A tempestade ameaçadora aproximava-se. Uma árvore no meio do trigal, ao longe, serviria de refúgio. Creio que eu e os pássaros, que passaram ao meu lado voando nervosos e agitados, tivemos a mesma ideia.
As nuvens compactas pareciam coladas e formavam um cilindro negro, que descia até a terra, do meio do céu azul.
Os pássaros alcançaram a árvore e pousaram nos galhos cobrindo-a por completo. Alcancei a árvore e sentei-me entre as raízes. Os pássaros gritavam nervosos, senti medo, e cocô sobre mim. O cilindro negro estava muito próximo. Agarrei-me ao que pude. Logo os pássaros silenciaram e um barulho de milhares de vozes numa língua que não conhecia chamou-me a atenção.
O vento tornou-se mais forte, mas a árvore não se mexeu. Olhei sorrateiramente. Espantada, vi no céu azul um buraco negro de onde saiam criaturas disformes e horrendas. As criaturas levantavam-se gritando, derretiam e em seguida eram absorvidas pela terra. A cada leva de criaturas que descia, o cone diminuía de tamanho e o vento acalmava-se. Em alguns segundos o buraco desapareceu.
Vi reflexos de luz. Olhei para cima, uma placa em um galho brilhava. Sua luz cegava-me. Senti mãos puxando-me para a terra. Agarrei-me à placa. As mãos soltaram-me, fui caindo num vazio. Senti uma pancada nas costas e a dor na cabeça…
Acordei assustada. Estava deitada no chão ao lado da cama. A cortina da noite ainda escondia a paisagem do outro lado da janela. O silêncio era profundo. Não havia lua, nem luz das estrelas. Conclui que sonhara e senti-me segura por estar fora do sonho.
Levantei-me. Precisava ir ao banheiro. Apertei o interruptor, a luz não veio. Tateei até o toalete. A bexiga estava explodindo. Abri a porta do banheiro, entrei. Tudo escuro. Arrepiei. O medo fez-me recuar. Decidi voltar, dei um passo à frente, bati com o nariz na parede, não havia porta. O pânico instalou-se, abri a boca para gritar: Socorrooo! O som não saiu da garganta. Senti mãos puxando-me, imobilizando-me. Não consegui mexer-me, estava colada ao chão. Estou tendo outro pesadelo! Pensei. No escuro, um brilho sobre a minha cabeça. Levantei os olhos, uma placa balançava emitindo faíscas. Era a única luz naquele ambiente negro. A placa estabilizou-se e diante dos meus olhos li a palavra Fé. Não consegui entender a mensagem. Quem estava me enviando aquela mensagem e o quê significava? Acreditar, acreditar… A resposta veio rápida à minha orelha.
Acreditar em quê?
«Essa pergunta prova a ausência de fé! Acredite, acredite na vida, em você, no outro, na justiça, na igualdade, no impossível, no milagre, na eternidade, no amor, no perdão, na continuidade do espírito. Quando você acreditar em tudo isso, sua fé estará refeita. Você vencerá os medos, as angústias, as tristezas e as frustrações. A fé sustentará sua coragem e você não sucumbirá aos pavores. Acorde, lute com essa arma! Ela removerá essa montanha plantada à sua porta».
Pulei da cama. O medo ainda estava presente. O dia abriu-se com o sol. Enquanto o sol subia, o esquecimento do sonho diminuía. Durante meses tive o mesmo pesadelo com a voz dando-me instruções até que desapareceu sem que a fé me acompanhasse.
Viajei de férias à Thailândia. Mar azul, paisagem paradisíaca. Estatelada na areia branca à beira mar, acordei com a gritaria dos turistas. Água, lama, objetos das casas e dos hotéis e pessoas, e galhos sendo levados, e eu fui arrastada pelas águas do mar, afundei. Talvez o choque, talvez o meu organismo para me defender do sofrimento nocauteou-me por algum tempo. Voltei a mim, abri os olhos e meio desacordada vi um vulto muito claro e iluminado, dentro das águas, acompanhado de outras pessoas, ele colocou um tubo na minha boca e disse-me para respirar. Uma mão pousou sobre a minha cabeça, transmitindo-me paz, próximo a mim vi o vulto sendo arrastado pelas águas.
– Obrigada! Disse e desmaiei.
Não sei quanto tempo passou, depois disseram-me que fui encontrada enroscada entre galhos, presa sob o peso de um bloco. Havia engolido muita água e só me retiraram dos escombros quando as águas baixaram. Não sabem como sobrevivi.
Passei uma semana sendo atendida num hospital improvisado. Nos momentos de lucidez, via centenas de pessoas sendo atendidas. Era um hospital de tragédia. Os gritos, o choro, o desespero, o desalento ao meu redor evocavam a tristeza e o sofrimento e, pela primeira vez em anos de vida, pensei em Deus, mas pensei com raiva, indagando-lhe por que deixara acontecer uma tragédia de tal grandeza.
“Nas horas de tristeza coloco a culpa em Deus, nas horas de prazer sou eu a responsável!”
A dor reiniciou seu trabalho e comecei a gemer. Uma enfermeira passou ao meu lado e pedi-lhe um analgésico, ela não falava minha língua, mas compreendia a linguagem da dor, voltou em seguida com outra enfermeira da cruz vermelha que me aplicou um medicamento e pediu-me calma.
– O que aconteceu? Perguntei-lhe.
– Um tsunami devastou toda a região, levou hotéis, casas, hospitais, tudo! Mas a senhora salvou-se…
– E o senhor que me ajudou dando-me a mangueira para respirar? Será que se salvou também?
