A lembrança daquela noite em plena escuridão, a bordo de uma carcaça de um navio em decomposição na orla marítima de Fortaleza, ainda me causava arrepios. Saber que a pouco mais de 600 metros, as pessoas passeavam pelo calçadão, corriam, estavam nas suas bicicletas, patins, viam artistas de ruas, comiam nos carrinhos de lanche, ou nas barracas e ninguém podia ouvir os gritos de terror vindos do Mara Hope. Uma embarcação construída em 1967, que viajou parte do mundo, até que em 1983, no Texas, um incêndio destruiu a casa de máquinas do navio, e fez com que 40 pessoas tivessem que sair às pressas do mar.
Dois anos depois, a caminho de Taiwan, quis o destino que na Praia de Iracema, defronte para o Marina Park Hotel, o já condenado navio virou sucata, encalhou e ficou ali para sempre. Aí os curiosos começaram a aparecer. Gente que tinha um fôlego imenso para nadar. Coragem para enfrentar o sol, os ventos e a noite. Casais de namorados, pescadores, cineastas, todos em busca de aventuras.
Ninguém nem de longe suspeitava do perigo que corria ao se aproximar naquele local. Eu como um homem solitário, sem esperanças na vida, meio frustrado com as pessoas e a sociedade tinha um plano ainda mais ousado. Terminar com minha existência na terra em cima de um navio enferrujado e sem vida. Eu já tinha percorrido 40 anos de estrada. Casamentos fracassados, sonhos perdidos, pensões alimentícias que consumiam boa parte do meu salário. Não via outra solução, a não ser acabar com o que já deveria ter terminado a muito tempo.
O meu condutor naquela noite era um homem trabalhador, que já tinha madrugado muitas vezes para levar o sustento da sua família. Acordava ainda na escuridão para pescar, enfrentando ondas gigantes e bem cedo às 6h da manhã estava ali comercializando seus peixes com os comerciantes locais. Ele tinha prometido me deixar no Mara Hope, quando no caminho do seu itinerário diário.
Nessa minha ida sem retorno, eu tinha levado apenas uma garrafa de whisky, um isqueiro, um maço de cigarros e um pouco de água e 200 reais para pagar o pescador que me levaria a embarcação. Para entrar no navio, apenas uma escada e uma abertura pequena, cheia de ferro que poderia causar uma infecção e levar a perda de parte do seu corpo, caso você não tivesse tomado uma vacina antitetânica antes.
Para mim tanto fazia, eu ia perecer ali mesmo em poucas horas. Dentro do navio, dava para ver apenas escuridão e o barulho das águas que passavam por baixo. Tudo estava sem movimento. Quando consegui chegar em cima pude ver a beleza da Beira Mar de Fortaleza. A Orla marítima mais linda do Brasil. Muitos edifícios. Muita desilusão, muita mentira, muita hipocrisia de uma sociedade desigual, interesseira.
Eu pensava que estava sozinho ali, mas tinha algumas pessoas. Vi de longe quatro jovens. Fiquei logo tenso, parecia que meus planos estavam se desfazendo. Seria um presságio para eu abortar essa ideia? Eles ficaram petrificados me olhando. Eu tive que pegar o revólver e ficar preparado. Parecia que não só minha vida ia sucumbir naquela noite. Não queria violência. Mas eles estavam armados com facas. Eram três homens e uma mulher.
Não deu muito tempo para pensar. Tive que agir rápido, eles estavam correndo em minha direção. O primeiro tiro foi na cabeça do homem magro e cabelo estilo Peaky Blinders, ele caiu de cara na estrutura do navio. Nunca tinha tirado a vida de ninguém. Não deu tempo de sentir aquela sensação cruel e ao mesmo tempo prazerosa, atirei na perna do segundo, um jovem mais gordo, que ficou gritando de dor, o terceiro que se aproximou foi um rapaz que deveria ter pouco mais de 16 anos e com medo ele pulou no mar e foi tragado pelas águas. A mulher era magra com um boné na cabeça e uma beleza sem igual, ela ficou de joelhos implorando para eu não atirar.
Mas naquele momento a adrenalina já tinha tomado conta de todo o meu corpo. Senti pena deles. Não eram para estarem ali naquela noite. O gordinho ainda estava no chão deitado gemendo de dor, então em vez de atirar nela, eu preferi terminar aquele sofrimento logo e executei ele ali com um tiro no peito.
Sentei e fiquei ali olhando para o nada, para o vazio do mundo, o dia estava raiando, um sol parecia querer surgir, mas o tempo nublou tão rápido que a chuva veio forte e lavou tudo. Quando percebi estava abraçado com ela. Decidimos nos livrar dos corpos. Eu tinha feito uma aliança com a jovem.
E foi assim que resolvemos voltar mais algumas noites.
Por CARLOS EMANUEL