã tinha um câncer de ovário. Havia metástases em vários órgãos, o que tornava qualquer procedimento, sem um efeito positivo de cura. Era um câncer muito agressivo e tão espalhado, como estava, não havia nada a ser feito. Não havia salvação. Esse era o seu diagnóstico, confirmado por outros dois colegas, para quem pediu opinião.
Absorta pelo impacto causado pela constatação do inevitável, não percebeu a batida na porta e nem a entrada da pessoa que se aproximou e a enlaçou pelos ombros.
– Hello, maninha! Vim raptar você. E não me diga não. Sua secretária disse que você, não tem mais pacientes, hoje.
Isabela havia aberto o envelope dos exames, no momento que entrara no consultório. Nem dera a volta na sua mesa. Sentara na cadeira destinada aos pacientes. O susto foi duplo. Dobrou rapidamente os papeis em sua mão e desejou que a irmã não tivesse visto do que se tratavam.
– Um rapto? Parece bom! Já encerrei as consultas de hoje. Só preciso guardar alguns exames e estarei livre. – Trocou de lado e sentou-se em sua cadeira. Digitou um recado rápido para a sua secretária. Guardou os exames no envelope que vieram e os guardou na gaveta, chaveando-os. Suas mãos pareciam bobas, estavam geladas, mas ela suava. Sentia a camisa fina colando em suas costas. Pegou a bolsa e foi saindo.
– Não vai fechar a janela? Apagar a luz. Arrumar a mesa?
– Não. A Mariza faz depois. Estou com fome. O que você quer fazer?
– Também estou com fome. Então… Primeiro comer. Depois um filme. E pra terminar, um sorvete artesanal.
– Você veio com tudo planejado, não é?
– Claro! Não sabia se conseguiria tirar você do consultório, mas se eu tivesse êxito, e tive, precisava estar preparada.
A tarde voou. Olhava a caçula que ria às gargalhadas contando uma história do seu curso de pintura. Seus cabelos esvoaçavam e os fios às vezes tocavam o sorvete. Ela não se importava. Ela sempre admirou a leveza da irmã. Não importava a circunstância, ela sempre era plena, arrebatada em sua euforia, pela vida.
Já era fim de tarde. Vendo aquele rosto querido sorrindo, os olhos dela refletindo o pôr do sol, tomou a decisão mais difícil da sua vida, até ali. Adiaria a verdade, até o ponto que não pudesse mais ocultar. Pegaria uma licença, para poder estar com ela nesse período.
 Fariam muitos passeios, comidas, dormiriam na rede vendo as estrelas e andariam descalças na praia. Leriam algum livro juntas, como faziam antes. E comeriam pipoca colorida, em dia de chuva. Tinham pouco tempo, mas seria bem vivido. Teria boas recordações. E assim, com a escolha feita, sorriu para a câmera do celular da irmã, que já a abraçara para fazer selfies.

Por GLENDA BRUM

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