– Olhe senhora, não sei lhe dizer. Nós a encontramos presa entre destroços, não havia outra pessoa com a senhora. Ele era algum conhecido seu?
– Não, só sei que me deu a mangueira para respirar quando eu estava afogando e afundando. Ele salvou-me a vida, espero que esteja bem, poderia ter ficado com a mangueira para si…
– Não pense mais nisso, descanse para criar forças, estamos aguardando um avião que irá levá-la de volta ao seu país.
– Meu estado é grave? Não sinto minhas pernas, não posso mexê-las.
– Ainda não sabemos a gravidade, mas logo poderá fazer exames especializados. Em Boston há bons hospitais. Tenha fé. Já foi um milagre ter sobrevivido com a ajuda dessa pessoa…
A enfermeira partiu e eu fiquei sob efeito de sedativos. No dia seguinte vieram buscar-me. Transportaram-me para Boston. Minha mãe esperava-me no aeroporto, triste e preocupada.
– Minha filha que coisa horrível, bem que eu não queria que você fosse nessa viagem. Eu estava com um pressentimento estranho e quando você me contou o sonho que teve com as nuvens negras e os pássaros, e os monstros, e tudo mais, fiquei muito apreensiva. Orei tanto pedindo a Deus que a acompanhasse! Graças a Deus você escapou, foi um milagre!
Uma avalanche de lágrimas desceu dos meus olhos, minha mãe pedia para eu ter calma, abraçava-me e assegurava-me que tudo estava bem. O choro continuou mais forte, havia um pavor no meu interior que me sufocava. A enfermeira aplicou-me um calmante. Dormi. Acordei no dia seguinte e a crise recomeçou. Foram três dias de lágrimas convulsivas.
Tive a visita do psiquiatra do hospital que tentou conversar comigo sobre a tragédia ocorrida. Eu não queria falar sobre o assunto, entrei num mutismo angustiante. Minha mãe não se afastava do hospital e tentava com todas as forças tirar-me da letargia.
O médico disse que eu estava com amnésia temporária devido ao choque, mas que aos poucos a memória voltaria e que poderia ser muito doloroso.
Comecei a lembrar do ocorrido como se fosse um pesadelo.
Estava deitada na areia da praia, ouvi gritos desesperados, as águas envolvendo o hotel e arrastando adultos, crianças, velhos e jovens. O mar avançava numa velocidade alucinante. Levantei-me e corri com as outras pessoas, sem entender o que se passava, desesperadamente, mas a água foi mais rápida e sugou-nos.
Segurei a respiração e deixei-me levar. Sentia as pessoas esbarrando em mim, abri um pouco os olhos para ver a direção da luz. Havia afundado muito e meus pulmões pareciam que iam estourar. Coloquei todas as minhas energias e alcancei a superfície.
Fui tragada novamente. Quando voltei à superfície vi o casco de um barco de pesca, agarrei-me e fiquei esperando o mar acalmar-se. Do meu barco via outras pessoas agarradas à árvores, carros, pedaços de tábua. Outros em cima dos telhados. Por alguns minutos parecia que havia acabado o terror quando uma nova onda, ainda mais volumosa, arrancou-nos das nossas tábuas de salvação.
Em uma das subidas consegui agarrar-me à uma mesa. Uma senhora passou gritando, agarrei-a, seguramo-nos à mesa que queria afundar com o nosso peso. Nadei vigorosamente com um braço, vi uma árvore e alguns pássaros que gritavam sobrevoando as nuvens pesadas e escuras sobre nós, uma onda forte arrastou-nos até a árvore. A senhora segurou os galhos que tocavam a água. Nadei até o outro galho. A correnteza era forte, destroços passavam perigosamente por nós. Um mar de lixo marrom nos envolvia. A árvore inclinou-se e fui arrastada novamente pelas águas turvas, juntamente com os destroços. O pesadelo não terminava…
Depois que fui arrancada da árvore e engolida pelas águas, vi-me enroscada pelas raízes de uma árvore, lutei para safar-me dos galhos e das raízes que me prendiam, mas algo pesado caiu sobre mim e senti-me presa. Tateei e tentei empurrar o bloco que me aprisionava, debati-me, senti os pulmões estourando. Apaguei. Vi umas pessoas colocando-me uma mangueira na minha boca, sorriam-me como se estivessem fora da água, não pareciam afogar-se. Uma estranha sensação de tranquilidade envolveu-me e pensei que era a morte…
Todo o desenrolar da catástrofe estava claro na minha cabeça, apenas o fato da mangueira parecia ter sido um sonho, mas um sonho real, diferente. Contei ao psiquiatra o que se passara e ele explicou que na hora do desespero o cérebro cria situações de alívio para amenizar o sofrimento, como um estado de alucinação. Perguntei-lhe então como poderia ter sobrevivido ao afogamento presa entre os escombros.
– Talvez você não estivesse presa!
– Estava sim, doutor, foi preciso uma equipe de bombeiros vir tirar-me das águas. Um pescador encontrou-me e quatro mergulhadores liberaram-me.
– Eu tinha uma mangueira para respirar, doutor!
– Foram tantos traumas. Os fatos devem estar misturados entre a realidade e a fantasia criada pela necessidade da sobrevivência. Por enquanto temos que nos concentrar na sua recuperação… A senhora sabe que o acidente atingiu sua coluna, não é?
– É por isso que não consigo mexer as pernas?
– A senhora está com paralisia dos membros inferiores, mas está viva e enquanto há vida há esperança!
Por VALQUIRIA IMPERIANO