CONTOS E MINICONTOS – A vitrine da vaidade por Daniela Falcão

CONTOS E MINICONTOS – A vitrine da vaidade por Daniela Falcão

 Todas as tardes, no caminho até a padaria, passo em frente à vitrine de uma loja de roupas femininas. Nunca dei atenção, mas como hoje tenho tempo de sobra, decido parar e ver com calma.

 É uma loja estranha, escura, com roupas antiquadas. Não consigo enxergar muito além da vitrine. Parece ter muitas araras, algumas prateleiras, ninguém à vista.

 Está fechada? Tento a porta, por curiosidade, e está mesmo fechada.

 Volto à vitrine e observo os manequins. São dois em poses normais. Mas tem algo de sinistro naquela cena, não sei definir o que pode ser. Bom, nada me agradou, está fechada, não perco mais tempo: sigo em frente, vou comprar meu pão.

 Na tarde seguinte, passo novamente em frente à loja. Acho que segue fechada, a mesma escuridão, as mesmas roupas de ontem e a mesma sensação de que há algo errado. Dou uns passos para trás e examino a construção como um todo. Uma fachada normal de loja, olhando-a da rua, com letras floreadas sobre um fundo vermelho. “Vaidade”, até o nome é esquisito. A barriga ronca, então continuo meu caminho até a padaria. O restante do dia segue normal, terminando com a leitura de um livro, antes de cair em sono profundo.

 Acordo atrasada, tenho um projeto importante para entregar hoje! Sou desenhista, e preciso enviar algumas ilustrações até às cinco da tarde. “Tenho que me organizar mais”, penso enquanto tomo um café puro. Sento-me à mesa de trabalho e lá permaneço até terminar tudo o que prometi.

 As quatro e vinte, faço o último risco com precisão. Observo o trabalho com um sorriso orgulhoso. Consegui! Embrulho tudo com cuidado, alongo o corpo que estala inteiro. Pelo canto do olho vejo as horas e me assusto, preciso correr!

 Chego ao local exatamente às cinco horas. Excelente!

 Está tarde, tenho fome, e já que estou perto da padaria vou me dar um croissant de presente. Passo pela loja, e para o meu espanto, os manequins são diferentes, mas as roupas são as mesmas! Que mistério… por que alguém alteraria os bonecos e não as roupas de uma vitrine? Isso me faz parar e examinar a cena toda, com atenção. Os olhos são tão reais, que pintura perfeita! Mas, espera aquele ali tremeu? Dou um grito espantado, e imediatamente me sinto envergonhada. Será que alguém viu? Que besteira, gritando em frente a uma vitrine! Vou atrás do meu croissant, a fome já está me fazendo ver coisas.

 Na segurança da minha casa e comendo o meu prêmio, deixo a mente vagar. Tem algo de muito errado acontecendo naquela loja, bem à vista de todos. Ninguém percebe? A curiosidade começou a roer os meus nervos, não consigo dormir. E na insônia, um plano se desenha no meu cérebro.

 No dia seguinte, já pulo da cama com o intuito de seguir até a loja. Chego lá bem cedo, tem pouca gente na rua. A porta, segue fechada. Vou à vitrine e arregalo os olhos: aquele manequim que pensei ter se mexido foi trocado por outro, tão real quanto. Colo meu nariz no vidro para enxergar se há algo mais acontecendo ali dentro. Nada mudou as muitas araras escuras e nenhum movimento. As mesmas roupas nos manequins, os mesmos olhos realísticos que me angustiam cada vez mais. Faz anos que sei que esta loja está aqui, como nunca reparei em nada disso? Vejo uma gota escorrendo pela perna de um dos bonecos e meu cérebro apita. Como assim? Se lá dentro estivesse calor a ponto de condensar o ar quente, teríamos gotas na vidraça e em todas as partes descobertas dos manequins. Uma única gota, escorrendo, do nada?

 Preciso ver isso de perto. Dou a volta no quarteirão e chego nos fundos da loja. É uma parede de tijolos sem identificação, com uma porta pesada, trancada com corrente e cadeado. Analiso o tamanho dos aros para saber quais ferramentas precisarei para cometer o delito que me convenço ser necessário. É preciso seguir meus instintos e aplacar a curiosidade. Ansiosamente espero a noite cair. Está fresco, e a escuridão abraça as ruas rapidamente. Os olhares curiosos, caso existam, já não conseguirão me alcançar. Me visto de preto, coloco luvas e prendo o cabelo bem firme – é assim que vejo nos filmes! Pego uma pequena mala de ferramentas que já havia preparado, e saio.

 Sigo numa caminhada vigorosa até a porta dos fundos da loja. Paro e olho em volta, ninguém na rua, e não vejo movimentos nas janelas próximas. Abro a mala, pego um alicate e corto o cadeado com facilidade. Novamente dou uma checada, pode ser que alguém tenha ouvido o deslizar da corrente. Aparentemente sigo ilesa. Puxo o trinco e, surpresa, está aberto! Agora é o momento da decisão: entro, ou deixo para lá e sigo a minha vida pacata?

 A curiosidade não me deixa outra escolha, eu entro. Fecho a porta atrás de mim, e a escuridão completa me dão falta o ar. Rapidamente puxo a lanterna e começo a minha pesquisa. Estou no estoque, tem muitas roupas dobradas sobre as bancadas e dentro de nichos.

 Caixas fechadas, papéis por todos os lugares, bagunça e sujeira em todo canto que ilumino. Vou andando devagar, não quero tropeçar, fazer barulho, cair… não há ninguém ali, mas não quero chamar a atenção. Afinal, sempre há o risco de alguém passar pela rua e escutar algo. Avanço um cômodo e meu coração quase para: dou de cara com um manequim de olhos arregalados, a imitação perfeita de uma pessoa assustada. A boca aberta, os dentes, vejo dentes perfeitamente moldados, que coisa horrorosa! Cubro a minha própria boca para abafar um grito, a lanterna cai e desliga. Meu Deus! Abaixo rapidamente, tateando o chão em busca do objeto perdido e para minha sorte, o encontro logo. Acendo a luz e o facho ilumina as pernas do mesmo manequim: vejo pelos poros… não consigo evitar, encosto a mão naquela perna, é macia, mas está fria! A realidade me atinge como um raio: isso é uma pessoa de verdade! Levanto rapidamente e me viro com a intenção de correr para a porta, mas dou de cara com outro boneco – que não estava ali antes. Grito, agora sem pudores, e desvio como posso daquele novo obstáculo. Mas não é um manequim, é uma pessoa de verdade! Ela gira sobre os calcanhares e me atinge com um objeto pesado, minha vista escurece, caio de joelhos, e antes que consiga me defender, ela me chuta. Desmaio.

 Tenho a sensação de que passou um longo tempo antes da minha vista voltar, aos poucos, meio embaçada. Tudo vai clareando vagarosamente. O foco se ajeita, e enxergo um vidro, e a rua à frente. Tento olhar em volta, me mexer, não consigo. A boca não abre, meus braços, não os sinto!

 Um movimento à frente chama a minha atenção. Tem alguém parado, forçando os olhos para entender o que vê – no mesmo segundo em que eu entendo o que ele vê: sou eu, eu sou o novo manequim da vitrine!

Por DANIELA FALCÃO

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